Opinião

Cirurgia plástica estética no Brasil: a controvérsia sobre a obrigação de resultado

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  • é pós-graduada em Direito Médico Ética e Compliance na Saúde pelo Albert Einstein Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa pós-graduada em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Fundação de Ensino Euripedes Soares da Rocha professora de Pós- Graduação em Direito Médico diretora Científica do IEST- Instituto de Ensino Samantha Takahashi fundadora do Treinamento Avançado em Direito Médico palestrante e mentora de advogados.

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5 de novembro de 2024, 6h04

Segundo o Conselho Federal de Medicina [1], a cirurgia plástica é a terceira especialidade mais processada no Brasil, atrás apenas da ginecologia e obstetrícia e traumatologia e ortopedia. No entanto, diferente do que acontece nas demais especialidades, judicialmente, a responsabilidade civil do cirurgião plástico é aferida com um rigor desproporcional, desarrazoado, injusto e injustificável, no que tange à natureza da obrigação assumida contratualmente.

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A cirurgia plástica, especialidade que tem por finalidade modificar/alterar a aparência externa, melhorando ou majorando a percepção do belo, pode ser executada sob dois vieses: reparadora ou estética. Na primeira, o médico opera uma área em que houve perda da funcionalidade, trabalhando os conceitos de restauração da função e da beleza, em conjunto.

A título de exemplo, uma cirurgia de reconstrução de mamas após um procedimento de mastectomia ou remoção parcial da mama é tido como cirurgia plástica reparadora. Já a cirurgia plástica estética é daquelas em que a balança do objetivo pende para a beleza. O médico, um artista plástico do corpo humano, molda, altera e reconstrói áreas, que embora não tenham perdido a funcionalidade, muitas vezes perderam a vitalidade, a beleza.

No entanto, não se pode negligenciar neste conceito o fato de que, também na cirurgia estética, o médico corrige deformidades: simetriza o assimétrico, devolve volume ao que estava desprovido dele, corrige ptoses devolvendo ao lugar aquilo que gravidade naturalmente colocou abaixo.

Na prática, o que se observa é que, ao operar uma mesma área, a obrigação assumida pelo médico pode ser tratada com mais ou menos rigidez, a depender da qualificação que se dê à cirurgia, ou seja, um tratamento jurídico completamente desigual.

A cirurgia plástica é a especialidade da beleza, mas também da autoestima, falemos ou não sobre reconstrução, funcionalidade ou apenas satisfação pessoal. Seja ela reparadora ou estética, muitas vezes um procedimento plástico cura depressão, ansiedade e também gigantomastia, orelhas proeminentes.

No entanto, em que pese a exigência de alta capacitação técnica do profissional e o indiscutível senso estético e artístico necessário, a cirurgia plástica embelezadora é sempre tratada com mais rigor.

Obrigação de resultado

Spacca

Como visto, dentro da própria especialidade, enquanto uma cirurgia reparadora recebe a “etiqueta” de obrigação de meio, as cirurgias plásticas estéticas são tidas como obrigações de resultado, exigindo-se do médico a entrega da satisfação, do êxito, condicionando o seu adimplemento à satisfação do paciente.

Afirma-se que esse rigor deriva do fato de que o paciente não padecia de qualquer patologia quando aceitou submeter-se a uma cirurgia plástica, e que, portanto, caberia ao médico entregar um resultado superior ao que existia antes.

Ao pensar desta maneira, está-se, certamente, ignorando o conceito de saúde traçado pela OMS: “saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente a ausência de afecções e enfermidades”.

Ora, se não há um estado de completo bem-estar, inclusive, social, a cirurgia plástica é um tratamento à saúde, necessária para a melhoria da qualidade de vida, da percepção de si, da autoaceitação. E assim como todas as outras especialidades médicas, a cirurgia plástica também não é uma ciência de resultados, e sim de meios.

Este, aliás, é o entendimento do Conselho Federal de Medicina, quanto à natureza da obrigação assumida pelo médico em uma cirurgia plástica estética.

E em que pese devesse o Judiciário beber da fonte do CFM, outorgando validade jurídica àquilo que foi definido por quem realmente possui competência para tal, o que se vê é um posicionamento contrário, e quiçá injusto.

Resolução CFM 1621/2001: cirurgia plástica estética como obrigação de meios e não de resultado

A Lei 3.268/57 concedeu aos órgãos de classe médica,  Conselhos Federal e Regionais de Medicina, a atribuição legal para “promover, por todos os meios ao seu alcance, o perfeito desempenho técnico e moral da medicina”, cabendo exclusivamente a esses definir questões técnicas relacionadas à área da saúde.

