Tema 1.124/STJ: coerência e integridade no discurso jurídico
5 de outubro de 2024, 7h02
O STJ afetou o Tema 1.124, que coloca em discussão: “Caso superada a ausência do interesse de agir, definir o termo inicial dos efeitos financeiros dos benefícios previdenciários concedidos ou revisados judicialmente, por meio de prova não submetida ao crivo istrativo do INSS: se contar da data do requerimento istrativo ou da citação da autarquia previdenciária”.

Em sede de recurso especial, o INSS busca discutir o termo inicial dos efeitos financeiros dos benefícios previdenciários concedidos ou revisados judicialmente, prequestionando, única e exclusivamente, o artigo 240 do C. A pretensão ignora não apenas a existência de interpretação divergente entre o INSS e o Poder judiciário no tocante à legislação previdenciária, mas as exceções previstas na IN INSS 128, de 2022 e Portaria Dirben/INSS nº 997/2022 e, com muito maior razão, os deveres da istração. De qualquer forma:
Existência de legislação especial sobre termo inicial dos efeitos financeiros dos benefícios
A Lei 8.213/1991, nos seus artigos 49, II, 54 e 57, § 2º, prevê expressamente o termo inicial dos efeitos financeiros. Tratam-se de comandos voltados a informar não apenas a atuação do INSS, mas do Poder Judiciário, assim como, por exemplo, o artigo 55, § 3º, LB, tomado como ponto de partida nos Temas 629 e 1.118.
A única possibilidade para a subtração de valores devidos ao segurado da previdência social é a que decorre de prescrição incidente sobre as parcelas vencidas há mais de cinco anos do ajuizamento da ação (LB, artigo 103, parágrafo único).[1]
Bom, mas e quanto ao C? O C vem lembrar que, para o “acontecer” concreto dos direitos sociais, tais normas devem ser analisadas a partir de uma nova hermenêutica. O seu artigo 8º prevê: “Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência”. A Lindb reafirma tal orientação, além de lançar luz sobre o critério da especialidade, no seu artigo 2º, § 2º.
O Poder Judiciário não pode deixar de aplicar uma lei ou dispositivo de lei sem fazer jurisdição constitucional. Leis especiais também estabelecem os deveres do INSS, de orientar, instruir e impulsionar o processo istrativo, conforme os artigos 88 da Lei de 8.213/1991 e 29 da Lei 9.784/1999. O direito processual previdenciário precisa ganhar o mundo onde os fatos acontecem e esperam uma solução razoável.
Jurisprudência previdenciária e sua pré-compreensão sobre o tema
Para o STF, “não existe vácuo legislativo” a permitir que se fixe os efeitos financeiros em outro momento que não a data de entrada do requerimento e/ou a data do preenchimento dos requisitos ensejadores do benefício, conforme Tema 709/STF:
A Lei nº 8.213/91, em seu artigo 57, § 2º, cuidou de disciplinar o tema da data de início da aposentadoria especial, fazendo uma remissão ao artigo 49 daquele mesmo diploma legislativo. […]. Conforme se nota, inexiste, no referente ao assunto, vácuo legislativo, de modo que afastar a previsão do artigo 57, § 2º, da Lei de Planos de Benefícios da Previdência Social para fazer valer, em detrimento dessa norma, o artigo 57, § 8º — quando esse nem sequer foi editado com vistas a regular a questão da data de início dos benefícios — significaria evidente violência às prerrogativas do Poder Legislativo.[2]
Mas o que diz a jurisprudência do STJ sobre o tema? São inúmeras decisões dizendo que a Corte possui jurisprudência consolidada no sentido de que os efeitos financeiros devem ser fixados na DER: AgRg no REsp 1103312/CE, relator ministro Nefi Cordeiro, j. 27/05/2014, DJe 16/06/2014; Pet nº 9.582/RS, relator ministro Napoleão Nunes Maia Filho, 1ª Seção, julgado em 26/8/2015, DJe de 16/9/2015; REsp nº 1.859.330/CE, relator ministro Herman Benjamin, 2ª Turma, julgado em 10/3/2020, DJe de 31/8/2020; para citar apenas estes.
