Entre um simbolismo memorável e uma eficácia inquestionável
3 de maio de 2024, 6h36
No último 1º de Maio festejamos, com imensa alegria, a promulgação pelo governo brasileiro da Convenção sobre o Trabalho Decente para as Trabalhadoras e os trabalhadores Domésticos (nº 189) e da Recomendação sobre o Trabalho Decente para as Trabalhadoras e Trabalhadores Domésticos, ambas da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

O Congresso já havia aprovado essas normativas da OIT pelo Decreto Legislativo nº 172, de 4 de dezembro de 2017, tendo o governo brasileiro depositado, junto ao diretor-geral da OIT, o instrumento de ratificação à convenção e à recomendação, em 31 de janeiro de 2018, a partir de quanto tais instrumentos começaram a vigorar no Brasil.
O ato de promulgação interna das normativas da OIT relativas ao trabalho decente para as trabalhadoras e os trabalhadores domésticos vem revestido de imenso simbolismo e contém importante carga de relevância política, revelando o prestígio que o Poder Executivo deseja conferir ao tema no Brasil. Ademais, ressalte-se que também em 1º de maio de 2023, o chefe do Poder Executivo também havia enviado ao Congresso os textos do Protocolo Facultativo à Convenção nº 29 sobre o trabalho forçado ou obrigatório e da Convenção nº 187 sobre o marco promocional para saúde e segurança do trabalho (Mensagens de nºs 173 e 174), traduzindo pacotes de compromisso com os valores consignados nos referidos documentos pactuais internacionais na festejada data de reverência a trabalhadoras e trabalhadores de todo o mundo.
Todavia, para além da inegável relevância de tais gestos e direcionamentos políticos, é essencial fixar que os atos de promulgação de documentos convencionais internacionais relativos a direitos humanos não traduzem a eficácia jurídica que o simbolismo político empresta.
De fato, os documentos em questão já estavam em plena eficácia mesmo antes da promulgação realizada pelo presidente da República. Desde a sua ratificação, em 2018, tais documentos internacionais já se encontravam plenamente incorporados ao direito brasileiro, servindo, desde aquele momento, de paradigmas ao controle de convencionalidade das normas internas.
Tal é assim porque, em se tratando de convenções e documentos relativos a direitos humanos, como de fato o são os atos promulgados em 1º de maio de 2024, a ratificação faz com que tenham eficácia imediata, com exigibilidade irrestrita a partir daquele instante.
É precisamente o que se extrai da inteligência da regra insculpida no § 1º do artigo 5º da Constituição de 1988 (verbis: As normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata) e também da parte final do § 2º do mesmo dispositivo, segundo o qual os direitos e garantias expressos no texto constitucional não excluem (e, portanto, a contrario sensu, incluem) outros decorrentes dos tratados internacionais de direitos humanos em que o Brasil “seja parte”.
Ser parte em um tratado, conforme o mandamento expresso da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, significa ratificar um tratado em vigor. [1] Tal foi justamente o que ocorreu, em 2018, com as normas da OIT referidas.
Isso impõe especificamente ao Poder Judiciário conferir e exigir a imediata aplicação, com status de norma constitucional, a partir da ratificação, independentemente de promulgação pelo Chefe do Executivo, das essenciais Convenção sobre o Trabalho Decente para as Trabalhadoras e os Trabalhadores Domésticos (nº 189) e da Recomendação sobre o Trabalho Decente para as Trabalhadoras e Trabalhadores Domésticos, oriundas da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Como se não bastasse, o tema dos tratados em questão igualmente nos convida a uma profunda reflexão sobre a efetividade de direitos de que cuidava Bobbio [2] no âmbito da sociedade brasileira.
O silêncio eloquente do texto constitucional de 1988 — a própria expressividade textual do parágrafo único do artigo 7º, que, em sua redação original, excluía a trabalhadora e o trabalhador doméstico de grande gama de direitos assegurado a todos trabalhadores — ou, mais, a exclusão celetista de 80 anos, são reveladoras da real natureza e importância da eficácia imediata dos textos convencionais em questão.
