Opinião

Análise da revisão do Tema 414: prestígio à legislação setorial e inconsistências sobre a modulação

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11 de outubro de 2024, 20h13

Desde a publicação da Lei 14.026, que alterou a Lei Nacional de Saneamento Básico, o setor sofreu uma série de exigências para a prestação de serviços. Ao lado do incentivo à concorrência na seleção dos prestadores dos serviços, foram inseridas metas de atendimento de 99% da população com água potável e de 90% da população com coleta e tratamento de esgotos até 31 de dezembro de 2033, bem como metas progressivas e outras condições para os operadores. Além disso, a Agência Nacional de Águas ou a atuar também no saneamento básico como entidade responsável pela definição de normas de referência para a padronização da regulação no país.

TV Brasil/Reprodução
água, esgoto, saneamento básico

Não bastassem as novas regras impostas, que demandam alta carga de investimentos, o setor vem, ao longo dos anos, sofrendo interferências significativas, tanto do Poder Legislativo quanto do Poder Judiciário, que, de alguma forma, impactam, diretamente o equilíbrio econômico-financeiro das operações vigentes, interferindo na geração de receitas e consequentemente pressionando a estrutura tarifária de todos os contratos.

Especificamente em relação ao Poder Judiciário, vale mencionar a discussão quanto à legalidade da cobrança da tarifa de água para condomínios (mínimo pelo número de economias), o que foi objeto de uniformização de entendimento pelo Superior Tribunal de Justiça por meio do Tema 414, recentemente modificado e objeto da presente análise.

Esse tema previa que:

Não é lícita a cobrança de tarifa de água no valor do consumo mínimo multiplicado pelo número de economias existentes no imóvel, quando houver único hidrômetro no local. A cobrança pelo fornecimento de água aos condomínios em que o consumo total de água é medido por único hidrômetro deve se dar pelo consumo real aferido.

Contudo, o tempo demonstrou que a fixação do tema repetitivo não se mostrou suficiente para trazer segurança jurídica e pacificação do tema no Judiciário. Isso porque, ao vedar a multiplicação do consumo mínimo pelo número de economias, o STJ não determinou a forma como a cobrança da tarifa de água para os condomínios deveria ser realizada, apesar dos alertas lançados em embargos de declaração no Recurso Especial 1.166.561/RJ, que serviu de paradigma para a fixação da tese.

Neste sentido, as concessionárias, ao cumprirem as decisões judiciais vedando a cobrança com base no mínimo multiplicado pelas economias, aram a utilizar o número de ligações do prédio, o que implica tratar uma coletividade de unidades como apenas uma economia [1], elevando a fatura, via de regra, a valores impagáveis.

Prejuízos financeiros às concessionárias

Insatisfeitos com o aumento das faturas, os condomínios, com a chancela de parte dos Tribunais de Justiça, aram a defender a tese de que o número de economias deveria ser utilizado tão somente no escalonamento da progressividade, o que se chamou de critério híbrido. Esta metodologia acarretou a cobrança de tarifas condominiais em patamares inferiores até mesmo à tarifa mínima, causando graves prejuízos financeiros às concessionárias e desequilibrando as operações vigentes.

Spacca

Essa discussão permeou o Judiciário durante longos 14 anos, nos quais inúmeros processos foram ajuizados até que, em 2021, foram afetados para julgamento pelo STJ, para possível superação do Tema 414, os REsp nº 1.937.887/RJ e 1.937.891/RJ.

Em sessão pública de 20 de junho de 2024, o STJ, em julgamento emblemático, revisitou a temática para reformar o entendimento vinculante firmado 14 anos antes e sedimentado em sua jurisprudência.

Em outra oportunidade, Morelli e Paiva já haviam se manifestado pela necessidade de superação do Tema 414 em função da ausência de congruência sistêmica e de erro subjacente em sua formação, e em prol da recuperação da segurança jurídica necessária à realização de investimentos para a universalização do saneamento [2].

Após três anos de discussão processual, com apresentação de memoriais por diversos interessados que ingressaram como amici curiae e uma audiência pública com ampla participação de interessados, o STJ entendeu pela superação do Tema 414.

Redução de litigiosidade

A maturidade, ao rever um tema que se mostrou ineficiente para reduzir a litigiosidade e ainda apto à geração de resultados prejudiciais tanto à universalização quanto a diversos usuários, permitiu ao STJ estabelecer critérios que à primeira vista blindam o setor. Nesta esteira, foi fixada modulação dos efeitos da decisão que evita cobranças retroativas que desequilibrem os contratos de prestação de serviços de água e esgoto, inclusive os grandes contratos licitados nos últimos anos, ou ainda gerem onerosidade excessiva aos usuários.

