Cuidado! A elegância do ouriço não é hermenêutica (pura)
5 de outubro de 2024, 8h00
E a força da fibra não consiste em que algum fio percorra toda a sua extensão, senão em que muitos fios se sobrepõem mutuamente.
§67, Investigações filosóficas, de L. Wittgenstein.
1. Uma reflexão que veio da psicanálise
Já faz algum tempo que ganhei o livro A Elegância do Ouriço. Acredito que o motivo tenha sido a menção ao ouriço já no título, afinal, todos os que convivem comigo sabem o quanto a obra de Ronald Dworkin é importante para mim. O romance, é claro, não tem muito a ver com a tese do valor defendida por Dworkin, mas, enquanto eu pesquisava algumas referências para questões que me soavam bastante psicanalíticas, encontrei uma resenha que dizia que a elegância do ouriço consistia na capacidade do bicho dormir perto o suficiente dos demais para não morrer de frio, mas numa distância em que não seja espetado. Para quem gosta de psicanálise, como eu, essa leitura carrega muitas possibilidades de reflexões existenciais, mas o que me veio a cabeça quando li foi a teoria de Dworkin (o que talvez a psicanálise também explique…). Pensei na tese da independência do valor porque, como Dworkin mesmo refere, ela é muito difícil de ser classificada em algum nicho filosófico tendo em vista que dialoga com vários e, por isso, acredito, está perto o suficiente para tratar das mesmas categorias, mas não se encaixa exatamente em nenhum, sob pena de ser ferida.
2. Interpretativismo e Hermenêutica filosófica
Dessa forma, acredito que a relação entre a teoria de Ronald Dworkin e a hermenêutica filosófica, por exemplo, seja um tema tão atrativo quanto espinhoso porque, ainda que guardem muitas semelhanças, são propostas “fundacionalmente” distintas. Os pontos de contato são diversos e, não fossem expressos na menção feita a Gadamer no Império do Direito, foram muito bem trabalhados pelos professores Lenio Streck, Francisco Motta e Luã Jung. No entanto, alguns pontos que levam o professor Streck a afirmar que não partilha o todo da obra de Dworkin [1], acabam por evidenciar que esta não é uma relação tão “natural”. Inclusive, se formos hermeneutas e deixarmos que o texto nos diga algo, a controversa nota de rodapé n.2 [2] do capítulo conceitos de interpretação, do O império do direito, em que Dworkin se aproxima de Habermas na defesa de um modelo de interpretação conversacional baseado no modelo de verstehen, explicita essa ruptura.
3. Teoria política como lente privilegiada
Proponho, então, para evitar algumas confusões teóricas, que nosso ajuste “pré-interpretativo” acerca da tese da independência do valor, ao menos neste momento, se estruture a partir da teoria política e não da tradicional leitura a partir da filosofia. É extremamente comum (e adequado) que o ponto de partida para a correta compreensão da tese de Dworkin seja filosófico, afinal, o ataque proposto pelo autor às teorias metaéticas (e ao ceticismo) é muito bem articulado e propõe a releitura de teses que tradicionalmente sustentam as categorias filosóficas – por exemplo o conceito de verdade é construído partir de uma releitura que abrange desde a “lei de Hume” [3] até o construtivismo kantiano. Mas se o domínio moral, para Dworkin, é o domínio do argumento (e não o fato bruto e material) e, por isso, a veracidade das proposições decorre de sua sustentação em uma rede de valores que se reforçam reciprocamente e é tão abrangente quanto o possível, por que não enfrentar o espinhoso tema das respostas corretas em Direito (também) a partir de sua teoria política?

Lembremos que, para Dworkin, “quando ocorre de princípios conflitarem, é a teoria política que vai ser decisiva ao sugerir que princípio se ajusta a um sentido mais agudo de justiça no qual seguirá, em consequência, a interpretação do juiz” [4]. Para o professor Lenio Streck esta não seria uma articulação necessária porque as questões de teoria política já estão sedimentadas no (con)texto da nossa Constituição extensa, compromissória e dirigente. Ainda assim, como ele mesmo refere, o princípio (ético) da dignidade (constituído pelo reconhecimento do valor objetivo de toda vida humana e pela garantia da autenticidade e trabalhado na obra Justiça para Ouriços) é importante e elucidativo quando refletimos sobre a legitimidade do Direito em razão de sua tradução jurídica que estabelece a chegada “a outros dois [princípios da teoria política]: a igualdade de tratamento ou o dever de igual consideração e respeito por parte do Poder Público em relação ao membro da comunidade; e o dever de respeitar a responsabilidade pessoal de cada indivíduo pelas suas próprias escolhas, a observância de uma esfera de não intervenção”.
