Sentença de mérito prolatada como prova plena em demanda previdenciária
6 de outubro de 2024, 9h23
A sentença trabalhista que analisa o mérito da demanda com base nos elementos probatórios coligidos na reclamatória trabalhista (diversamente daquela que apenas homologa acordo firmado entre as partes, objeto do Tema Repetitivo STJ 1.188) é válida como prova material plena do vínculo de trabalho do reclamante no período objeto da reclamatória, eis a tese que o presente artigo busca sustentar.
Apesar dos exemplos e argumentação deste artigo se concentrarem na sentença trabalhista — pois é caso bastante comum nas demandas previdenciárias e a decisão do STJ no Tema Repetitivo 1.188 trata especificamente das homologatórias trabalhistas — todo o raciocínio aqui apresentado se aplica a quaisquer sentenças de mérito, de quaisquer órgãos judiciários e em quaisquer processos istrativos ou judiciais.
Artigo 19, II, da Constituição: todo documento público é prova documental plena dos fatos nele declarados
O artigo 19, II, da Constituição da República de 1988, veda que qualquer órgão público, de qualquer esfera, recuse fé aos documentos públicos nos seguintes termos:
“Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
…omissis…
II – recusar fé aos documentos públicos;
…omissis…“
A legitimidade/validade/veracidade do conteúdo do documento público pode ser elidida por prova cabal em contrário, mas jamais o órgão público pode negar-lhe fé, sem prova nenhuma em contrário.
Logo, esse dispositivo da Constituição estabelece que todo documento público tem status de prova plena (o que é diferente de prova absoluta ou presunção absoluta de validade) cuja veracidade/legitimidade só pode ser elidida por prova em contrário.
Esse é o ponto fulcral: a sentença trabalhista é um documento público oriundo de órgão federal (o juízo trabalhista). Logo, sua fé pública não pode ser recusada por nenhum órgão ou entidade de qualquer das esferas federadas, nos termos do artigo 19, II, da Constituição de 1988.
Mas, qual é o fato afirmado nessa sentença de mérito cuja veracidade/legitimidade não pode ser recusada exceto por prova em sentido contrário?
Distinção entre os fatos declarados na sentença de mérito e os fatos declarados na sentença homologatória de acordo: efeitos comprobatórios de uma e de outra
Na sentença de mérito, um oficial público (o juiz) declara que determinados fatos existiram e as consequências jurídicas daí decorrentes, após um procedimento legal específico presidido por esse terceiro sem interesse no litígio (o juiz). Esses são os fatos que esse documento público afirma e eles têm presunção de veracidade, validade etc.
Portanto, a sentença de mérito faz prova plena dos fatos que o juiz declara comprovados e das consequências jurídicas que o juiz lhes atribui (vínculo empregatício e suas consequências perante o empregador — no caso da sentença trabalhista de mérito), não podendo tais fatos e consequências serem elididos a menos que haja outras provas em sentido contrário.

Essas são as consequências práticas do artigo 19, II, da Constituição de 1988, no âmbito istrativo e também no âmbito judicial, das sentenças de mérito, quando alguma das partes não tenha participado do processo onde essa sentença foi prolatada.
Para as partes que participaram do processo onde a sentença de mérito foi prolatada, as consequências são ainda mais severas, pois forma-se a coisa julgada material, rescindível apenas nas restritas hipóteses de ação rescisória.
Aqui é importante ressaltar — tendo em vista o Tema STJ 1.188 — que há grandes diferenças entre a sentença homologatória de acordo e a sentença de mérito no que diz respeito ao fato com “fé pública” que cada uma documenta.
Na sentença homologatória de acordo, o oficial público (juiz) simplesmente declara que as partes encerraram a lide e fizeram acordo nos termos tais e tais, no exercício de sua liberdade negocial, sem ofensa à legalidade. Esse (o acordo e seus efeitos perante as partes) é o fato afirmado, declarado nesse documento público. Esse fato ali declarado (o acordo) tem presunção de validade/veracidade por ter sido declarado nesse documento público por um oficial público (o juiz).
Conclui-se que, na sentença trabalhista homologatória, como não há nenhuma apreciação ou decisão sobre os fatos da lide então existente, que resta não decidida em seu mérito porque a lide deixou de existir em face do acordo das partes, não há comprovação dos fatos alegados na lide nem há declaração das consequências jurídicas desse fato (vínculo empregatício). A sentença homologatória faz prova apenas da realização de negócio jurídico processual entre as partes e de suas consequências (extinção da lide e do processo).