O STJ, reconhecendo que as diretrizes para instituição da tarifa de água e esgoto, nos moldes dos artigos 29 e 30 da Lei 11.445/2207 decorrem do modelo econômico alinhavado para o desenvolvimento do mercado setorial, e que os métodos de consumo real global (condomínio como uma economia) e de consumo real fracionado (mais conhecido como “modelo híbrido”) não atendem aos fatores e diretrizes de estruturação da tarifa previstos na Lei, consolidou a revisão da tese para estabelecer que[3]:

  1. Nos condomínios formados por múltiplas unidades de consumo (economias) e um único hidrômetro, é lícita a adoção de metodologia de cálculo da tarifa devida pela prestação dos serviços de saneamento por meio da exigência de uma parcela fixa (“tarifa mínima”), concebida sob a forma de franquia de consumo devida por cada uma das unidades consumidoras (economias); bem como por meio de uma segunda parcela, variável e eventual, exigida apenas se o consumo real aferido pelo medidor único do condomínio exceder a franquia de consumo de todas as unidades conjuntamente consideradas.
  2. Nos condomínios formados por múltiplas unidades de consumo (economias) e um único hidrômetro, é ilegal a adoção de metodologia de cálculo da tarifa devida pela prestação dos serviços de saneamento que, utilizando-se apenas do consumo real global, considere o condomínio como uma única unidade de consumo (uma única economia).
  3. Nos condomínios formados por múltiplas unidades de consumo (economias) e um único hidrômetro, é ilegal a adoção de metodologia de cálculo da tarifa devida pela prestação dos serviços de saneamento que, a partir de um hibridismo de regras e conceitos, dispense cada unidade de consumo do condomínio da tarifa mínima exigida a título de franquia de consumo.

Sobre o respeito ao modelo econômico definido para os serviços de água e esgoto já pontuou Casotti[4]:

(…) pressupõe-se que o desenvolvimento regular da prestação dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário somente ocorrerá, com vistas ao respeito à universalização do o e eficiência, caso garantida a sustentabilidade econômica. Por sua vez, a sustentabilidade econômica é garantida por meio da aplicação dos instrumentos jurídicos e econômicos previstos na legislação de referência, bem como na literatura aplicável aos serviços públicos em geral, revelando a imprescindibilidade de garantir o respeito àquela.

Essa evolução do entendimento denota importante deferência aos parâmetros técnico-jurídicos definidos na legislação, com preponderância dos reguladores competentes para a estruturação dos serviços concedidos. Essa característica foi recentemente destacada por Campos[5], em artigo que tratou de decisão que negou liminar para suspensão de pedágio além do que já previsto nos contratos e nas normas de regulação nas rodovias concedidas no Rio Grande do Sul logo após o desastre de maio deste ano:

Como se pode perceber, a decisão proferida – embora obviamente ainda ível de reforma ao longo do processo – é extremamente alvissareira, pois atesta que, ados quase 30 anos da entrada em vigor do atual regime jurídico das concessões de serviço público, o Poder Judiciário de 1º grau encontra-se cada vez mais conhecedor e consciente a respeito da importância de prestigiar – sempre que houver fundamentos para tanto, por óbvio – o sistema de regulação setorial, mesmo quando testado diante de situações de ampla repercussão e comoção social. Em tempos nos quais, em certas jurisdições internacionais, o princípio da deferência istrativa tem sido alvo de ataque e revisão (em 28/06/2024, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu, por 6 votos a 3, revisar seu entendimento acerca do precedente conhecido como “Doutrina Chevron”, cuja origem remonta a caso de 1984), deve-se saudar, mais uma vez, a decisão analisada neste artigo.

STJ contraria a própria jurisprudência

Nesse sentido, há que se observar que a ANA inseriu em sua agenda regulatória o item 9.5 que irá tratar, entre outros, sobre a temática aqui abordada e, para a formulação de futuro normativo, promoveu a Consulta Pública nº 10/2023 [6], com encerramento das contribuições em 22/01/2024. Certamente, o resultado do julgamento do STJ também contribuirá para a conformação de normativo futuro, que contará com maior maturação e segurança jurídica.

Inobstante a evolução do arcabouço jurídico relativo ao faturamento, nota-se que a Corte Superior, ao tratar da modulação dos efeitos, incorreu em aparente equívoco, pontuado por alguns embargos de declaração opostos em face da decisão. Ao vedar a cobrança retroativa pelas concessionárias das diferenças entre o agora chancelado regime de economias e o denominado critério híbrido, o STJ, aparentemente, impediu que fossem recuperados os valores cobrados com base no hibridismo tarifário decorrentes de decisão em caráter liminar, tornando definitiva uma tutela que, por natureza, se mostra precária. Por outro lado, em verdadeiro desequilíbrio, autorizou os condomínios a cobrarem, retroativamente, a diferença entre o regime de economias e o consumo real global, que considera o condomínio como apenas uma economia.

Ocorre que, ao decidir de tal maneira, o STJ desrespeita sua própria jurisprudência, já que, quando a discussão acerca do critério híbrido alcançava a Corte Superior, sempre decidiu por sua impossibilidade e pela necessidade de se considerar o consumo real global[7] a fim de que o maior consumo refletisse em uma maior fatura. Caso mantida a modulação dos efeitos da decisão em tais termos, portanto, haveria profundo desrespeito à segurança jurídica.