Essa construção jurisprudencial certamente fora a responsável por uma movimentação modificadora na interpretação dos tribunais, no sentido de que o direito não está condicionado ao momento de sua comprovação, tampouco seus efeitos financeiros, que devem retroagir à data do requerimento istrativo e/ou do preenchimento dos requisitos ensejadores do benefício. Existem decisões de tribunais regionais subsequentes dizendo estar seguindo a orientação do STJ. Há justificada confiança nessa orientação.

A situação atrai a incidência do princípio da primazia do acerto judicial da relação jurídica de proteção. Nesse sentido: “a resposta do princípio da primazia do acertamento à questão proposta não será outra, portanto, que não a outorga da proteção judicial na medida em que o segurado faz jus. Isto é, a concessão da aposentadoria pretendida com efeitos financeiros desde a formalização do requerimento istrativo”. [3]
Tal princípio foi contemplado no julgamento do Tema 995. Já no Tema 1013, a Corte Cidadã reafirmou a tese fixada na Súmula 72 da TNU: “É possível o recebimento de benefício por incapacidade durante período em que houve exercício de atividade remunerada quando comprovado que o segurado estava incapaz para as atividades habituais na época em que trabalhou”.
Não estão em condições de igualdade segurado e INSS, sobretudo em matéria de provas. Também no que diz respeito ao ônus do tempo — ado sozinho pelo segurado —, o STJ buscou restabelecer o equilíbrio de forças desiguais no Tema 1.018. O precedente tem como fundamentos determinantes:
- a) o segurado foi obrigado a permanecer trabalhando em razão da atuação descomprometida da autarquia previdenciária, logo, manter o benefício concedido na via istrativa significa prestigiar o esforço adicional desempenhado pelo segurado; e
- b) a percepção dos atrasados significa prestigiar a correta aplicação do Direito ao caso concreto e, também, justificar a movimentação do aparato judiciário.
Essas decisões representam condições de possibilidade e comprovam, por seu turno, que uma resposta adequada já foi dada.
Isso tudo nos remete ao artigo 926 do C/2015: “os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”. Julgados da Corte Especial começaram a assumir a nova orientação, buscando efetivar a coerência, como na questão envolvendo a necessidade de renovação do pedido de justiça gratuita quando do manejo do recurso especial. [4]. É necessário, portanto, conferir ao sistema jurídico integridade (compatibilidade com os diversos enunciados) e coerência (julgar casos iguais mediante semelhante raciocínio).
O STJ deverá reafirmar sua jurisprudência, formada há mais de 15 anos. Nada justifica uma mudança agora; pelo contrário, entrementes, o sistema do INSS se distanciou ainda mais dos cidadãos. São inúmeras as dificuldades de ar o sistema, com o indeferimento automático de benefícios e/ou robôs analisando o direito do segurado (Portaria Dirben/INSS 902, de 23 de julho de 2021).
Tema 350/STF
O Tema 1.124 não versa sobre interesse de agir. Se o problema fosse esse, a solução seria a extinção do feito, sem resolução de mérito, e não a fixação dos efeitos financeiros. A expressão “superada a ausência de interesse de agir” não deixa de ser interessante, afinal: o autor tem (ou não) interesse de agir sobre determinando pedido; não existe meio-termo.
E quanto ao Tema 350/STF? Disse o ministro que se preocupa em não “fazer letra morta” das decisões do STF. O ponto de contato diz respeito ao requerimento istrativo e, por óbvio, a necessidade de o requerente levar à apreciação do servidor matéria de fato. Assumindo o risco de estar errado, penso que a questão de fundo, para o STJ, continua sendo a prova. E por isso “[…] prova não submetida ao crivo istrativo do INSS”.