4. O argumento do ouriço é em teia (e não estritamente circular)
Discordo, em certo sentido, de que esta tradução se fundamente em uma argumentação circular e que, por este motivo, Dworkin teria rompido com o two systems view, em detrimento da metáfora da árvore, que, diga-se, já aparece na obra O Império do Direito (1986). Ainda que o autor postule que o Direito é um ramo da moralidade política que, por sua vez, é um ramo da moral pessoal, tese mais evidente no Justiça para Ouriços (2011), essa é, na minha leitura, uma construção em cadeia e não circular. Muito embora compreensão das partes dependa do todo (circularidade), a distinção (normativa) das partes é fundamental para a sua adequada interpretação e serve, inclusive, para podermos “cortar o fio da continuidade”. Os paradigmas, nesse sentido, são marcos de “compartilhamento conceitual” (não semânticos), mas que não silenciam as concepções dos indivíduos de cujo compromisso advém o valor da interpretação.
Portanto, “a coisa muito importante sabida pelo ouriço” é, para Dworkin, este valor construído a partir da integração entre ética (concepções) e moral (conceitos) e é nele que repousa a elegância do ouriço. A aproximação entre a hermenêutica filosófica e o interpretativismo é possível porque essas teorias compartilham os pressupostos da virada linguística, mas o seu limite (afastamento) é estabelecido pela própria tese da independência do valor. Da mesma forma – e daí decorre minha insistência em um olhar da teoria do Direito dworkiniana a partir da teoria política – o liberalismo igualitário de Dworkin compartilha um “chão comum” com a proposta de John Rawls (e de Kant), por exemplo, mas dele se afasta justamente pelo valor de sua interpretação do liberalismo ser resultante da integração entre ética e moral.
O espinho do ouriço, neste sentido, é afiado e aguilhoou muitos teóricos – para brincar com o aguilhão semântico que, para Dworkin, compromete a compreensão do conceito de direito pelo positivismo jurídico – , impondo que, ao menos, se engajassem em responder aos ataques da coerente crítica interpretativista, que partiu do Direito e irradiou para outros departamentos das humanidades. Insisto neste ponto – integração entre ética e moral – porque penso que esta seja a chave para compreendermos não só a teoria da independência do valor(filosofia), mas também o liberalismo igualitário (teoria política) e o direito como integridade (direito). Talvez esta não seja uma leitura ortodoxa, na medida em que a virada na teoria com a publicação do Justiça para ouriços é amplamente referida pelos leitores de Dworkin, mas posso justificar meu argumento de forma responsável e, acredito sinceramente que ele pode explicar a (adequada) ressalva do prof. Lenio à teria de Dworkin.
5. O integracionismo (também) é o “valor” do liberalismo igualitário
Em relação ao liberalismo igualitário, cujo enfoque utilizo para reforçar meu argumento, na introdução da obra A Virtude Soberana (2000), o próprio autor faz referência ao seminário “Justiça para ouriços”, que apresentou em Columbia (1998), em que já teria apontado para a necessidade de derivação da teoria da moralidade política (liberalismo igualitário) de uma “teoria mais geral dos valores humanitários da ética e da moralidade” [5]. Dessa forma, sua teoria política se estrutura a partir de dois pressupostos: primeiro, do relativo ao papel do Estado, o qual deve atuar de maneira a tornar a vida de seus cidadãos melhores, mostrando que considera de forma igual a vida de cada um [6]. Segundo, na medida em que a teoria política da justiça descreve os ideais e os princípios que devemos aceitar como base para a ação coletiva, a ética (liberal) deve fazer parte de qualquer fundamentação que tenha este propósito [7].
Para o autor, por conseguinte, o liberalismo não pode se restringir a enfrentar essas questões controversas que definem o que é justo somente no âmbito político (público) porque não é o engajamento em uma moral coletiva que torna os princípios categóricos, mas a sua consideração da justiça a partir da ética [8]. Portanto, contra o método da esquiva (de John Rawls), o autor propõe o modelo do desafio [9], a partir do qual devemos considerar o apelo ético da tese platônica de que a justiça e a bondade não podem entrar em conflito segundo seu critério integracionista. Tal articulação decorre da conexão entre a normatividade dos princípios políticos e dos interesses (bem-estar) críticos: uns definem a comunidade política que devemos ter, os outros como deveríamos vive-la. Nossa busca por alicerces éticos é, neste modelo, a procura por integridade normativa [10] e a justificação desses alicerces repercute na estruturação de uma teoria política capaz de explicar o lugar da justiça na sociedade e sobre ela, então, poderemos conceber uma teoria do direito nos moldes da proposta dworkiniana.
