Opinião

SPcriança e adolescente: abordagem criminológica da Resolução SSP nº 60

Autor

  • é professor de Criminologia Direito Penal e Direito Processual Penal da Academia de Polícia Dr. Coriolano Nogueira Cobra (Acadepol) da Strong Business School (Strong FGV) da Universidade Municipal de São Caetano do Sul (USCS) e da Universidade Nove de Julho (Uninove) doutorando e mestre em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC) delegado de polícia do estado de São Paulo (PC-SP).

    Ver todos os posts

4 de novembro de 2024, 18h24

A Resolução SSP nº 60, de 25 de outubro de 2024, publicada no Diário Oficial do Estado de São Paulo, institui o Sistema de Informações e Enfrentamento à Violência contra Criança e Adolescente, denominado SPcriança e adolescente. Esse sistema visa consolidar e monitorar dados relativos a crimes envolvendo crianças e adolescentes, seja como vítimas, testemunhas ou em situação de conflito com a lei. A integração de tais dados é realizada pela Secretaria da Segurança Pública, permitindo o rápido e organizado para policiais civis, militares e peritos.

Reprodução/TV Brasil

Um aspecto relevante do SPcriança e adolescente é a criação do Núcleo Estratégico Interdisciplinar, fórum de cooperação que integra forças de segurança, redes de proteção e representantes da sociedade civil. Este núcleo tem por objetivo subsidiar a análise de crimes e auxiliar na formulação de políticas públicas integradas para enfrentar problemas criminais identificados. Além disso, o núcleo será responsável pela produção de relatórios periódicos, que serão disponibilizados de forma transparente ao público, observando as legislações de proteção de dados. A implementação oficial do sistema ocorrerá em janeiro de 2025, integrando-se ao Sistema Estadual de Coleta de Estatísticas Criminais e promovendo maior transparência e eficiência na formulação de políticas de proteção à infância e adolescência no Estado de São Paulo.

Internacionalmente, diversas iniciativas abordam a proteção infantil por meio de sistemas digitais que coordenam os cuidados e a resposta a situações de violência ou vulnerabilidade entre crianças e adolescentes. Um exemplo é o sistema Primero, desenvolvido pela Unicef e implementado em países como o Uzbequistão. Esta ferramenta de código aberto facilita o monitoramento de casos, o gerenciamento de incidentes e o rastreamento familiar, sendo voltada especialmente para crianças em situações de alta vulnerabilidade, como em contextos de conflito e violência.

O sistema centraliza dados sensíveis, possibilitando uma gestão segura e integrada entre agências estatais responsáveis pelo atendimento às famílias e crianças em risco. Além disso, o IMS+ (Child Protection Information Management System), igualmente desenvolvido pela Unicef em parceria com outras organizações, vem sendo amplamente utilizado em contextos humanitários.

O sistema IMS+ promove a coleta e o compartilhamento seguro de dados, oferecendo uma gestão coordenada entre diferentes agências de proteção infantil em nível global (IMS+, 2018). Na Europa, o sistema Aurora, na Romênia, permite que assistentes sociais monitorem vulnerabilidades específicas de crianças e famílias, orientando a intervenção nacional de acordo com o e necessário. Na Croácia, o SocSkrb centraliza dados e facilita o o a serviços sociais para crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade (Unicef, 2020).

Proteção infantil no exterior

No Reino Unido e nos Estados Unidos, também há sistemas de proteção infantil com funções semelhantes ao Sipia, visando ao gerenciamento de informações de crianças em situação de risco. O sistema Child Protection — Information Sharing (-IS), istrado pelo NHS no Reino Unido, integra dados de proteção social com o setor de saúde. Esse sistema atende crianças com planos de proteção ou sob tutela, permitindo que profissionais de saúde em informações pertinentes de forma segura. Ao cobrir todas as autoridades locais na Inglaterra, o -IS facilita uma resposta coordenada entre os setores de saúde e proteção social (NHS Digital, 2024).

