Opinião

Colaborador tem direito subjetivo ao cumprimento de acordo pelo Estado

Autores

  • é advogado ex-subprocurador-geral da República e ganhador dentre outros do Prêmio Nacional de Direitos Humanos concedido pelo Presidente da República no ano de 2002.

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  • é advogada pós-doutoranda em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da USP doutora e mestra em Direito do Estado pela mesma faculdade e license e master 1 pela Faculdade de Direito da Universidade de Lyon 3.

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28 de maio de 2024, 7h08

O advento da Lei nº 12.850/13, ao regulamentar mais precisamente o instituto da colaboração premiada — que, antes disso, já existia no sistema jurídico brasileiro —, acarretou um considerável incremento no uso desse instrumento que, por ser ainda jovem, tem originado diversos questionamentos para reflexão, debates e análises dos operadores do Direito.

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E uma dessas questões analisada e sedimentada pelo Supremo Tribunal Federal diz respeito à natureza das obrigações assumidas pelo agente estatal no momento da do referido instrumento de colaboração com o particular e as consequências dessa relação.

O Plenário do STF, em uma das primeiras situações em que instado a se manifestar sobre os requisitos de validade e eficácia dos acordos de colaboração premiada, definiu importante aspecto da natureza jurídica daquele instituto, deixando claro ser um direito subjetivo do colaborador ver honrados os compromissos assumidos pelo Estado no acordo de colaboração firmado entre eles, sob pena de violação aos princípios da proteção da confiança e da segurança jurídica. Vejamos:

“EMENTA Habeas corpus. (…) Disposição, no acordo de colaboração, sobre os efeitos extrapenais de natureza patrimonial da condenação. issibilidade. Interpretação do art. 26.1 da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Convenção de Palermo), e do art. 37.2 da Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção (Convenção de Mérida). Sanção premial. Direito subjetivo do colaborador caso sua colaboração seja efetiva e produza os resultados almejados. Incidência dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança. Precedente. Habeas corpus do qual se conhece. Ordem denegada.

(…)

  1. A colaboração premiada é um negócio jurídico processual, uma vez que, além de ser qualificada expressamente pela lei como ‘meio de obtenção de prova’, seu objeto é a cooperação do imputado para a investigação e para o processo criminal, atividade de natureza processual, ainda que se agregue a esse negócio jurídico o efeito substancial (de direito material) concernente à sanção premial a ser atribuída a essa colaboração.

(…)

  1. A confiança no agente colaborador não constitui elemento de existência ou requisito de validade do acordo de colaboração.
  2. Havendo previsão em Convenções firmadas pelo Brasil para que sejam adotadas ‘as medidas adequadas para encorajar’ formas de colaboração premiada (art. 26.1 da Convenção de Palermo) e para ‘mitigação da pena’ (art. 37.2 da Convenção de Mérida), no sentido de abrandamento das consequências do crime, o acordo de colaboração, ao estabelecer as sanções premiais a que fará jus o colaborador, pode dispor sobre questões de caráter patrimonial, como o destino de bens adquiridos com o produto da infração pelo agente colaborador.
  3. Os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança tornam indeclinável o dever estatal de honrar o compromisso assumido no acordo de colaboração, concedendo a sanção premial estipulada, legítima contraprestação ao adimplemento da obrigação por parte do colaborador.
  4. Habeas corpus do qual se conhece. Ordem denegada.” (HC 127.483, relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 27/8/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-021  DIVULG 03-02-2016  PUBLIC 04-02-2016)

Em seu voto proferido nesse HC 127.483, o ministro Dias Toffoli enfatizou que o cumprimento do acordo de colaboração premiada pelo Estado é um direito subjetivo do colaborador, o que enseja a possibilidade de se exigir tal cumprimento judicialmente:

“VII) DO DIREITO SUBJETIVO DO COLABORADOR À SANÇÃO PREMIAL.

Caso a colaboração seja efetiva e produza os resultados almejados, há que se reconhecer o direito subjetivo do colaborador à aplicação das sanções premiais estabelecidas no acordo, inclusive de natureza patrimonial.

