Responsabilização penal da figura do 'laranja' pelo delito de lavagem (parte 2)
4 de novembro de 2024, 8h00
Na parte 1 deste estudo, estabelecemos as premissas que devem estar presentes para que se possa afirmar que a conduta do “laranja” de emprestar o nome para vincular formalmente um ativo proveniente de infração penal é típica do crime de lavagem de dinheiro (artigo 1º, caput, da Lei nº 9.613/98).
Basicamente, estabeleceu-se que (1) o objeto da conduta em questão é a “propriedade” de ativos provenientes de infração penal, definida como o poder fático de usar, gozar e dispor de tal ativo e (2) a conduta proibida é a de dissimulação, entendida como conduta do “laranja” que, ao colocá-lo na posição formal de proprietário, cria o descomo entre quem está materialmente ando o ativo e quem simplesmente aparece formalmente para terceiros como o proprietário dele.
Agora, nesta parte 2, apresentaremos a aplicação dessas premissas a casos hipotéticos como forma de demonstrar o rendimento delas para a solução de casos da prática judicial.
Casos hipotéticos
Caso 1: o “laranja” recebeu em sua conta bancária um valor proveniente de infração penal a pedido do beneficiário do valor e o manteve em sua conta por um período.
Caso 2: o “laranja” recebeu em sua conta bancária um valor proveniente de infração penal a pedido do beneficiário do valor e prontamente o disponibilizou informando a senha de sua conta e dando um cartão de crédito para esse beneficiário.
Caso 3: o “laranja” emprestou o seu nome para que o beneficiário o colocasse como proprietário de um imóvel que adquiriu com valores provenientes de infração penal.
Caso 4: o “laranja” emprestou seu nome, a pedido do beneficiário, para figurar como locatário de um imóvel que não vai utilizar e que sequer tem a chave. O beneficiário, posteriormente, armazena valores em espécie provenientes de infração penal.
Caso 5: o “laranja” emprestou o seu nome para o beneficiário constituir uma pessoa jurídica que exercia a atividade de comercialização de gasolina. Posteriormente, foi utilizada para conferir origem a valores provenientes de infração penal do beneficiário informando que tais valores eram fruto da atividade econômica da empresa.

Em todos esses casos o “laranja” permite que bens provenientes de infração penal circulem por contas ou empresas sob a sua titularidade formal, em favor de um beneficiário, ou que estejam a ele vinculados formalmente. Partindo-se da premissa de que em todos os casos o “laranja” tem pleno conhecimento da proveniência ilícita dos valores, pergunta-se se o “laranja” praticou conduta objetivamente típica do artigo 1º, caput, da Lei nº 9.613/1998.
Propostas de resolução dos casos hipotéticos
A partir das premissas estabelecidas na parte 1 desse estudo, concluiu-se que há juízo positivo da tipicidade do delito do artigo 1º, caput, da Lei nº 9.613/1998, quando o “laranja” é utilizado para dissimular a propriedade do ativo proveniente de infração penal, ocupando a posição formal de proprietário — nos moldes do Direito privado — enquanto há beneficiário com o poder fático de usar, gozar e dispor desse ativo. Com base nesse entendimento, chegamos às seguintes soluções dos casos hipotéticos:
Caso 1: neste caso, ao receber em sua conta bancária o depósito de um valor proveniente de infração penal a pedido do beneficiário deste valor, o “laranja” foi posto na condição formal de titular do crédito proveniente de infração penal em sua conta bancária, segundo o Direito privado. Porém, a conduta não é objetivamente típica do crime de lavagem de dinheiro por ausência do objeto da conduta.
Vale dizer, ao simplesmente transferir o valor para a conta bancária do “laranja”, o beneficiário não detinha o poder fático de usar, gozar e dispor daquele valor, isto é, não detinha a “propriedade do valor ilícito”, pois dependia de um ato posterior do “laranja” de lhe conferir o. Portanto, se não há “propriedade do ativo ilícito” do beneficiário, a conduta do “laranja”, de simplesmente emprestar sua conta para receber o valor nada mais é do que o recebimento de um valor ilícito, o que poderia configurar crimes como receptação (artigo 180 do ) ou favorecimento real (artigo 349 do ), mas não a dissimulação de uma “propriedade do ativo ilícito”, que não existia.
Em suma, a mera transferência de valores ilícitos para o “laranja” sem que o beneficiário mantenha o poder fático sobre esses valores não pode ser conduta típica de lavagem de dinheiro, pois não há propriedade para o “laranja” dissimular.
Caso 2: neste caso, ao receber em sua conta bancária o depósito de um valor proveniente de infração penal a pedido do beneficiário deste valor, o “laranja” foi posto na condição de titular do crédito proveniente de infração penal em sua conta bancária, segundo o Direito privado.
Na sequência, informou ao beneficiário a senha para ar a conta bancária e lhe deu um cartão de crédito, de modo que o beneficiário manteve o poder fático de usar, gozar e dispor daquele valor, isto é, detinha a “propriedade do valor ilícito” para fins do tipo penal de lavagem de dinheiro.
O beneficiário detinha o poder fático, mas quem ocupava a posição formal de proprietário era o “laranja”, existindo assim o descomo que torna a conduta objetivamente típica, pois o “laranja” dissimulou a propriedade do valor proveniente de infração penal.
