Turbulências olímpicas no horizonte: as eleições no COB
2 de outubro de 2024, 17h17
Os Jogos Olímpicos acabaram, mas não os jogos de poder envolvendo a eleição para presidente do Comitê Olímpico Brasileiro que ocorre nesta quinta, dia 3 de outubro.

Não é de hoje que o estamento esportivo tenta perpetuar-se na gestão das organizações que desenvolvem o desporto de alto rendimento, mas a atual eleição tem um componente capaz de paralisar todo o funcionamento da máquina desportiva, colocando em risco a própria higidez do sistema.
Antes de adentrar um pouco na temática, é importante explicar para aqueles que desconhecem o sistema de financiamento do desporto de alto rendimento como ele funciona, sem grandes pretensões, contudo, de fazer-se um estudo aprofundado do tema, o que já fiz por ocasião da apresentação de dissertação de mestrado em que escrevi sobre autonomia constitucional das organizações desportivas e sua relação com o Estado. [1]
Observou-se durante a pesquisa acadêmica que o Comitê Olímpico do Brasil, bem como os demais comitês contemplados com recursos públicos advindos das loterias, funciona como se fosse uma agência privada de fomento público.
Explico: com a evolução da autonomia desportiva, quer na carta olímpica, quer na Constituição, as funções de fomento antes desenvolvidas diretamente pelo Estado aram para as mãos de organizações desportivas privadas dotadas de autonomia constitucional, mas que gerem recursos públicos, distribuindo muitos milhões de reais às organizações de istração de desporto, como as confederações olímpicas.
Apenas a título de informação, somente o Comitê Olímpico do Brasil recebeu em 2023 o valor aproximado de R$400 milhões [2], excluindo-se patrocínios de bancos públicos e empresas privadas, o que demonstra o tamanho do problema.
Contudo, a partir da Lei 12.868/2013, o Estado ou a exigir uma série de contrapartidas relacionadas à governança da gestão como condição para que estas entidades continuassem recebendo rees da istração direta ou indireta, impondo uma única recondução e mandatos de quatro anos.
Atual presidente considera primeira reeleição
Neste contexto, a possibilidade de permanência do atual presidente do COB e as consequências de um terceiro mandato tornou-se uma questão nodal. Advoga o atual mandatário seu direito de concorrer a uma segunda recondução, considerando que fora eleito pela primeira vez apenas em 2020, fazendo jus a uma recondução de mais quatro anos, apesar de ter ascendido à posição de dirigente máximo do Comitê no ano de 2017, após a renúncia do então presidente Carlos Nuzman.
Argumenta que seu direito seria violado à medida em que somente fora eleito em 2020, não se podendo considerar sua gestão tampão como um mandato. Todavia, ponderamos que não se trata apenas de possibilitar-se uma nova recondução, mas de violar-se a limitação temporal que um gestor pode permanecer na presidência de uma organização desportiva.
A norma insculpida no artigo 18-A, inciso I da Lei Pelé é de certa forma repetida com outra redação no artigo 36, X, inciso ‘e’ na nova Lei Geral do Esporte, e ambas impõem no máximo dois mandatos consecutivos, com prazo máximo de quatro anos. Logo, há duas prescrições na norma que não podem ser ignoradas. Uma diz respeito ao número de mandatos e a outra sobre a extensão destes mandatos, limitando-se o período de permanência a oito anos.
Assim, ainda que se entenda que é possível uma nova recondução, é inegável que o atual presidente, se eleito, extrapolará o prazo de permanência no posto de dirigente máximo da organização.
Mas podemos seguir com outras considerações jurídicas que colocam em dúvida se a decisão do Comissão Eleitoral endossando a candidatura do atual presidente encontra-se, efetivamente, em acordo à intenção da norma e ao próprio estatuto da organização.
Lei geral preza alternância de poder
É importante lembrar que a própria Lei 12.868/2013, ao alterar a Lei Pelé, dispôs em seu artigo 18-A, §3º, inciso I, que estavam preservados o direito adquirido dos gestores que se encontravam no exercício dos cargos de dirigente máximo da organização quando da edição da alteração legislativa, resguardando seus mandatos e constituindo-se em uma verdadeira regra de transição. Logo, com o término destes mandatos, os efeitos de referido artigo foram exauridos, não sendo o caso de ultratividade da norma para atender situação fática posterior.
Assim, ao assumir o posto de vice-presidente em 2016, as normas que previam a limitação de mandato e sua extensão já encontravam-se produzindo seus efeitos, não se mostrando, salvo melhor juízo, legal uma nova recondução. Embora o COB tenha alterado seu estatuto em 2017, repetindo a limitação de mandatos, é inquestionável que a restrição decorre da lei, atingindo a organização independentemente da alteração de suas normas, já que optasse por não acolher a mudança legislativa em seu estatuto se veria privada dos recursos públicos.
Com o devido respeito às opiniões contrárias, dentro de uma ponderação de princípios, nos parece que se deva privilegiar aqueles que buscam uma melhoria da gestão do desporto em detrimento aos interesses individuais, sendo a nova lei geral do desporto expressa em elencar como princípio fundamental de esporte a gestão democrática, sendo a ela inerente à própria alternância de poder. Logo, a própria normatividade contida no princípio serve como parâmetro interpretativo para limitar-se a pretendida recondução do atual presidente para seu terceiro mandato.
Sopesa-se, ainda, que ao contrário do que se possa sustentar, não se pode presumir qie haja uma lacuna na lei sobre a validade ou não de um “mandato tampão” para fins de recondução a um novo mandato. Isso porque é intuitivo que um vice-presidente possa se tornar presidente ou dirigente máximo da organização a qualquer momento, seja por morte, renúncia ou afastamento compulsório decorrente de uma decisão de colegiada interna ou mesmo judicial, fazendo incidir sobre seu mandato herdado as vedações que atingiam seu antecessor.