Ao outorgar essa competência, a lei definiu, com inteligência, que os médicos são a única classe capaz de compreender as vicissitudes do corpo humano, seus limites, peculiaridades e fragilidades, razão pela qual pertence ao seu órgão regulamentador o poder de definir a natureza da obrigação que pode, no caso concreto, ser ou não assumida pelo médico.

Médicos entendem de corpo humano, enquanto juízes, com o devido respeito, entendem de processos, leis e justiça.

O CFM, ancorado na autoridade que possui sobre a matéria, definiu, através da Resolução 1.621/2001, que, assim como nas demais especialidades médicas, a obrigação assumida pelo médico na cirurgia plástica estética é uma obrigação de meios, compreendendo exclusivamente o dever de empregar as melhores técnicas disponíveis a fim de buscar o melhor resultado possível, sem garantir o alcance da satisfação subjetiva do paciente.

Art. 4. O objetivo do ato médico na Cirurgia Plástica, como em toda a prática médica, constitui obrigação de meio e não de fim ou resultado.

O entendimento do CFM é baseado na constatação de que o corpo humano é dotado de imprevisibilidades, sobre as quais o médico não detém controle absoluto, esteja realizando uma neurocirurgia ou uma cirurgia plástica estética.

O Judiciário, ao fixar entendimento de que o médico assume o compromisso de entregar um resultado, além de exitoso, satisfatório ao paciente, pode estar usurpando competência do Conselho Federal de Medicina, já que não detém legitimidade para tanto.

Como bem explanado pela professora Hildegard Girostri (1998), “cirurgias estéticas, ainda que visem um aprimoramento estético, não podem ser tratadas como meras obrigações de resultado, pois o corpo humano é uma ‘zona aleatória’ sobre a qual o médico não tem total controle”.

Impor ao médico o dever de satisfazer os desejos subjetivos do paciente caminha, em nosso sentir, para uma flagrante injustiça, pois se, de forma paradigmática, o Código Civil prevê como potestativa a cláusula que deixa ao arbítrio exclusivo de uma das partes a fixação do preço, do mesmo modo, considerar que o adimplemento do contrato de prestação de serviços médicos estéticos está condicionado à satisfação integral do paciente é uma arbitrariedade.

Necessária interpretação objetiva da obrigação de resultado

Em que pese ainda figure como protagonista nas decisões judiciais a famigerada obrigação de resultado, exigindo-se que não só o êxito do procedimento seja garantido pelo médico, mas também a satisfação subjetiva do paciente, esse não é, segundo nosso entendimento, a melhor interpretação.

Como destacado no tópico anterior, outorgar a apenas uma das partes o direito de declarar ou não adimplido um contrato, constitui exigência leonina.

Objetivamente, o sucesso de um procedimento cirúrgico estético deve ser medido a partir da análise de quatro fatores: indicação adequada; técnica bem executada; ausência de intercorrências; e melhoria da área operada.

Uma análise objetiva avalia se a indicação do procedimento foi adequada para tratar as queixas do paciente; se a técnica, avaliada sob critérios eminentemente técnicos, foi executada dentro dos parâmetros da literatura médica; se não existiram intercorrências, ou havendo, se a possibilidades destas foi previamente informada ao paciente, bem como, se houve melhoria da área operada.

No que tange ao último requisito, é importante distinguir “melhoria da área operada”, de “satisfação dos desejos subjetivos do paciente”.

A melhoria da área operada deve ser avaliada mediante um comparativo entre a aparência da região antes e depois do procedimento, de maneira que, se houve visivelmente uma melhora, ainda que não correspondente à expectativa do paciente, a obrigação de resultado foi cumprida.

Este é o único critério justo e aceitável para avaliação da conduta médica em cirurgias plásticas estéticas, uma análise realista e não fantasiosa ou irreal, como muitas vezes é exigida processualmente.

Nada suscita maior perplexidade do que a constatação de que um resultado cirúrgico irretocável é causa de insatisfação para o paciente, levantando hipóteses de irracionalidade, transtorno mental ou má-fé, daí porque essa análise deve ser objetiva e não subjetiva, sob pena de se deixar ao arbítrio exclusivo de uma das partes a quitação deste contrato, o que como dito deve ser vedado.