Para as partes que participaram do processo onde a sentença trabalhista homologatória foi prolatada, as consequências são mais severas, pois forma-se a coisa julgada material, sujeita a anulação como os demais negócios jurídicos.
Distinção entre “início de prova material” e “prova documental plena”: limites constitucionais do artigo 55, §3º, da Lei 8.213/91
No caso dos requerimentos e demandas previdenciárias, muitas vezes a negativa da averbação do período reconhecido na sentença trabalhista de mérito se baseia na “ausência de início de prova material contemporânea”.
De fato, o “início de prova material contemporânea” é requisito infraconstitucional para comprovação do tempo de serviço (artigo 55, §3º, Lei 8.213/91 [1]). Mas é necessário ter uma compreensão mais precisa do que significa “início de prova material”.
Essa expressão típica do Direito Previdenciário pode confundir o leitor menos familiarizado, pois, ao invés da “prova material”, o “início de prova material” não é prova!
Em certa medida, o “início de prova material” pode até ser entendido como o “oposto” de uma prova material plena: pois nada mais é do que o indício documental de um determinado fato que, necessariamente, precisa ser complementado por outras provas plenas (documental, testemunhal, etc.) para comprovar o fato previdenciário alegado. Ou seja, o “início de prova material”, sozinho, não comprova o fato previdenciário alegado, ao invés das provas documentais plenas.
A regra infraconstitucional do artigo 55, §3º, da Lei 8.213/91, se aplica apenas e tão somente aos casos em que não há prova documental plena do fato previdenciário alegado e a parte se baseia, principalmente, na prova testemunhal (seja em processos judiciais ou justificações istrativas) para comprovação do fato previdenciário. Ou seja, é requisito adicional à prova exclusivamente testemunhal para comprovação do fato que permite a averbação do tempo de serviço.
A regra infraconstitucional do início de prova material não se aplica a documentos públicos ou privados que declaram e comprovam determinada situação fática. Especialmente no caso dos documentos públicos, tal regra infraconstitucional não pode se sobrepor ao artigo 19, II, da Constituição.
Há ofensa à Constituição sempre que o documento público não tem sua fé pública reconhecida por um órgão público de qualquer esfera e não é possível referendar essa ofensa baseando-nos numa norma infraconstitucional — a da necessidade de início de prova material —, pois isso representaria interpretação da norma infraconstitucional contrária à Constituição, negando fé a documentos públicos, como a sentença de mérito trabalhista.
Distinção entre ‘coisa julgada material’ e ‘prova documental plena’: efeitos comprobatórios de qualquer sentença judicial de mérito perante terceiros
Outra impugnação muitas vezes alegada é a de que a sentença trabalhista de mérito não faz coisa julgada contra o INSS, terceiro que não participou da relação processual trabalhista, e por isso não pode prevalecer contra ele. Trata-se de uma confusão entre “coisa julgada” e “prova documental plena”.
Há diferença entre a “prova plena” e a “coisa julgada”. A prova plena permite prova em contrário, já a coisa julgada não permite, exceto nas restritas hipóteses de rescisão (sentenças de mérito) ou anulação (homologatórias etc.).
A sentença de mérito trabalhista ou do juízo de família não faz coisa julgada contra o INSS — é verdade, pois o INSS não participou daquele processo —, mas faz prova plena perante o INSS.
Isso quer dizer que a sentença de mérito será apreciada, como prova plena, em conjunto com as demais provas do processo e cabe ao INSS o ônus de demonstrar que essa prova plena não pode prevalecer, com fundamentos e provas que lhe cabe apresentar.
Podem se apresentar alguns exemplos interessantes, no caso da sentença de mérito trabalhista, dos efeitos comprobatórios desse documento público em relação a terceiros, sem que esses terceiros sejam atingidos pela coisa julgada.