6. Sejamos, pois, responsáveis em nossas interpretações!
O aforismo da epígrafe é referido por Dworkin em o Império do Direito para lembrar a continuidade das instituições no decorrer da história, o que é essencialmente hermenêutico, mas a atividade do teórico(intérprete) é prática (no sentido aristotélico) e, portanto, influenciada por pontos de vista. Os limites à discricionariedade do intérprete e combate ao relativismo, que dão força a fibra, são uns diante da circularidade hermenêutica e outros na teia inconsútil integrativista. Podemos propor o diálogo entre as teorias, como faz Streck, mas se aderirmos completamente ao paradigma hermenêutico, especialmente diante do contexto brasileiro, o integrativismo perde seu point porque as diferenças (limites) entre as matrizes implica em concepções antagônicas que repercutem no papel atribuído aos juízes para dizerem (interpretarem) o que direito é (e deveria ser). Aos interessados nessa discussão, fica o convite para o V Colóquio de Crítica Hermenêutica do Direito – O Brasil às voltas com a jurisprudencialização do Direito, que acontecerá a partir do dia 28 de novembro em Porto Alegre, com transmissão online.
[1] STRECK, Lenio. Compreender direito – hermenêutica. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019. p. 46.
[2] Nr. 2 “Nas páginas seguintes avalio o pressuposto de que a interpretação criativa deve ser interpretação conversacional, sobretudo ao discutir uma idéia familiar aos teóricos da literatura: de que interpretar uma obra literária significa recapturar as intenções de seu autor. Mas esse pressuposto tem uma base mais geral na literatura filosófica da interpretação. Wilhelm Dilthey, um filósofo alemão que foi especialmente influente em dar forma ao debate sobre a objetividade nas ciências sociais, usou a palavra verstehen para descrever especificamente o tipo de entendimento que adquirimos ao saber o que outra pessoa quer dizer com aquilo que diz (poderíamos dizer que esse é um senti- do da compreensão no qual entender alguém implica chegar a um entendi- mento com tal pessoa), em vez de descrever todas as possíveis maneiras ou modalidades de entender seu comportamento ou sua vida mental Dilthey colocou a questão de saber se e como esse tipo de entendimento é possível a despeito das diferenças culturais; encontrou a chave para seu problema na consciência “histórica”: o estado de espírito alcançado por raros e dedicados intérpretes através da reflexão sobre a estrutura e as categorias gerais de suas próprias vidBS em um nível de abs- tração tão alto que «e pode supor, pelo menos como uma hipótese metodoló- gica, que perduram no tempo. Os mestres contemporâneos que deram conti- nuidade ao debate, como Gadamer e Habermas, tomam direções diferentes. Gadamer acha que a solução de Dilthey pressupõe o aparato hegeliano que Dilthey ansiava por exorcizar. (…)Acredita que a consciência histórica arquimediana que Dilthey imaginou possível, livre daquilo que Gadamer chama, no sentido especial que dá ao termo, de preconceitos, é impossível, que o máximo que podemos esperar alcançar é uma “consciência histórica efetiva” que pretende ver a história não a partir de nenhum ponto de vista específico, mas sim compreender como nosso próprio ponto de vista é influenciado pelo mundo que desejamos interpretar. Habermas, por sua .vez, critica Gadamer por sua visão demasiado iva de que a direção da comunicação é de mão única, que o intérprete deve esforçar- se por aprender e aplicar aquilo que interpreta com base no pressuposto de que está subordinado a seu autor. Habermas faz a observação crucial (que aponta mais paca a interpretação construtiva do que para a conveisacionai) de que a interpretação pressupõe que o autor poderia aprender com o intérprete. (Ver Jürgen Habermas, 1, The Theory of Communicative Aclion [trad. de T. McCarthy, Boston, 1984].) O interminável debate prossegue, dominado espe- cialmente pelo pressuposto que descrevo no texto: de que a única alternativa ao entendimento causa-e-efeito dos fatos sociais é o entendimento conversacional com base no modelo do verstehen.
[3] Para aprofundar o debate, ver a obra “O espinho do ouriço: Metaética, interpretação e objetividade moral em Ronald Dworkin”, de Luã Nogueira Jung.
[4] CHUEIRÍ, Vera Karam de. Filosofia do Direito e Modernidade: Dworkin e a possibilidade de um discurso instituinte de direitos. Curitiba: J.M., 1995. p. 101
[5] DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: a teoria e a prática da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2011. p. XIV.
[6] DWORKIN, Ronald. What is equality? Part III: the place of liberty. Iowa Law Review, v.1, n. 73, p. 1-54, 1987. p. 7.
[7] DWORKIN, Ronald. Ética privada e igualitarismo político. Barcelona: Paidós, 1993. p. 54.
[8] DWORKIN, Ronald. A virtude soberana p. 367.
[9] DWORKIN, Ronald. Ética privada e igualitarismo político. p. 116-118, DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: p. 353-355 e DWORKIN, Ronald. Foundations of liberal equality. In: DARWALL, Stephen. Equal freedom. Michigan: The university of Michigan Press, 1995. (Selected Tanner lectures on humans value). p. 259.
[10] DWORKIN, Ronald. A virtude soberana: p. 343; DWORKIN, Ronald. Ética privada e igualitarismo político. p. 102. e DWORKIN, Ronald. Foundations of liberal equality. p. 233.
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