Não é demais recordar, também, que a realidade do trabalho doméstico no Brasil impõe um debate a temas ainda mais profundos, como o racismo e o sexismo no mundo do trabalho.
Ora, é evidente que o cenário do trabalho domestico em nosso País contempla debates acerca de aspectos patriarcais, racistas e classistas que se incorporaram aos mais diversos segmentos da sociedade brasileira. Em linhas gerais, não há equívoco em apontar que às mulheres e trabalhadoras foram atribuídos diversos papéis sociais, os quais, via de regra, colocam-nas ora em condições de subalternidade, ora de desumanização e desconsideração do valor social do trabalho doméstico remunerado e não remunerado realizado, o que se verifica de maneira exacerbada sobretudo às mulheres negras.
Não por outra razão e em reforço à eficácia plena anterior aqui apontada, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou Resolução nº 492/2023, que tornou obrigatória a adoção pela magistratura brasileira do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero (Portaria CNJ nº 27/2021) nos casos cuja discussão envolva desigualdades estruturais e seus efeitos sobre os jurisdicionados e jurisdicionadas e, por conseguinte, na prestação jurisdicional.
Desigualdades estruturais
O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, aprovado pelo Grupo de Trabalho instituído por intermédio da Portaria CNJ nº 27/2021, parte de premissas tais como a de que a sociedade brasileira é marcada por severas desigualdades estruturais. Fixa-se que o patriarcado, o racismo e as demais opressões influenciam a atuação jurisdicional, buscando-se, assim, romper com o denominado “silêncio dos juristas”[3] — célebre expressão adotada pela professora Dora Lúcia de Lima Bertulio em 1989 —, haja vista que reconhece a função do direito na manutenção dos privilégios das estruturas dominantes, em detrimento de uma justiça substantiva.
No particular, importante trazer-se à colação, trecho do protocolo, que traduz esse sentimento e preocupação com aqueles que irão julgar:
Conforme referido nas seções anteriores, importante salientar que a sociedade brasileira é marcada por profundas desigualdades que impõem desvantagens sistemáticas e estruturais a determinados segmentos sociais, assim como sofre grande influência do patriarcado, que atribui às mulheres ideias, imagens sociais, preconceitos, estereótipos, posições e papéis sociais.
A criação, a interpretação e a aplicação do direito não fogem a essa influência, que atravessa toda a sociedade. Nesse contexto, em termos históricos, o direito parte de uma visão de mundo androcêntrica. Sob o argumento de que a universalidade seria suficiente para gerar normas neutras, o direito foi forjado a partir da perspectiva de um “sujeito jurídico universal e abstrato”, que tem como padrão o “homem médio”, ou seja, homem branco, heterossexual, adulto e de posses.
Essa visão desconsidera, no entanto, as diferenças de gênero, raça e classe, que marcam o cotidiano das pessoas e que devem influenciar as bases sobre as quais o direito é criado, interpretado e aplicado.
É dizer, a desconsideração das diferenças econômicas, culturais, sociais e de gênero das partes na relação jurídica processual reforça uma postura formalista e uma compreensão limitada e distante da realidade social, privilegiando o exercício do poder dominante em detrimento da justiça substantiva.
Nesse contexto, o patriarcado e o racismo influenciam a atuação jurisdicional. Como foi dito, magistradas e magistrados estão sujeitos, mesmo que involuntária e inconscientemente, a reproduzir os estereótipos de gênero e raça presentes na sociedade.
Neutralidade não seria imparcialidade
A partir dessas premissas, a neutralidade do direito a a ser compreendida como um mito, porque quem opera o direito atua necessariamente sob a influência do patriarcado e do racismo; ou ainda, a a ser reconhecida como indiferença e insensibilidade às circunstâncias do caso concreto.