Segundo José Carlos Vieira de Andrade,

‘o direito subjetivo exprime a soberania jurídica (limitada embora) do indivíduo, quer garantindo-lhe certa liberdade de decisão, quer tornando efetiva a afirmação do ‘poder de querer’ que lhe é atribuído. Poder (disponibilidade), liberdade (vontade) e exigibilidade (efetividade) são, deste modo, elementos básicos para a construção do conceito de direito subjetivo’ (Os direitos fundamentais na constituição portuguesa de 1976. Coimbra : Almedina, 1987. p. 163-164).

Para Martin Borowski, a justiciabilidade, ou seja, sua exigibilidade judicial, é a nota característica do direito subjetivo (La estructura de los derechos fundamentales. Trad. Carlos Bernal Pulido. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2003. p. 40-47 e 119-120).

Assim, caso se configure, pelo integral cumprimento de sua obrigação, o direito subjetivo do colaborador à sanção premial, tem ele o direito de exigi-la judicialmente, inclusive recorrendo da sentença que deixar de reconhecê-la ou vier a aplicá-la em desconformidade com o acordo judicialmente homologado, sob pena de ofensa aos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança.

(…)

Portanto, os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança tornam indeclinável o dever estatal de honrar o compromisso assumido no acordo de colaboração, concedendo a sanção premial estipulada, legítima contraprestação ao adimplemento da obrigação por parte do colaborador.

No Estado Constitucional de Direito, não se pode permitir a atuação da potestade punitiva contra ou fora de suas próprias regras (IBÁÑEZ, Perfecto Andrés. Prueba y convicción judicial en el proceso penal. Buenos Aires: Hammurabi, 2009. p. 191).” (trecho do voto do relator no HC 127.483, relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 27/8/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-021  DIVULG 03-02-2016  PUBLIC 04-02-2016)

Esse direito subjetivo voltou a ser reconhecido pelo STF em outros julgados, tendo o ministro Dias Toffoli, no julgamento de Questão de Ordem nos autos do Inquérito 4.483, reforçado o entendimento no sentido de que o acordo de colaboração é, primordialmente, um instrumento visando a garantir a proteção dos direitos do colaborador, representando a segurança de que as “promessas” estatais serão efetivamente cumpridas, senão vejamos:

“O SENHOR MINISTRO DIAS TOFFOLI: Agora, Presidente e eminente Ministro Luiz Fux, é importante destacar aqui o momento e a situação em que eu proferi o voto no HC 127.483. Ali, consignei – e logrei ter a honra do acompanhamento unânime do Tribunal – que o acordo de colaboração, antes de mais nada, é para garantir um direito subjetivo daquele que está colaborando com o Estado de lograr aquilo que o Estado lhe prometeu, ou seja, o Estado não pode retirar do colaborador as suas informações, prometer algo e depois, lá na frente, negar-lhe aquilo que fora prometido. Então, esta foi toda a premissa do meu voto.

(…)

Aquele meu voto, eu não estou, de maneira nenhuma, arrependido dele. Continuo convicto, Ministro Gilmar Mendes. Mantenho aquele posicionamento. Estou certo das posições ali tomadas de que a colaboração é um contrato instrumental, processual entre o Estado e o cidadão colaborador para proteger, não o Estado, para proteger o colaborador de que o Estado descumpra aquele pacto, caso o colaborador cumpra com as suas obrigações.” (QO no INQ 4.483, rel. min. Edson Fachin, pp. 38, 40)

Responsabilidades mútuas

Como se observa, ao firmar um acordo de colaboração premiada com um particular, o agente estatal responsável por sua negociação e deve não só assumir efetivamente aquelas responsabilidades ali elencadas, como também deve agir de modo a cumpri-las, da mesma forma que se espera e exige que o particular faça.

E por mais que tal raciocínio pareça até intuitivo, o que se observa na prática é que o agente estatal signatário dos acordos de colaboração premiada nem sempre tem cumprido as obrigações por ele assumidas, ao o em que, draconianamente, não deixa de exigir o cumprimento das obrigações assumidas pelos particulares signatários, mesmo quando tais obrigações tenham se relevado abusivas ou quando não tenham propriamente decorrido de manifestação de vontade efetivamente livre [1].