O Tema 350/STF, igualmente, problematiza a ideia de fato não levado ao conhecimento da istração. Eis o busílis. Uma coisa é o fato pendente de prova; outra, muito distinta, é o fato novo. Se a negativa do INSS tem com fundamento a não comprovação da função de motorista de caminhão ou ônibus, em razão da CTPS fazer constar de forma genérica “motorista”, estar-se-á diante de uma questão pendente de prova, e não fato novo, logo, pouco importa o momento da comprovação do direito.
Ainda, uma coisa é o requerente não fornecer um documento por desleixo e/ou não se desincumbir do ônus de requerer determinado documento junto à empresa, depois de exigência formal; outra, muito distinta, é ele não ser orientado sobre a possibilidade de reconhecimento, como tempo de serviço (comum, rural ou especial), de um determinado período e/ou quais os documentos exigidos para a sua comprovação.
Assim, por exemplo, o segurado/beneficiário não pode ser prejudicado por não ter submetido, já no primeiro requerimento, documentos referentes ao tempo de serviço como aspirante à vida religiosa. Nesse exemplo, a omissão da autarquia, no sentido de orientar o cidadão sobre tal possibilidade, deriva não apenas de uma atuação descomprometida, mas de uma interpretação divergente entre o INSS e o Poder judiciário no tocante à legislação previdenciária. Aqui assume importância o Tema 350/STF: “A exigência de prévio requerimento istrativo não deve prevalecer quando o entendimento da istração for notória e reiteradamente contrário à postulação do segurado.”
Embora sem trazer dados estatísticos a confirmar tal conclusão, acredita-se que a maioria dos beneficiários toma ciência das circunstâncias que lhe permitem postular uma revisão nos escritórios de advocacia. É perguntar: os segurados não estão sendo orientados sobre a possibilidade de comprovar tempo de serviço rural e especial? Não é suficiente punir o cidadão com a prescrição e, pior ainda, a decadência do direito?
Mas, e se a realidade do dia a dia não conseguir se adaptar às representações ideias da lei, na qual um servidor deveria orientar o segurado sobre o seu direito? A resposta a ser dada pelo Poder Judiciário não pode ser: pior para a realidade, como já ouvi dizer o professor Lenio Streck!
Além dos institutos processuais em questão, temos que considerar as peculiaridades da lide previdenciária. O que retira do INSS a responsabilidade por orientar, instruir e impulsionar o processo istrativo é a comprovada má-fé do requerente. Acrescente-se aquilo que esbarra na falta de colaboração do segurado e, nesse sentido, a exigência precisa ter e legal e guardar pertinência com a questão controvertida — são muitas as exigências desarrazoadas.
Por fim, mas nem tanto
Não me entendam mal, mas não pretendo, aqui, trabalhar qualquer exceção em relação ao Tema Repetitivo 1.124, esse caminho é muito perigoso (e sem volta), pois teríamos que itir a possibilidade de criar exceções à regra, com a classificação de tipos de documentos. Quem deve orientar e exigir a prova essencial ao reconhecimento do direito (e não apenas ao reconhecimento na via judicial)? Nesse ponto, concordamos que não podemos inverter as coisas.
É possível se afirmar que fixar os efeitos financeiros na data do ajuizamento da ação ou citação válida será um grande negócio para o INSS, que será premiado com a subtração de valores devidos desde o implemento dos requisitos ensejadores do benefício, como bem capturou a 3ª Seção do TRF-4:
Entre conceder istrativamente ou esperar que o obreiro consiga o benefício em juízo, será muito mais vantajoso para a autarquia previdenciária a segunda hipótese, pois aí, de qualquer modo, o termo inicial de concessão ficará postergado. 3. É firme o entendimento do Superior Tribunal de Justiça de que a comprovação extemporânea da situação jurídica consolidada em momento anterior não tem o condão de afastar o direito adquirido do segurado, impondo-se o reconhecimento do direito ao benefício previdenciário no momento do requerimento istrativo, quando preenchidos os requisitos para a concessão da aposentadoria. 4. Ação rescisória julgada procedente. (TRF4, ARS 5031347-50.2019.4.04.0000, TERCEIRA SEÇÃO, Relator CELSO KIPPER, juntado aos autos em 14/06/2023)
Fixar os efeitos financeiros na data do ajuizamento da ação ou citação válida também representa um desestímulo ao esgotamento da via istrativa.