Neste sentido já tem caminhado a jurisprudência:

ERRO MÉDICO. Sentença de improcedência. APELAÇÃO. Insurgência da parte autora. Cerceamento de defesa não configurado. Provas que eram suficientes para julgamento da demanda. Cirurgia plástica. Autora que se submeteu a mamoplastia e blefaroplastia. Laudo pericial que concluiu pela “melhora do aspecto das mamas em relação ao apresentado antes da cirurgia”. Nexo causal não comprovado. RECURSO DESPROVIDO. (TJSP;  Apelação Cível 1105309-52.2021.8.26.0100; Relator (a): Maria Salete Corrêa Dias; Órgão Julgador: 2ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível – 26ª Vara Cível; Data do Julgamento: 08/04/2024; Data de Registro: 08/04/2024)

APELAÇÃO CÍVEL. Responsabilidade civil. Erro médico. Sentença de improcedência. Insurgência. Cirurgia plástica estética de mamas. Insatisfação da paciente com o resultado obtido. Perícia médica que aponta para a boa técnica médico-cirúrgica. Inexistência de culpa, imperícia ou negligência. Sentença mantida na forma do art. 252 do RITJSP. Recurso desprovido. (TJ-SP – AC: 10011197220208260100 São Paulo, Relator: Pastorelo Kfouri, 7ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 27/04/2023)

Conforme destaca Hildegard Girostri, “cirurgias embelezadoras envolvem fatores fora do controle do cirurgião, e a eventual insatisfação do paciente não pode ser automaticamente vista como falha profissional”.

Entende-se, portanto, que a insatisfação subjetiva do paciente não deve ser suficiente para o reconhecimento de indenização, especialmente quando há evidências de que a técnica foi corretamente aplicada e o procedimento cirúrgico cumpriu seu propósito técnico.

Teoria da obrigação é arbitrária

A adoção da teoria da obrigação de resultado em cirurgias estéticas, pautada exclusivamente em critérios subjetivos para aferição do adimplemento, além de divergir do entendimento técnico consagrado pelo Conselho Federal de Medicina, reputa-se arbitrária. 

O médico, em qualquer especialidade, assume uma obrigação de meio, comprometendo-se a utilizar os melhores métodos e técnicas disponíveis, sem, contudo, garantir o resultado final. Essa distinção é fundamental para a proteção da prática médica e a justiça na responsabilização dos profissionais de saúde, independente do ato médico praticado: seja um procedimento estético ou reparador; uma cirurgia ortopédica, ginecológica ou uma cirurgia plástica.

A imposição de uma obrigação de resultado pautada na satisfação da expectativa do paciente coloca os médicos em uma posição de extrema vulnerabilidade, sujeitando-os a uma responsabilidade desproporcional frente às incertezas inerentes ao corpo humano.

Portanto, é imperativo que a interpretação jurídica esteja alinhada aos princípios que regem a prática médica, reconhecendo que o adimplemento da obrigação médica deve ser avaliado sob o prisma do uso adequado dos meios disponíveis, ou no mínimo, sob critérios objetivos de avaliação do resultado obtido e melhoria da área operada.

 


[1] Conselho Federal de Medicina apud Associação Paulista de Medicina. Infográfico apresenta panoramas da judicialização da Saúde e da Medicina no Brasil. Disponível em: https://www.apm.org.br/ultimas-noticias/infografico-apresenta-panoramas-da-judicializacao-da-saude-e-da-medicina-no-brasil/. o em 15/09/2024. 

Referências

  • ASSOCIAÇÃO PAULISTA DE MEDICINA. Infográfico apresenta panoramas da judicialização da saúde e da medicina no Brasil. Disponível em: https://www.apm.org.br/ultimas-noticias/infografico-apresenta-panoramas-da-judicializacao-da-saude-e-da-medicina-no-brasil/. o em 15/09/2024
  • BRASIL. Lei N. 3268 de 30 de setembro de 1957. Dispõe sobre os Conselhos de Medicina e, dá outras providências. Rio de Janeiro, RJ: Diário Oficial da União, 1957.
  • CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM 1621/2001. Disponível em: https://portal.cfm.org.br. o em 15/09/2024.
  • DANTAS, Eduardo. A Natureza da Obrigação Médica em Procedimentos Estéticos. Revista de Direito Médico, 2005.
  • GIROSTRI, Hildegard. Cirurgia Estética e a Obrigação de Resultado. Revista Platiko’s, jul/ago 1998.
  • TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO, Apelação Cível 1105309-52.2021.8.26.0100, Relatora Maria Salete Corrêa Dias; Órgão Julgador: 2ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível – 26ª Vara Cível; Data do Julgamento: 08/04/2024; Data de Registro: 08/04/2024.
  • TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO, Apelação Cível 10011197220208260100 São Paulo, Relator: Pastorelo Kfouri, 7ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 27/04/2023.

Autores

  • é pós-graduada em Direito Médico, Ética e Compliance na Saúde pelo Albert Einstein Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa, pós-graduada em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Fundação de Ensino Euripedes Soares da Rocha, professora de Pós- Graduação em Direito Médico, diretora Científica do IEST- Instituto de Ensino Samantha Takahashi, fundadora do Treinamento Avançado em Direito Médico, palestrante e mentora de advogados.

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