Vale destacar que caso a forma com que o “laranja” desse o ao beneficiário envolvesse o nome deste ostensivamente (por exemplo: emitir um cartão vinculado à conta, mas em nome do beneficiário), não existiria o necessário descomo, pois o beneficiário aria a exercer a posição formal, no mínimo, de possuidor, o que já engloba o poder fático do tipo, que não estará dissimulado.
Caso 3: neste caso, ao figurar na escritura do imóvel comprado com valores ilícitos a pedido do beneficiário, o “laranja” é posto na condição formal de proprietário deste imóvel, segundo as regras do Direito privado.
Na medida em que o beneficiário era quem detinha efetivamente o poder fático sobre esse imóvel, podendo dele usar, gozar e dispor, isto é, detinha a “propriedade do ativo ilícito” para fins do tipo penal de lavagem de dinheiro, a conduta do “laranja” é objetivamente típica. O beneficiário detinha o poder fático, mas quem ocupava a posição formal de proprietário era o “laranja”, existindo descomo que torna a conduta objetivamente típica, pois o “laranja” dissimulou a propriedade do imóvel proveniente de infração penal.
Caso 4: neste caso, ao figurar no contrato de aluguel como locatário do imóvel a pedido do beneficiário, o “laranja” é posto na condição formal de quem pode exercer alguns dos poderes de proprietário em relação ao imóvel, mas não com relação aos valores em espécie que foram armazenados no imóvel.
A aquisição formal da propriedade desses valores depende, em última instância, de sua posse e quem a tinha era o beneficiário, que ava o imóvel. Portanto, a conduta do “laranja”, neste caso, não é objetivamente típica da lavagem de dinheiro, pois não criou o descomo entre a ocupação da posição formal de proprietário dos valores e quem exercia o poder fático de usar, gozar e dispor sobre eles. O simples fato de constar como locatário do imóvel não coloca o “laranja” naquela posição formal, afastando assim a tipicidade de sua conduta.
Ressalte-se que seria possível que o “laranja” fosse penalmente responsabilizado pelo crime de favorecimento real (artigo 349 do ) e, até mesmo, por lavagem de dinheiro a título de participação (artigos 29 e 31, ambos do ), caso o beneficiário praticasse algum ato posterior de ocultação ou dissimulação das características daqueles valores.
Caso 5: neste caso, ao figurar no contrato social da pessoa jurídica a pedido do beneficiário de valores ilícitos, o “laranja” colocou-se na condição de proprietário pelas regras de Direito privado, mais especificamente era formalmente sócio da pessoa jurídica. Porém, essa conduta de empréstimo do nome para figurar na pessoa jurídica, antes mesmo do bem proveniente de crime estar na esfera de disponibilidade da empresa (ou até mesmo do crime antecedente ter sido cometido), não é típica de lavagem de dinheiro.
No entanto, quando os valores ilícitos são integrados como se fossem lucro proveniente do exercício da atividade econômica da pessoa jurídica, o “laranja” figurará formalmente como o representante da proprietária destes valores, pelas regras de Direito privado. Assim, sua conduta de registrar esses valores como se fossem lucro poderá ser típica do crime de lavagem de dinheiro se o beneficiário mantiver o poder fático de usar, gozar e dispor desses valores, como um de fato desta empresa. Se, por outro lado, o beneficiário não mantiver qualquer poder sobre esses valores, a conduta do “laranja” não será objetivamente típica de lavagem de dinheiro, podendo se encaixar somente como receptação (artigo 180 do ) ou favorecimento real (artigo 349 do ).
Conclusão
Ao final, observa-se que, na prática, os casos de lavagem de dinheiro que envolvem “laranjas” sofrem indevida contaminação pela carga negativa que o termo carrega.
Porém, partindo da premissa de que o termo “laranja” significa tão somente pessoa que permite que ativos provenientes de infração penal sejam registrados em seu nome, mesmo não sendo o real beneficiário, foi possível realizar exposição analítica sobre se esse comportamento é ou não objetivamente típico do crime de lavagem de dinheiro, chegando-se às seguintes conclusões:
1) trata-se de conduta que envolve a característica da “propriedade de ativos ilícitos”, que deve ser compreendida como o poder fático de usar, gozar e dispor desse ativo;
2) para que seja conduta objetivamente típica, é preciso que o “laranja” assuma formalmente a qualidade de proprietário do ativo, nos moldes exigidos pelo Direito privado, mas que o poder fático do beneficiário se mantenha, surgindo assim uma situação de descomo entre aquele que é formalmente proprietário e aquele que detém o poder fático;
3) em situações nas quais o “laranja” empresta o nome a pedido do beneficiário e recebe os ativos, mas não confere o fático àquele, não há que se falar em lavagem de dinheiro, pois inexistente o objeto da conduta e
4) em situações nas quais o “laranja” empresta o nome a pedido do beneficiário, mas não ocupa a posição formal de proprietário do ativo ilícito, também não há que se falar em conduta típica, pois inexistente a conduta de dissimular, isto é, o descomo entre quem é formalmente proprietário e quem detém o poder fático de usar, gozar e dispor do ativo ilícito.
Porém, caso os requisitos acima expostos não estejam presentes, ainda não está excluída a responsabilidade penal do “laranja”, que poderá ser responsabilizado pelo concurso de pessoas, a partir da regra de extensão da punibilidade prevista no artigo 29 do . Ou seja: embora não seja o autor do delito do artigo 1º, caput, da Lei nº 9.613/1989, o “laranja” pode ser coautor ou partícipe, cuja análise demandará a aplicação dos critérios dogmáticos do concurso de agentes.
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