Agir de forma supostamente neutra, nesse caso, acaba por desafiar o comando da imparcialidade. A aplicação de normas que perpetuam estereótipos e preconceitos, assim como a interpretação enviesada de normas supostamente neutras ou que geram impactos diferenciados entre os diversos segmentos da sociedade, acabam por reproduzir discriminação e violência, contrariando o princípio constitucional da igualdade e da não discriminação.
A ideia de que há neutralidade nos julgamentos informados pela universalidade dos sujeitos é suficiente para gerar parcialidade.
Um julgamento imparcial pressupõe, assim, uma postura ativa de desconstrução e superação dos vieses e uma busca por decisões que levem em conta as diferenças e desigualdades históricas, fundamental para eliminar todas as formas de discriminação contra a mulher.
Considerar que os estereótipos estão presentes na cultura, na sociedade, nas instituições e no próprio direito, buscando identificá-los para não se submeter à influência de vieses inconscientes no exercício da jurisdição é uma forma de se aprimorar a objetividade e, portanto, a imparcialidade no processo de tomada de decisão. Além disso, a compreensão crítica de que a pessoa julgadora ocupa uma posição social, que informa a sua visão de mundo, muitas vezes bem diversa das partes, reduz a possibilidade de se tomar uma decisão que favoreça a desigualdade e a discriminação.
O enfrentamento das várias verdades em jogo na relação processual, a identificação de estereótipos e o esforço para afastar eventuais prejulgamentos decorrentes de vieses inconscientes auxiliam, portanto, na percepção de uma realidade mais complexa e na construção da racionalidade jurídica mais próxima do ideal de justiça. [4]
O protocolo em tela sintetiza conclusões de densas e sólidas pesquisas científicas realizadas no Brasil desde a década de 1960 — com destaque para aquelas produzidas por Lélia Gonzáles, Beatriz Nascimento, Cida Bento, Dora Bertúlio e Helena Hirata —, proporcionando fissuras na já reconhecidamente equivocada percepção de que o direito e a prestação jurisdicional não são produto das desigualdades estruturais da sociedade brasileira.
Trata-se, portanto, de iniciativa que doa sentido e racionalidade ao modo de julgar voltado à perspectiva de gênero, fazendo coro aos avanços já conquistados sobre a matéria no cenário internacional, notadamente em razão do impulso proporcionado pelo direito internacional dos direitos humanos nos últimos anos.
Ademais, não se pode também esquecer que a adoção do protocolo se comunica com um dos mais recentes objetivos da OIT, discutido durante a 111ª Convenção Internacional do Trabalho (CIT): avançar numa justiça social por meio da adoção de medidas que possibilitem um ambiente de trabalho decente para todos e todas, ou, ainda, para se avançar para a chamada transição justa.
O certo é que a promulgação da Convenção nº 189 e da Recomendação sobre o Trabalho Decente para as Trabalhadoras e Trabalhadores Domésticos da OIT traduz não apenas um debate sobre eficácia jurídica dessa normativa nos Estados-partes, senão também uma discussão relativa à eficácia moral de tais instrumentos nesses Estados, sobretudo naqueles em que a proteção de trabalhadoras e trabalhadores tem restado historicamente relegada a planos sabidamente inferiores.
A Emenda Constitucional nº 72/2013 e a Lei Complementar nº 150/2015 foram suficientes para que, de fato, haja no mundo dos fatos uma tutela efetiva de direitos trabalhistas para as trabalhadoras e trabalhadores domésticos? Essas são questões cujas respostas ainda não estão à vista.
[1] Cf. MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Curso de direito internacional público. 15. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 811.
[2] BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 7. reimp. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 16: “O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas político.
[3] BERTULIO, Dora Lúcia de Lima. Direito e relações raciais: uma introdução crítica ao racismo. Dissertação de Mestrado em Direito, Universidade Federal de Santa Catarina, 1989. 263 f.
[4] CNJ, Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados, Enfam, 2021, Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, p 35-36.
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