Permitir que os condomínios busquem recuperar valores cobrados com base no consumo real global, ainda que com base em uma decisão transitada em julgado, e não permitir que as concessionárias recuperem valores cobrados com base no rechaçado critério híbrido, mesmo decorrentes de decisão precária, subverte toda a técnica setorial. Isto porque o consumo real global possui respaldo técnico[8], ao o que o critério híbrido não.

Ainda que o capítulo da modulação de efeitos possua essa mácula, que se espera seja saneada quando do julgamento dos embargos, a superação do Tema 414 mostra-se adequada ao arcabouço normativo setorial e possibilita uma maior previsibilidade e estabilidade econômico-financeira aos prestadores dos serviços de água e esgoto, fator este fundamental para a necessária universalização.

Sem embargo de ainda aguardar-se o ajuste acima pontuado, há que se destacar que a nova redação do Tema 414 demonstra prestígio e deferência ao sistema de regulação setorial, dotando o saneamento básico de maior segurança jurídica em momento ímpar de seu desenvolvimento, quando há significativa necessidade de aceleração de investimentos e atração de novos investidores. Um sinal muito positivo para que a universalização definida como meta possa efetivamente acontecer de forma segura e sustentável.

 


[1] A necessidade de se tratar o condomínio como apenas uma economia decorre da existência de apenas uma ligação por condomínio.

[2] PAIVA, Raphael Eyer Soares de; MORELLI, Giovani. A COBRANÇA NOS SERVIÇOS DE ABASTECIMENTO DE ÁGUA E ESGOTAMENTO SANITÁRIO: críticas acerca da  insegurança jurídica advinda do tema 414/STJ e os riscos à universalização imposta pela Lei 14.026/2020. In: FROTA, Leandro; PEIXINHO, Manoel (coord.). MARCO REGULATÓRIO DO SANEAMENTO BÁSICO ESTUDOS EM HOMENAGEM AO MINISTRO LUIZ FUX Brasília: OAB Editora: 2021. p 560

[3] https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&cod_tema_inicial=414&cod_tema_final=414

[4] CASOTTI, Mateus Rodrigues. GRANDES TEMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO A DISTÂNCIA – SANEAMENTO BÁSICO: A TARIFA MÍNIMA E OS SERVIÇOS DE ABASTECIMENTO DE ÁGUA E ESGOTAMENTO SANITÁRIO NO ATUAL SISTEMA NORMATIVO. IDP, Brasília: 2016. Disponível em: https://www.idp.edu.br/wp-content/s/2019/07/Ebook-Grandes-Temas-da-Pos-EAD-Saneamento-Basico-2016.pdf. o em 11/09/2024.

[5] CAMPOS, Rodrigo Pinto de. Tragédia climática do Rio Grande do Sul: em meio ao caos, uma decisão judicial deferente à regulação. Disponível em: https://vernalhapereira.com.br/tragedia-climatica-do-rio-grande-do-sul-em-meio-ao-caos-uma-decisao-judicial-deferente-a-regulacao/. o em 11/09/2024.

[6] Disponível em: https://participacao-social.ana.gov.br/Consulta/165/Contribuicoes. ado em: 26/09/2024.

[7] Veja-se, por todos, o AgInt no AgInt no RECURSO ESPECIAL Nº 1850221 – RJ, de onde se extrai o seguinte trecho: Dessa forma, para os condomínios onde há apenas um hidrômetro a medir o consumo global de água (como na hipótese), deve ser aplicada a tabela progressiva, proporcionalmente ao consumo total aferido, a fim de que, quanto maior o consumo, maior a tarifa a ser ada pelo condomínio, de acordo com o escalonamento preestabelecido.

[8] “O cenário acima descrito somente foi possível por conta do entendimento do STJ na fixação do Tema 414, pois ao determinar a desconsideração do número de  economias na fórmula na hipótese de abastecimento centralizado, o órgão julgador e os consumidores não se atentaram para o fato de que, com o afastamento do número de economias, o único critério que compatibiliza o entendimento jurisprudencial e a legislação é o que considera o número de ligações na fixação da parte fixa.” in PAIVA, Raphael Eyer Soares de; MORELLI, Giovani. A COBRANÇA NOS SERVIÇOS DE ABASTECIMENTO DE ÁGUA E ESGOTAMENTO SANITÁRIO: críticas acerca da  insegurança jurídica advinda do tema 414/STJ e os riscos à universalização imposta pela Lei 14.026/2020. In: FROTA, Leandro; PEIXINHO, Manoel (coord.). MARCO REGULATÓRIO DO SANEAMENTO BÁSICO ESTUDOS EM HOMENAGEM AO MINISTRO LUIZ FUX Brasília: OAB Editora: 2021. p.545-564

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