Vejamos: sentença trabalhista de mérito que entendeu que o empregador deve pagar X de salários, Y de férias indenizadas, Z de FGTS, W de contribuições previdenciárias . . . a Receita Federal/PGFN vai poder utilizar esse documento público (sentença trabalhista) pra cobrar o Z (FGTS) e o W (contribuição ao INSS) — mesmo sem ter participado do processo trabalhista . . . A ex-esposa do empregado vai poder utilizar esse documento (sentença trabalhista) pra cobrar sua meação das parcelas X (salários), Y (feérias) e Z (FGTS) referentes ao período do vínculo conjugal (jurisprudência do STJ), mesmo sem ter participado do processo trabalhista . . . E o empregado vai poder usar essa sentença trabalhista perante a Receita Federal para comprovar seu direito à isenção do IRPF sobre as férias indenizadas Y . . . a Receita não vai poder negar o fato de que essa renda tinha natureza indenizatória, pois é o que consta desse documento público (a sentença trabalhista de mérito) . . . quantos efeitos comprobatórios do documento público sobre terceiros . . . Mas os efeitos bem mais severos da coisa julgada se aplicam apenas ao empregado e ao empregador, as partes naquela reclamatória trabalhista.
Até documentos privados têm relevância como prova e efeitos comprobatórios em relação a terceiros, porque documentos públicos não teriam? Se há penhora de um imóvel e um terceiro apresenta embargos demonstrando ter compromisso de compra e venda daquele imóvel muito anterior a sua execução, adeus penhora!!! Aquele pré-contrato particular (sequer é contrato porque se exige forma pública), que não gera nenhum efeito obrigacional contra o exequente, impede o exequente de manter a penhora.
O compromisso particular trouxe efeitos jurídicos relevantes sobre esse terceiro (o exequente), ainda que, por força do princípio da relatividade dos contratos, não gere nenhuma obrigação para esse terceiro em relação ao objeto do compromisso (promessa de alienação do bem imóvel).
De forma mais geral, podemos afirmar que quaisquer atos jurídicos documentados, sejam públicos ou privados, conquanto possam ter efeitos diretos limitados àqueles sujeitos determinados que participaram dos atos (efeitos subjetivos diretos) e aos objetos específicos (efeitos objetivos diretos) tratados nos respectivos atos, têm efeitos probatórios praticamente ilimitados, que podem ser utilizados em inúmeros processos istrativos ou judiciais, com as mais distintas finalidades e em proveito (ou contrariedade) de quaisquer terceiros para quem os fatos ali documentados tenham alguma utilidade.
Inverídica afirmação de que nas causas previdenciárias haveria ‘prova tarifada’
Insta mencionar, ainda, que há outra confusão acerca da natureza do “início de prova material”, já que muitos chegam a dizer que as causas previdenciárias teriam “prova tarifada”, isto é, os meios de prova não teriam igual valoração, pois o juiz não poderia decidir com base apenas na prova testemunhal ou contra a prova documental. Chega-se a alegar que o início de prova material seria “prova obrigatória” sem o quê não se poderia julgar procedente o feito
Ora, além da confusão entre “prova” e “início de prova material” — este nada mais é que “indício documental de determinado fato” e nem pode ser chamado de “prova”, como explicado acima — se o “início de prova material” fosse “prova obrigatória” para a procedência do pleito, sua ausência implicaria o julgamento de improcedência do pedido, com resolução do mérito, pois essa é a consequência processual da ausência de prova obrigatória a cargo do autor.
Ocorre que o STJ, em recurso repetitivo já longevo (REsp 1.352.721/SP – Tema 629), decidiu que a ausência de “início de prova material” gera tão somente a extinção do processo, pois, nas causas previdenciárias haveria uma condição ou pressuposto de procedibilidade: a existência de prova documental ou indício documental do fato previdenciário alegado.
Sem esse pressuposto de procedibilidade, a causa previdenciária não pode avançar — não é possível julgar improcedente o pedido por essa ausência, confirmando que não se trata de “prova obrigatória”.
Trata-se de algo análogo à “justa causa” do processo penal, isto é, sem provas ou indícios substanciais do fato típico e da autoria, não há como dar andamento à persecução penal.
Porém, uma vez existente tal pressuposto de procedibilidade (prova documental ou indício documental do fato previdenciário alegado), não há nenhuma prevalência desta ou daquela prova e o juiz deverá julgar conforme as regras usuais do processo, os ônus processuais e as presunções e ficções jurídicas.
Isso é o oposto do que se chama de “prova tarifada”, pois, pela teoria, um sistema de “prova tarifada” é aquele em que o valor de cada prova é previa mente definido, sem que o julgador tenha liberdade de formar seu convencimento a partir do conjunto probatório de cada processo, de considerar quaisquer provas equivalentes.
