Opinião

Indeferimento de medicamentos e a Súmula 60: um olhar sobre o papel do Judiciário

Autor

  • é advogado atuante na área da saúde sócio- do escritório Francisco Cristóvão Advogados Associados pós-graduando em Direito Médico e da Saúde pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) e pós-graduado em Direito da Aduana e Comércio Exterior pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali) Campus Itajaí autor de artigos jurídicos e membro consultivo da Comissão de Direito da Saúde da Ordem dos Advogados do Brasil da Seccional do Estado de Santa Catarina (OAB-SC).

    Ver todos os posts

12 de outubro de 2024, 6h02

O acordo interfederativo homologado no Tema 1.234 do Supremo Tribunal Federal estabelece uma ordem de observância obrigatória para o Poder Judiciário nos casos de aquisição de medicamentos “não incorporados”, conforme definido no ponto II – Definição de Medicamentos Não Incorporados.

Reprodução

Nos casos de ações judiciais que visam à obtenção de medicamentos não incorporados, o juízo competente deve, sob pena de nulidade do ato jurisdicional, conforme os artigos 489, §1º, V e VI, e 927, III, §1º, ambos do Código de Processo Civil, proceder à análise tanto do ato comissivo ou omissivo da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) em relação à não incorporação do fármaco, quanto da negativa de fornecimento na via istrativa (4.1).

É um critério de análise que deve consubstanciar a fundamentação da decisão judicial, pois, ainda que eventual decisão conceda ou não o tratamento, a aquisição do fármaco pelo Sistema Único de Saúde (SUS), como política pública, exige que o Judiciário examine os motivos apresentados pela istração pública sobre o tema.

O grau de detalhamento da análise pelo STF

Noutras palavras, como a busca da judicialização é em desfavor da istração pública, exige-se a necessidade de considerar, ainda que em análise perfunctória nos casos de omissão, o que os entes federados trataram sobre o caso levado pelo paciente ao Judiciário. Isso é essencial para indicar o que a política pública oferece de tratamento e, com isso, partir para a análise da “ineficácia ou impropriedade da política de saúde existente” para o caso em questão (STA 175-AgR – 4.4).

No exercício do controle de legalidade (4.1), é essencial que o Poder Judiciário não se substitua à vontade do . Em vez disso, a sua função consiste em verificar se o ato istrativo específico se conforma com as diretrizes constitucionais, a legislação pertinente e as políticas públicas estabelecidas para o SUS.

A análise judicial é crucial tanto em casos de omissão quanto de comissão pela istração pública na não incorporação de medicamentos (4.2). Nos casos em que a Conitec não realiza a avaliação de determinado fármaco, o Judiciário deve se limitar a uma análise superficial, evitando adentrar nos pormenores do caso específico, já que a ausência de avaliação prévia pela istração impede uma deliberação mais profunda. Nesses casos, a decisão judicial pode apenas apontar o que o SUS já oferece em termos de tratamento, sem a necessidade de uma investigação minuciosa sobre o medicamento não avaliado.

Por outro lado, quando há uma decisão istrativa explícita de não recomendado, o Judiciário deve realizar uma análise mais detalhada, considerando que a negativa envolve uma deliberação fundamentada sobre a eficácia e a segurança do tratamento.

Em ambos os cenários, é fundamental que o juízo indique na decisão judicial o tratamento oferecido pela política pública de saúde, avaliando sempre se existe comprovação da ineficácia ou impropriedade dessa política para o caso específico (4.3 e 4.4).

Análise dos motivos

A análise jurisdicional deve observar não apenas a legalidade dos atos istrativos, mas também a teoria dos motivos determinantes. Essa teoria estabelece que a validade do ato istrativo está vinculada à regularidade dos fundamentos que o sustentam. Como destacado pelo ministro Dias Toffoli no voto do RE 786540/DF, “por força da teoria dos motivos determinantes, a validade do ato istrativo fica vinculada à regularidade do fundamento aventado” (Tema nº 763, pág. 29).