Nos Estados Unidos, os Child Protection Case Management Information Systems (CMIS) promovidos por Usaid e Measure Evaluation criam plataformas digitais padronizadas, focando na proteção de crianças em situação de risco e na eficiência do acompanhamento contínuo dessas populações vulneráveis (Data For Impact, 2020).

No Brasil, o Sipia (Sistema de Informação para a Infância e Adolescência) é uma ferramenta fundamental para a proteção de crianças e adolescentes, sendo utilizada pelos conselhos tutelares. Este sistema permite a coleta e monitoramento de dados sobre violações de direitos, abrangendo casos de negligência, violência física, psicológica e abuso sexual, com o objetivo de identificar padrões e apoiar a formulação de políticas públicas voltadas à proteção infantil.

O SPcriança e adolescente, instituído pelo estado de São Paulo, concentra-se na integração de informações para uma resposta ágil e eficiente no contexto da segurança pública. Diferente do Sipia, que é voltado principalmente para os Conselhos Tutelares, o SPcriança e adolescente permite que policiais e agentes da Secretaria de Segurança Pública tenham o rápido aos históricos de denúncias e registros policiais, especialmente em situações emergenciais.

Spacca

Para analisar o perfil de vítimas e agressores no contexto da violência infantil, o conceito de “disponibilidade das vítimas”, fundamentado na teoria das atividades rotineiras, oferece uma base criminológica útil. Essa teoria enfatiza que a vulnerabilidade de uma vítima não é apenas uma questão de fraqueza individual, mas também de circunstâncias sociais e de rotina que aumentam a exposição ao risco (Siena, 2024). Crianças e adolescentes se encontram em situação de risco devido às atividades cotidianas que muitas vezes os colocam em contato direto com potenciais agressores (v.g., coabitantes, vizinhos, familiares).

A análise dos dados coletados pelo sistema SPcriança e adolescente permitirá identificar padrões de vitimização recorrentes e fortalecer a proteção preventiva, conforme sugere a abordagem criminológica de atividades rotineiras para a redução da exposição a situações de risco.

A literatura criminológica tem explorado as causas, consequências e dinâmicas do abuso infantil, englobando maus-tratos físicos, emocionais, abuso sexual e negligência. Pesquisadores como David Finkelhor (1983) destacam a complexidade dos fatores envolvidos na violência contra crianças, que abrangem aspectos familiares, sociais e culturais. Finkelhor propôs o modelo dos “quatro pré-condicionantes” para o abuso sexual, que analisa as motivações e barreiras para a ocorrência de abuso. Widom (1989), por sua vez, investigou a relação entre abuso infantil e criminalidade adulta, mostrando que crianças vítimas de violência tendem a apresentar maior propensão ao envolvimento em comportamentos delinquentes posteriormente.

Além disso, a criminologia da infância preocupa-se com a criação de políticas públicas e sistemas de justiça que assegurem a proteção dos direitos das crianças. A implementação de abordagens como o modelo de “proteção integral” e o desenvolvimento de sistemas de informação, como o Sipia no Brasil e o -IS no Reino Unido, são esforços que visam compreender e prevenir a violência infantil com base em dados concretos.

Comportamento criminoso

Estudos longitudinais também revelam achados importantes sobre o comportamento criminoso ao longo da vida, incluindo a influência de fatores acumulativos. Segundo Farrington (2003), crianças expostas a múltiplos fatores de risco, como pobreza e ambientes familiares instáveis, têm mais probabilidade de desenvolver comportamentos delinquentes. Moffitt (1993) sugeriu duas trajetórias de desenvolvimento: uma de “delinquentes vitalícios” e outra de “delinquentes temporários”, ambas influenciadas por fatores sociais e ambientais.

Outros autores, como Sampson e Laub (2003), ressaltam que intervenções precoces, focadas no fortalecimento dos laços sociais e na educação, podem diminuir a probabilidade de envolvimento com a criminalidade. Rutter (1997) identifica fatores de proteção, como apoio familiar e engajamento escolar, que podem reduzir os riscos de delinquência. Fields e McNamara (2003) defendem a prevenção primária e secundária como abordagens centrais que mostram resultados promissores, mas carecem de maior rigor para uma redução consistente da violência juvenil.