Recentemente, esta ConJur publicou reportagem sobre um desses casos [2], em que questiona a recalcitrância do Supremo Tribunal Federal em se determinar que o Ministério Público Federal cumpra as obrigações assumidas em acordo de colaboração premiada firmado no âmbito da operação “lava jato” e homologado pela corte.

É importante que se diga que, uma vez firmado e homologado o acordo de colaboração proposto e negociado pelo ente estatal, não pode ele alegar a impossibilidade do cumprimento de suas obrigações lá assumidas, qualquer que seja o motivo [3].

Isso porque, ainda que a relação jurídica decorrente da do acordo revista-se de caráter contratual, ela não é, desde o seu princípio, uma relação equilibrada, sendo evidente a hipossuficiência do particular que firmou aquele instrumento frente à sua contraparte.

Desse modo, é plenamente possível que o particular venha a alegar, legitimamente, argumentos válidos para repactuar o acordo ou prorrogar o seu adimplemento.

Todavia, ao ente estatal essa prerrogativa não pode ser conferida, já que: (1) os atos produzidos pelo Poder Público têm presunção de validade e legalidade; (2) tal presunção se mostra ainda mais clara quando essa contraparte é o Ministério Público, que pela Constituição deve exercer a função de fiscal da lei; (3 o evidente desequilíbrio da relação jurídica decorrente do acordo, em que o particular encontra-se em posição não só de hipossuficiência, mas também em franca fragilidade decorrente da perspectiva de processos de natureza criminal e da consequente ameaça ao seu direito de liberdade lato sensu.

Ademais disso, o agente estatal recalcitrante no cumprimento das obrigações assumidas por ele próprio em acordos de colaboração estaria em clara violação ao clássico princípio do venire contra factum proprium, assumindo comportamento contraditório inaceitável e incompatível não apenas com o interesse daquele particular signatário do acordo em questão, mas com o interesse público em geral, ao descredibilizar o Poder Público como contraparte confiável em qualquer relação de natureza jurídica.

Ora, mais do que defender o direito do particular de executar as obrigações que sua contraparte (o agente estatal) assumiu quando da do acordo de colaboração, trata-se de preservar a própria credibilidade do ente público, essencial para que possa continuar a lançar mão desse meio de obtenção de prova de forma idônea.

Assim, após ter reconhecido que, da do acordo de colaboração premiada surge um direito subjetivo ao particular signatário de ver cumprir e de solicitar o cumprimento dos compromissos firmados pelo ente estatal, o Supremo Tribunal Federal necessita agora enfrentar a dificuldade de aplicar na prática esse entendimento, determinando ao ente estatal signatário dos acordos que cumpra de imediato, sem recalcitrância, e sem qualquer possibilidade de questionamentos posteriores, as obrigações que ele próprio assumiu.

 


[1] Nesse sentido, interessantes posicionamentos do ministro Dias Toffoli nos autos da Reclamação nº 43.007 e petições derivadas (como a PET nº 12.357), em que se reconhece que parte dos acordos firmados no âmbito da operação “lava jato” foram fruto de comportamentos acusatórios ilegais a eivar de irregularidade os acordos firmados.

[2] Disponível em: /2024-abr-22/stf-deve-decidir-sobre-cumprimento-de-acordo-com-dados-obtidos-ilegalmente/. o em 24/05/2024.

[3] Na PET nº 12.357, o ministro Dias Toffoli assim pontuou: “(…) caso a colaboração seja efetiva e produza os resultados almejados – como no caso dos autos -, há que se reconhecer o direito subjetivo do colaborador à aplicação das sanções premiais estabelecidas no acordo, inclusive de natureza patrimonial. Assim, caso se configure, pelo integral cumprimento de sua obrigação, o direito subjetivo do colaborador à sanção premial, tem ele o direito de exigi-la judicialmente, inclusive recorrendo da sentença que deixar de reconhece-la ou vier a aplica-la em desconformidade com o acordo judicialmente homologado, sob pena de ofensa aos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança.”

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