Opinião

Lei do Superendividamento: entre obstáculos e esperanças

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27 de junho de 2024, 17h29

Em 1º de julho de 2021, foi sancionada a Lei 14.181, que buscou dar mais proteção ao consumidor, dispondo sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento, com o escopo de proporcionar um respiro para o consumidor. Esse foi um objetivo bastante otimista. Com efeito, a aplicação da chamada Lei do Superendividamento tem se deparado com inúmeros empecilhos e resistências por parte do Judiciário brasileiro.

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Depois de quase três anos, pode-se ver que a aplicação da referida lei não tem sido tão fluida como desejou o legislador: juízes, em todo o Brasil, têm prolatado decisões que esbarram nos conceitos trazidos pelo próprio diploma aludido, de modo que podemos ver um arsenal de entendimentos extremados e dissonantes que acabam por gerar uma genuína insegurança jurídica.

Vamos, então, apreciar alguns desses entendimentos que afrontam a lógica homenageada pelo Congresso.

Presença de todos os credores

Um dos entraves que a jurisprudência está tendo que pacificar é o entendimento de que não é possível a manutenção do polo ivo das demandas com várias instituições credoras. Magistrados, não poucas vezes, têm determinado a exclusão de agentes, bem como o desmembramento do processo, sob a justificativa de que há uma possibilidade de comprometimento da tramitação do feito, entre outras fundamentações.

Tratam-se de decisões que desconsideram a cabeça do artigo 104-A, do Código de Defesa do Consumidor (CDC), que, literalmente, exige a presença de todos os credores numa mesma ação. Os Tribunais de Justiça (TJ) dos estados do Rio Grande do Sul e São Paulo, por exemplo, têm inúmeras decisões dos últimos meses corrigindo decisões de primeiro grau (Agravos de Instrumento: 5015238-27.2024.8.21.7000; 2297672-87.2023.8.26.0000, respectivamente).

Imprescindibilidade da audiência de conciliação

Outro ponto que tem gerado debate em torno da Lei do Superendividamento é acerca da realização da audiência de conciliação. Há diversas decisões judiciais que têm dispensado a efetuação de tal ato processual. As motivações são muito variadas. Todavia, o legislador é suficientemente claro ao criar um rito para o processamento da ação de repactuação de dívidas, que, por sua vez, inicia-se com a audiência de conciliação.

Assim, não é discricionário, mas elementar. Seria como suprimir do rito comum o questionamento das partes acerca da produção de provas. Inclusive, há tribunais, como o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, que criaram uma classe processual específica para as ações de superendividamento. Ou seja, como se trata de um rito específico — que não se confunde com os demais —, é necessário que ele seja observado integralmente. O TJ de Santa Catarina retificou decisão que cancelou audiência de conciliação (Agravo de Instrumento: 5043163-33.2022.8.24.0000).

Momento da apresentação do plano de pagamento

Apesar de a lei em comento ter pouquíssimos artigos, as divergências não param. O artigo 104-A, expressamente, prevê que a apresentação do plano de pagamento (que é a proposta feita pelo consumidor para quitar os débitos com a preservação do mínimo existencial) é na audiência de conciliação, pois presumir-se-ia que o preposto das instituições credoras teria a liberdade e a autoridade de propor e efetivar uma autocomposição.

Entretanto, muitos juízes, com a propositura da ação, despacham determinando emenda à inicial para juntar o plano de pagamento, sob pena de indeferimento da inicial. Trata-se de uma imposição que contraria o preceito legal. O TJ de São Paulo, corrigindo decisão de primeiro grau, já decidiu no sentido de que o momento ideal, na verdade, é a data em que é designada a conciliação (Apelação: 1022936-27.2021.8.26.0564).

Competência para julgar processos de superendividamento

A lei prevê o procedimento de repactuação das dívidas existentes do consumidor com a vinculação de todos os credores, de modo que, invariavelmente, é imprescindível um juízo universal, que congregue a integralidade de credores para que não se torne um procedimento sem qualquer efetividade.

Logo, a justiça comum tem competência absoluta para julgar os processos de superendividamento, com exceção de casos em que o consumidor possui contratos tão somente com a Caixa Econômica Federal, por exemplo, haja vista ser empresa pública, devendo tramitar na Justiça Federal, conforme prevê o artigo 109, inciso I, da Constituição.

O próprio Superior Tribunal de Justiça, no Conflito de Competência Nº 164.460 — PB (2019/0074409-0), decidiu que a competência para processamento e julgamento das ações que tratam sobre o superendividamento é da Justiça comum e não da Justiça Federal, ainda que empresa pública federal, como no caso dos autos, integre o polo ivo da demanda.

Porém, há recentes julgados que ainda determinam a separação do feito, entendendo pela incompetência da Justiça Estadual (TJ-PR — Agravo de Instrumento: 0053128-45.2022.8.16.0000; TJ-SP — Agravo de Instrumento: 2297672-87.2023.8.26.0000).

Tutela de urgência para limitar os descontos

A tutela de urgência é um instituto importantíssimo na processualística brasileira, que serve exatamente quando está evidente o direito. No caso de pessoas superendividadas, esse direito fica evidenciado com um cálculo matemático: há um certo consenso de que 60% da renda líquida do consumidor deve ser destinada à sua sobrevivência. Sendo assim, se 40% da renda do devedor bancário, por exemplo, está comprometida com a quitação de dívidas, faz-se necessária uma intervenção judicial.

Contudo, embasando-se nas mais variadas justificativas, grande parte dos juízes tem indeferido liminares que almejam limitar os descontos, determinando que a parte requerente aguarde o deslinde final da ação de repactuação de dívidas, que tem uma duração média superior a 12 meses, o que representa, pelo menos, 12 descontos arbitrários porquanto não ser observada a limitação presente na Lei Federal Nº 10.820/2003 e na pacífica jurisprudência das cortes superiores (REsp 1826689 SP e RE 1325327 MG).

Conclusão

Após três anos de sua promulgação, a Lei do Superendividamento (Lei 14.181/2021) ainda luta por sua efetiva aplicação nos tribunais brasileiros. A intenção original da lei era proteger os consumidores em situação de superendividamento, oferecendo-lhes um mecanismo para renegociar suas dívidas de forma justa e equilibrada.

No entanto, a lei tem encontrado diversos obstáculos em sua implementação, como interpretações divergentes dos juízes sobre os conceitos e procedimentos da lei, resistência de alguns credores em participar dos acordos de renegociação, dificuldades na aplicação da tutela de urgência para limitar os descontos das dívidas, assim como a falta de regulamentação para determinados termos, como “mínimo existencial”, o que gera insegurança jurídica.

Tal ausência abre espaço ao subjetivismo jurisprudencial, não sendo possível inferir se o consumidor está ou não superendividado, ficando à mercê da compreensão dos juízes. A verdade é que, mais uma vez, a aplicação da norma ampara-se no etéreo e impalpável, prestigiando a vulnerabilidade do próprio sistema judiciário.

Por último, é preciso dizer que, apesar dos desafios, a Lei do Superendividamento ainda representa uma esperança para milhões de brasileiros que se encontram em situação de endividamento excessivo. Algumas medidas podem contribuir para o avanço da Lei do Superendividamento, sobretudo o aprofundamento da capacitação dos juízes sobre a lei e seus objetivos, observando-se precipuamente o entendimento firmado pelo STJ, que já enfrentou extensivamente tal matéria.

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