Esses sistemas de proteção relacionam-se com a criminologia longitudinal, que analisa o desenvolvimento e as mudanças nos comportamentos delinquentes ao longo do tempo. Ao monitorar fatores de risco e ocorrências de abuso infantil, sistemas como o -IS no Reino Unido e o CMIS nos EUA fornecem aos pesquisadores dados valiosos sobre as trajetórias de risco (Data For Impact, 2020).

Esse tipo de dado longitudinal oferece insights sobre a persistência e a descontinuidade dos comportamentos, fatores de proteção e as influências ambientais e sociais que podem mitigar ou agravar as trajetórias de risco. BMJ (2024) recomenda a integração entre proteção infantil e combate à violência de gênero para potencializar esforços na vulnerabilidade de adolescentes. Essa integração de dados e de setores destaca a importância de sistemas como o SPcriança e adolescente, que propõem dados integrados e ações articuladas no combate ao abuso.

Contudo, esses sistemas também enfrentam críticas. Especialistas destacam que, ao priorizar dados quantitativos e o monitoramento de riscos, os sistemas podem simplificar complexas questões familiares, resultando em intervenções menos sensíveis e personalizadas. Ademais, a coleta intensiva de dados suscita preocupações quanto à privacidade e à possibilidade de vazamento de informações, comprometendo a confiança das famílias no sistema (Parton, 2022).

Há também uma tendência a adotar uma abordagem punitiva, que pode alienar famílias de baixa renda e grupos minoritários, aumentando o risco de intervenções desproporcionais por parte das autoridades (Parton, 2020).

Enfrentamento de crimes contra crianças e adolescentes

Diante dessas críticas, é essencial que tais sistemas integrem uma visão mais equilibrada entre monitoramento e assistência direta, com salvaguardas para garantir a proteção da privacidade e o respeito à diversidade cultural (Parton, 2022a). O SPcriança e adolescente representa uma iniciativa relevante para a proteção de crianças e adolescentes no estado de São Paulo, promovendo a integração de dados e ações entre diferentes órgãos de segurança pública e de proteção social. Através de uma abordagem coordenada, o sistema visa a agilizar o o a informações sobre casos de violência, abuso e outras situações de risco, permitindo uma resposta mais eficaz e bem fundamentada em situações emergenciais.

Esse modelo de integração tem potencial para fortalecer o enfrentamento de crimes contra crianças e adolescentes, bem como para auxiliar na criação de políticas públicas preventivas e protetivas, ao reunir dados de diferentes fontes e possibilitar o monitoramento sistemático dos casos. Assim, o SPcriança e adolescente pode ser visto como um avanço no uso de tecnologia e dados para amparar a segurança pública e promover a proteção integral de menores de idade, alinhando-se a tendências globais de sistemas informatizados voltados ao cuidado e à proteção de vulneráveis.

Entretanto, é fundamental observar que, assim como outros sistemas internacionais, o SPcriança e adolescente também enfrenta desafios éticos e práticos que exigem atenção. Questões de privacidade, segurança dos dados e a possibilidade de adoção de abordagens punitivas que, em alguns contextos, poderiam prejudicar famílias vulneráveis, precisam ser cuidadosamente abordadas para garantir que o sistema opere de forma justa e protetiva.

Adotar salvaguardas que assegurem o uso ético dos dados, além de promover uma abordagem que priorize o apoio e a prevenção sobre a punição, são estratégias essenciais para evitar a estigmatização ou intervenções desproporcionais. Dessa forma, o sucesso do SPcriança e adolescente dependerá de sua capacidade de equilibrar o monitoramento rigoroso com práticas de apoio sensíveis ao contexto familiar e social, tornando-se uma ferramenta verdadeiramente eficaz e humanitária no enfrentamento da violência contra crianças e adolescentes.