Acredita-se que a melhor justificativa é aquela capaz de articular, de forma coerente, regras, princípios, jurisprudência e doutrina. Acrescente-se, aqui, argumentos capazes de serem universalizados. Não podemos ficar reféns de nenhum tipo de subjetivismo. É possível se vislumbrar os problemas decorrentes de uma resposta que aposte na discricionariedade. O próprio ministro Hermann Benjamim ite que: “[…] o tratamento de cada caso depende da natureza do documento e do grau de controle que o requerente tinha de sua disponibilidade”. [5]
Da mesma forma, o ministro comentou que “o ônus de apresentar o documento era do segurado, sendo necessário discutir o seu interesse de agir na via judicial, já que houve negativa fundamentada do INSS”. Resta saber, contudo, se o cidadão foi orientado sobre qual documento e, com muito maior razão, se tal documento foi exigido pela Autarquia. Aqui, portanto, legítima a preocupação: “Há, portanto, subversão de atribuições, com a transferência para o Judiciário de responsabilidades da istração, trazendo-lhe os custos correspondentes”.
Nesse cenário, a melhor resposta continua sendo a aplicação da Lei de Benefícios, pois, uma coisa é que o chamamos de interesse de agir; outra, muito distinta, são os pressupostos de constituição e desenvolvimento válido do processo (início de prova material). Uma terceira coisa, que fica em outro andar, são os efeitos financeiros, sendo que estes devem coincidir com a DER ou data em que preenchidos os requisitos ensejadores do benefício.
Ausente o interesse de agir ou início de prova material, o feito deve ser extinto, sem resolução de mérito, conforme artigo 485, inciso IV e VI, do C (Temas 350/STF e 629/STJ). Uma vez sanados tais vícios, os efeitos financeiros, em nova ação, deverão ser fixados na DER ou data em que preenchidos os requisitos ensejadores do benefício. Simples assim.
A sombra deve permanecer na sombra, ao STJ cabe reafirmar sua jurisprudência. Ante a natureza social da demanda previdenciária, prejudicar um cidadão por conta de um processo istrativo mal instruído, com fundamento numa atuação deficitária do seu advogado, do servidor, enfim, de todos aqueles que estavam operando no processo, é um “dano a toda uma visão social que merece o direito previdenciário”.
___________________________
Referências
Bah1: SAVARIS, José Antonio. Direito processual previdenciário. 6. ed. Ver. Atual. Ampl. Curitiba: Alteridade Editora, 2016. p. 335.
Bah2: RE 791961, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 08/06/2020, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-206 DIVULG 18-08-2020 PUBLIC 19-08-2020.
Bah3: SAVARIS, Jose Antonio. Princípio da primazia do acertamento judicial da relação jurídica de proteção social. Disponível em: www.univali.br/periodicos. o em 01 out. 2024.
Bah4: MARQUES, Mauro Campbell. Hermenêutica: coerência e integridade como vetores interpretativos no discurso jurídico. In: STRECK, Lenio Luiz; ALVIM, Eduardo Arruda; LEITE, George Salomão. Hermenêutica e jurisprudência no Código de Processo Civil: coerência e integridade. 2. ed., São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 182-208.
Bah5: STJ. Notícias. Repetitivo sobre benefício concedido judicialmente mediante prova não analisada pelo INSS tem ajuste no tema. Disponível em: <https://www.stj.jus.br/…/04062024-Repetitivo-sobre…>. o em: 01 out. 2024.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!