Ao assumir como vice, primeiro mandato estaria computado
O Consultoria Jurídica do extinto Ministério da Cidadania, ao manifestar-se sobre consulta formulada pela Secretaria Especial de Esporte sobre temática similar foi cirúrgica no parecer 00052/2021/CONJUR-MC/CGU/AGU, sustentando que, como o vice-presidente de uma organização desportiva, em face da vacância definitiva do titular, assumiu de forma definitiva e efetiva o cargo de presidente, esse mandato deve ser computado como o primeiro, sendo possível apenas que dispute um único período subsequente. Segue argumentando que, dessa forma, não poderá, caso seja eleito para o mandato subsequente, disputar sua própria reeleição, já que, se fosse vitorioso, estaria exercendo o seu terceiro mandato, o que é vedado.
Nota-se que a Advocacia-Geral da União, além de restringir sua manifestação ao princípio da legalidade estrita, já que não há previsão na Lei Pelé que permita um terceiro mandato, se limitou a cumprir os ditames do inciso XIII do artigo 2º da Lei 9.784/1998, que regula o processo istrativo no âmbito federal, segundo o qual deve-se interpretar a norma istrativa da forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, que neste caso é a preservação dos princípios da melhor governança com a garantia da limitação de mandatos e alternância de poder.
Logo, a eleição do atual presidente do COB para um terceiro mandato poderá cair como um meteoro no sistema desportivo nacional, o qual se verá privado do recebimento dos recursos públicos ante a ausência de cumprimento dos requisitos do artigo 18 e 18-A, da Lei Pelé.
Para desviar-se da observância das regras do artigo 18 e 18-A da Lei Pelé, reiterados no artigo 36 da Lei 14.597/2023, também conhecida como nova Lei Geral do Esporte, observa-se a utilização reiterada de um argumento, já há muito superado pelo Tribunal de Contas da União, como por exemplo no acórdão em plenário 422/2020, de que os recursos provenientes dos concursos de prognósticos seriam próprios das organizações desportivas e, portanto, privados.
Investimento de empresas públicas
Utiliza-se a extraorçamentalidade dos recursos arrecadados com os concursos de prognósticos pela Caixa Econômica Federal e a transferência compulsória desses valores por força da Lei 13.756/2018, para organizações desportivas como um recurso retórico para se negar a origem pública do recurso e, por consequência, esquivar-se do cumprimento dos requisitos exigidos em lei para a percepção de tais recursos.
Não obstante, nos parece incontestável que, sendo a Caixa uma empresa pública de propriedade da União, as rendas auferidas são igualmente públicas, ainda que não integrem o orçamento da União. É o que se extrai do próprio decreto lei 200/1967, que inclui as empresas públicas no rol de entidades da istração indireta.
Não por outra razão, além do desporto, a Lei 13.756/2018, destina parte dos recursos dos concursos de prognósticos ao desenvolvimento de outras políticas públicas como segurança e sistema prisional. Portanto, nos parece sofisma o argumento de que tais recursos são privados.
É bom rememorar que o COB já esteve ameaçado anteriormente de ter seus rees de recursos públicos suspensos após o Ministério Público Federal no Distrito Federal ter constatado o descumprimento de outras condições previstas no mesmo artigo 18 e 18-A, provocando a ausência de certificação do Ministério, orientando a istração pública, por meio da recomendação ministerial 41/2020, a cessar os rees até a regularização da entidade junto ao Ministério da Cidadania sob pena do ajuizamento de ação civil pública.
Feitas estas considerações não é possível excluir-se do conceito de rees de recursos públicos federais da istração direta e indireta mencionado no artigo 18 da Lei Pelé, os rees das loterias da Caixa cujo início ocorreu há mais de duas décadas com a edição da Lei Agnelo Piva.
Risco de esporte perder fonte de investimento
Conclui-se, ao fim, que ao confirmar-se a candidatura e eventual vitória do atual presidente num terceiro mandato e, mantendo-se o posicionamento já externado pela AGU anteriormente, apontando para um reconhecimento de violação do inciso I, do artigo 18-A da Lei Pelé e artigo 36, X, inciso i, da Lei Geral do Esporte e, havendo consequentemente, o descumprimento das condições previstas para o ree dos recursos públicos das loterias, o desporto de alto rendimento corre o risco de ver secar sua principal fonte de custeio e investimento, já que a suspensão dos rees do COB atinge indistintamente todo sistema olímpico, jogando-o para o centro de um furacão que sem dúvida atrairá a atenção dos órgãos de controle que terão seus entendimentos construídos ao longo de anos colocados à prova.
É aguardar para ver, mas nuvens de tempestade se avizinham e possivelmente o sistema olímpico ará por turbulências em breve. A indesejável judicialização quer nos tribunais, quer nas cortes arbitrais é fato que não se pode desconsiderar.
Mas, independentemente de quem vença o escrutínio, uma coisa é certa, já temos dois grandes perdedores: o esporte e a democracia desportiva.
[1]https://repositorio.idp.edu.br/bitstream/123456789/4236/1/DISSERTA%c3%87%c3%83O_Raimundo%20da%20Costa%20Santos%20Neto_MESTRADO%20EM%20DIREITO.pdf , ado em 30/09/2024.
[2] https://www.caixa.gov.br/s/caixa-loterias/rees_sociais_2023.pdf, ado em 39/09/2024.
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