__________________________

Referências

  • BMJ. Integrated Approaches to Child Protection and Gender-Based Violence: Recommendations for Adolescent Care. British Medical Journal, v. 368, p. 34-45, 2024.
  • CHILD PROTECTION INFORMATION MANAGEMENT SYSTEM (IMS+). Review Report: A Review on the Utility, Systems-Effectiveness, and Deployability of the Tool. Better Care Network, 2018. Disponível em: https://bettercarenetwork.org/sites/default/files/IMS%2B%20Review%20Report%20%28Full%20Version%29%20-%20A%20Review%20on%20the%20Utility%2C%20Systems-Effectiveness%2C%20and%20Deployability%20of%20the%20Tool%20%282018%29_pdf.pdf. o em: 30 out. 2024.
  • IMS+. Introduction. 2024. Disponível em: https://www.ims.org/introduction. o em: 30 out. 2024.
  • DATA FOR IMPACT. Child Protection Case Management Information Systems: Promoting Appropriate Care for Children – A Framework for Engagement. 2020. Disponível em: https://www.data4impactproject.org/publications/child-protection-case-management-information-systems-promoting-appropriate-care-for-children-a-framework-for-engagement/. o em: 30 out. 2024.
  • FARRINGTON, D. P. Developmental and life-course criminology: Key theoretical and empirical issues—the 2002 Sutherland Award address. Criminology, v. 41, n. 2, p. 221-255, 2003.
  • FIELDS, M.; McNAMARA, J. Addressing Juvenile Delinquency: Early Intervention and Risk Reduction Strategies. Youth and Society, v. 35, n. 3, p. 348-362, 2003.
  • FINKELHOR, D. The Prevention of Childhood Sexual Abuse. Journal of Interpersonal Violence, v. 18, n. 4, p. 412-429, 1983.
  • MOFFITT, T. E. Adolescence-limited and life-course-persistent antisocial behavior: A developmental taxonomy. Psychological Review, v. 100, n. 4, p. 674-701, 1993.
  • NHS DIGITAL. Child Protection Information Sharing Service. 2024. Disponível em: https://digital.nhs.uk/services/child-protection-information-sharing-service. o em: 30 out. 2024.
  • PARTON, N. Comparative Research and Critical Child Protection Studies. Social Sciences, v. 11, n. 4, p. 156, 2022. Disponível em: https://doi.org/10.3390/socsci11040156. o em: 30 out. 2024.
  • PARTON, N. Critical Child Protection Studies: An Introduction. Social Sciences, v. 11, n. 10, p. 444, 2022. Disponível em: https://doi.org/10.3390/socsci11100444. o em: 30 out. 2024.
  • PARTON, N. Critical Debates and Developments in Child Protection: Some Introductory Comments. Social Sciences, v. 9, n. 6, p. 102, 2020. Disponível em: https://doi.org/10.3390/socsci9060102. o em: 30 out. 2024.
  • RUTTER, M. Psychosocial resilience and protective mechanisms. American Journal of Orthopsychiatry, v. 57, n. 3, p. 316-331, 1997.
  • SAMPSON, R. J.; LAUB, J. H. Life-course desisters? Trajectories of crime among delinquent boys followed to age 70. Criminology, v. 41, n. 3, p. 555-592, 2003.
  • SIENA, David Pimentel Barbosa de. Criminologia, ed.1. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2024.
  • UNICEF. Child Protection Information Management Systems: Promoting Appropriate Care for Children – A Framework for Engagement. 2020. Disponível em: https://www.unicef.org/eca/media/14386/file. o em: 30 out. 2024.
  • WIDOM, C. S. The Cycle of Violence. Science, v. 244, n. 4901, p. 160-166, 1989.

Autores

  • é delegado de polícia do Estado de São Paulo, professor de Criminologia da Academia de Polícia "Dr. Coriolano Nogueira Cobra", professor de Direito Penal, graduado em Direito pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, especialista em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura, mestre e doutor em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC, coordenador pedagógico do Curso Superior de Tecnologia em Segurança Pública e coordenador do Observatório de Segurança Pública da Universidade Municipal de São Caetano do Sul, tutor da Rede de Ensino à Distância da Secretaria Nacional de Segurança Pública, pesquisador do Grupo de Pesquisa em Segurança, Violência e Justiça da UFABC e membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!