Vigilância como instrumento de preservação do patrimônio cultural
5 de outubro de 2024, 8h00
Etimologicamente a palavra vigilância tem origem no latim “vigilare” e significa observar atentamente, estar atento, estar de sentinela, cuidar, precaver-se, acautelar-se. Exerce vigilância aquele que age com atenção desvelada e precaução para evitar riscos, perigos e danos.

A ação de vigilância se justifica e é exercida sobre coisas consideradas importantes, acerca das quais existe uma motivação que recomenda especial cuidado, a exemplo dos bens que integram o patrimônio cultural brasileiro e que, em razão suas peculiaridades e interesse público, ficam submetidos a um particular regime jurídico com vistas à sua preservação, o que impõe aos entes estatais, em todos os níveis, dever de cautela com a manutenção de seus atributos.
Não por outra razão o instrumento da vigilância tem previsão constitucional, a ele se referindo expressamente a nossa Carta Magna no artigo 216, § 1º:
“O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.”
A vigilância se concretiza, sobretudo, por meio do exercício do poder de polícia outorgado aos órgãos públicos para tutelar istrativamente o patrimônio cultural brasileiro de forma prevalentemente preventiva, por meio de ações de monitoramento, controle, acompanhamento e fiscalização. Não se descarta, por óbvio, quando cabível, a aplicação de sanções istrativas como a advertência, o embargo de obras e atividades, a apreensão de equipamentos, a imposição de multa, entre outras.
A vigilância, pois, constituiu um dos mais importantes instrumentos para que os entes federados possam se desincumbir da indeclinável missão constitucional que lhes foi outorgada pelo artigo 23, IV, da Constituição, consistente em impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural.
Em termos de definição normativa, a Portaria 375/2018 do Iphan, que “Institui a Política de Patrimônio Cultural Material do Iphan e dá outras providências” conceitua referido instrumento da seguinte forma:
Art. 35. Entende-se por Vigilância, nos termos do art. 216 da Constituição Federal, a obrigação disposta ao Poder Público, com a colaboração da comunidade, de exercer atenção permanente em relação ao patrimônio cultural material protegido.
No que tange aos bens tombados, por exemplo, o Decreto-Lei 25/37 dispõe em seu artigo 20 que eles ficam sujeitos à vigilância permanente do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, que poderá inspecioná-los sempre que for julgado conveniente, não podendo os respectivos proprietários ou responsáveis criar obstáculos à inspeção, sob pena de multa.
Responsabilidade
O artigo em comento impõe ao órgão tombador a responsabilidade pelo exercício de vigilância ininterrupta sobre os bens tombados. Essa vigilância tem por objetivo prevenir a ocorrência de danos ou o surgimento de ameaças ao bem cultural protegido, podendo ser exercida mediante a instalação de equipamentos de segurança (sistemas de prevenção de furtos, incêndios etc.), mediante visitas, monitoramento e inspeções técnicas periódicas.
Como adverte Adilson Abreu Dallari: “É absurdo pensar que o ato de tombar possa ser bastante em si mesmo. Ou seja, a simples declaração de tombamento não realiza o milagre da imutabilidade”. [1]
Insere-se também no conceito de vigilância, cujo dever é atribuído ao órgão tombador, a prévia aprovação de projetos de restauro ou de intervenção em bens tombados ou no seu entorno, o acompanhamento da execução e a liberação final desses projetos, bem como o monitoramento de padrões e limites estipulados para uso ou interferência na coisa tombada (como peso e dimensões máximas de veículos que trafegam em vias históricas, padrão máximo de vibrações sonoras etc.).
Importante destacar que a vigilância sobre os bens culturais não se insere na esfera de simples faculdade do Poder Público, mas como inarredável obrigação, podendo ser acionado o Poder Judiciário a fim de fazer com que o ente relapso cumpra com seu dever.
Sobre o tema, vejamos a jurisprudência:
Constitucional e istrativo. Ação civil pública. Município. Fiscalização. Gás – GLP. Utilização, estocagem e transporte. Saúde. Patrimônio histórico. Proteção. São deveres do Poder Público, nos termos dos arts. 23, II, III , IV e XII, 30, IX e 216, §1º, da Constituição Federal, cuidar da saúde e da assistência pública; proteger os documentos, as obras e outros bens que integram o patrimônio cultural, artístico e histórico, e impedir a sua evasão, destruição ou descaracterização, mediante variadas formas de acautelamento e preservação; estabelecer e implantar política de educação para a segurança do trânsito. Provada a falta de fiscalização, pelo Município, da utilização, da estocagem e do transporte de gás- GLP no seu território, inclusive nas áreas em que se encontra vultoso patrimônio histórico, artístico e cultural, mantêm-se as obrigações de fazer a ele impostas no processo de ação civil pública, quando compatíveis com as regras dos arts. 1º, III e IV, e 3º da Lei n. 7.347/85. Confirma-se a sentença. (TJMG – REEXAME NECESSÁRIO N° 1.0400.03.008506-4/004 – Rel. Des. Almeida Melo – J. 02.02.2006).
Ao poder/dever de fiscalizar corresponde a obrigação de o istrado ar a verificação istrativa e de colaborar com ela.
Segundo Carlos Ari Sundfeld, ar a fiscalização é espécie de sujeição istrativa do direito. Opor óbices a ela traduz comportamento ilícito e, como tal, ível de sanção. [2]
Por isso, obstar ou dificultar a vigilância exercida pelos entes responsáveis pela tutela do patrimônio cultural brasileiro pode, conforme o caso, caracterizar o crime tipificado no artigo 69 da Lei 9.605/98.
A respeito do assunto, assim decidiu o TRF da 1ª Região:
O art. 69 da Lei 9.605, de 12/02/1998, cuja infração foi imputada ao denunciado, ora recorrido, descreve a conduta delitiva de ‘obstar ou dificultar a ação fiscalizadora do Poder Público no trato de questões ambientais’. Obstar significa causar embaraços ou impedimento e dificultar significa tornar difícil ou custoso de fazer, recusar. Se existe lei que descreve uma conduta ilícita e impõe a essa conduta uma sanção, não cabe ao Judiciário negar sua validade, como na espécie, sem dar condições do órgão acusador de provar que a conduta descrita, em tese, é criminosa. A complacência no trato de questões ambientais constitui incentivo aos infratores das normas que cuidam da proteção do meio ambiente a persistirem em suas condutas delituosas, gerando, como consequência, a impunidade e desestimulando os Agentes de fiscalização a cumprirem com suas obrigações. (TRF1 – Rec. Crim. 2000.34.00.042715-6/DF – Rel. Juiz Mário César Riveiro – J. 04/09/2001).
Em arremate, a vigilância também tem aplicação no âmbito do patrimônio cultural imaterial, pois os bens imateriais registrados em nível federal ficam sujeitos à reavaliação, pelo menos a cada dez anos, pelo Iphan (artigo 7º do Decreto 3.551/2000), para verificar se continuam como referência cultural para as comunidades, grupos, coletividades e segmentos detentores ao longo do tempo.
Assim, a vigilância revela-se como um valioso instrumento de preservação dos bens integrantes do patrimônio cultural brasileiro, cuja natureza é difusa, indisponível e intergeracional.
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[1] DALLARI, Adilson Abreu. Tombamento. Revista de Direito Público, n. 86. p. 37-41, abr.-jun. 1988, p. 40.
[2] SUNDFELD, Carlos Ari. Direito istrativo ordenador. São Paulo: Malheiros. 2003. p. 76.
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