Entretanto, no processo previdenciário nenhuma prova tem valor superior às demais. Exemplificando, é possível que:
1) a prova documental plena seja infirmada pela prova testemunhal e deixe de prevalecer: como no caso em que a mulher requer pensão com certidão de casamento, mas a prova testemunhal afirma que ela se separara/divorciara do marido há vários anos, o marido não contribuía em nada pra vida domestica e até teria formado outra família, ela trabalhava como costureira e criou os filhos sem ajuda do ex-marido — a prova testemunhal prevaleceu sobre a presunção de dependência econômica da certidão de casamento, que é prova plena do casamento;
2) o início de prova material seja infirmado pela prova testemunhal: como no caso de um homem que requer aposentadoria rural, junta certidão de casamento constando profissão “lavrador”, mas a testemunha afirma que, pouco antes de casar, ele foi empregado como pedreiro e foi morar na cidade — a prova testemunhal prevaleceu sobre o início de prova da certidão de casamento com profissão de lavrador;
3) a prova pericial seja infirmada pela prova documental: como no caso de um pedido de aposentadoria por invalidez em que a prova pericial afirma inexistência da incapacidade permanente, mas a prova documental traz laudos, exames, internações que não deixam dúvidas quanto à total e permanente incapacidade do requerente — a prova documental prevaleceu sobre a prova pericial;
4) a prova documental seja infirmada pela prova pericial: como no caso de pedido de reconhecimento de tempo especial em que o PPP seja contrário ao autor, mas a prova pericial seja favorável — a prova pericial prevaleceu sobre a prova documental.
Enfim, poderíamos elencar inúmeros outros exemplos de que não há “prova tarifada” no processo previdenciário, devendo o juiz formar seu convencimento motivado pela análise do conjunto probatório, independente da natureza das provas constantes do processo.
Conclusão
As sentenças de mérito, oriundas de quaisquer órgãos judiciários, são documentos públicos que no seu bojo declaram a existência de determinados fatos que compõem a lide e as consequências jurídicas de tais fatos, após procedimento específico (o processo judicial), presumidamente conforme à lei e à Constituição, conduzido sob a presidência de um oficial público (o juiz), terceiro em relação às partes, presumidamente imparcial e conhecedor do Direito.
Como todo documento público, as sentenças fazem prova documental plena dos fatos e consequências nelas declarados, por força do artigo 19, II, da CR/88. Nenhum órgão público, de qualquer das esferas federadas, pode negar-lhes a fé pública que presumidamente possuem. Há necessidade de prova cabal em sentido contrário para que essa presunção relativa seja elidida.
Qualquer interpretação do artigo 55, §3º, da Lei 8.213/91, quanto à exigência de “início de prova material”, deve estar conforme ao comando constitucional inserto no artigo 19, II, da CR/88.
No âmbito previdenciário, por se tratarem de prova documental plena, dispensam o “início de prova material”, independentemente das circunstâncias e provas de seu processo de origem, pois tal exigência se aplica apenas aos processos previdenciários baseados em prova testemunhal, e, longe de fazer coisa julgada contra o INSS, podem ter sua presunção relativa de veracidade/validade afastada, desde que haja prova em sentido contrário.
Tais conclusões, que genericamente se aplicam a quaisquer sentenças judiciais que resolvam o mérito, se aplicam em especial à sentença trabalhista de mérito, no que respeita à existência/inexistência do vínculo empregatício no período reclamado, remuneração, parcelas indenizatórias e contribuições incidentes, diferentemente das sentenças trabalhistas homologatórias de acordos, cujos efeitos probatórios limitam-se à existência, valores e validade do negócio jurídico processual entabulado entre as partes para por fim à lide, como se depreende do Tema STJ 1.188 recentemente julgado.
Quando o INSS ou qualquer órgão público indefere a averbação do tempo de serviço/contribuição reconhecido pelo juízo trabalhista na sentença de mérito, está negando o teor do mérito julgado nessa sentença. Está negando fé ao documento público que declara aqueles fatos e consequências e essa negativa é usualmente feita sem nenhuma prova em contrário — em ofensa à presunção relativa de certeza e validade outorgada pelo artigo 19, II, da CR/88.
[1] § 3º A comprovação do tempo de serviço para os fins desta Lei, inclusive mediante justificativa istrativa ou judicial, observado o disposto no art. 108 desta Lei, só produzirá efeito quando for baseada em início de prova material contemporânea dos fatos, não itida a prova exclusivamente testemunhal, exceto na ocorrência de motivo de força maior ou caso fortuito, na forma prevista no regulamento. (Alterado pela lei 13846, 19/06/19)
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