No exercício do controle de legalidade, é fundamental que o Poder Judiciário não substitua a vontade do , mas verifique se o ato istrativo, comissivo ou omissivo, está em conformidade com as balizas presentes na Constituição Federal, na legislação de regência e nas políticas públicas do SUS.

Spacca

Ao analisar a recusa de fornecimento de medicamentos não incorporados, é imprescindível que o Judiciário verifique se as razões invocadas pela istração são consistentes e adequadamente fundamentadas. Isso evita que decisões meramente arbitrárias ou infundadas prevaleçam em detrimento do direito à saúde dos cidadãos.

No contexto dos medicamentos não incorporados, seja por omissão ou pela não recomendação da Conitec, a análise judicial do caso concreto permanece essencial e não pode ser desconsiderada (4.3 e 4.4).

O ônus do autor

A não recomendação, embora indique uma posição da istração sobre a eficácia ou a segurança do fármaco, não exime o Poder Judiciário de sua função de avaliar a situação específica do paciente. O fato de um medicamento não ter sido incorporado ao SUS não implica automaticamente em seu indeferimento; pelo contrário, a jurisdição continua a ser relevante e necessária.

Portanto, é imperativo que o autor da ação apresente, com base na medicina baseada em evidências, não apenas a segurança e a eficácia do medicamento em questão, mas também a inexistência de substitutos terapêuticos incorporados pelo SUS (4.3).

Esse ônus já é exigido do autor conforme estabelecido no Tema 106 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que ressalta a necessidade de comprovar a imprescindibilidade do medicamento não incorporado.

A hipótese de ausência de incorporação

É fundamental destacar o Tema 106 do STJ, que, em seu ponto III, estabelece como critério para a concessão de medicamentos não incorporados a “existência de registro do medicamento na Anvisa, observados os usos autorizados pela agência”. Isso significa que, nesses casos, há evidências científicas de alto nível que sustentam a utilização do fármaco.

Assim, ao discutir medicamentos não incorporados, especialmente à luz da análise do STF, é crucial considerar que a ausência de incorporação não significa a exclusão da possibilidade de concessão judicial.

A análise deve focar na verificação da necessidade do medicamento para o tratamento da moléstia, reforçando a importância da demonstração da ineficácia dos fármacos fornecidos pelo SUS, quando aplicável.

Eficácia e disponibilidade do tratamento

Em se tratando de eficácia, é importante ressaltar que a busca por um tratamento adequado para o quadro clínico do paciente encontra respaldo nas decisões do STF e STJ. O STF, no julgamento do Agravo Regimental na Suspensão de Tutela Antecipada nº 175/CE, em 17 de março de 2010, estabeleceu critérios paradigmáticos para a solução judicial de casos envolvendo o direito à saúde. O relator, ministro Gilmar Mendes, concluiu que “deverá ser privilegiado o tratamento fornecido pelo SUS em detrimento de opção diversa escolhida pelo paciente, sempre que não for comprovada a ineficácia ou a impropriedade da política de saúde existente.

O STJ complementa esse entendimento, afirmando que as prestações de saúde não devem ser aferidas apenas pela eficácia do fármaco, mas também pela inexistência ou inefetividade das opções terapêuticas viabilizadas pelo SUS. Essa compreensão é corroborada por diversos julgados, como o AgRg no AREsp 697.696/PR, AgRg no REsp 1.531.198/AL, AgRg no AREsp 711.246/SC e AgRg no AREsp 860.132/RS.

Outros requisitos

Adicionalmente, o Enunciado nº 92 do Fonajus também reforça a importância de considerar a condição clínica do demandante e as repercussões negativas do longo tempo de espera para a saúde e bem-estar do paciente ao avaliar pedidos de tutela de urgência. Isso evidencia a necessidade de uma análise individualizada, priorizando a eficiência e adequação do tratamento ao quadro clínico específico.

É imperativo que o autor da ação apresente, com base na medicina baseada em evidências, não apenas a segurança e a eficácia do medicamento em questão, mas também a inexistência de substitutos terapêuticos incorporados pelo SUS.

Assim, a análise jurisdicional deve levar em conta evidências científicas robustas, conforme destacado pelo acordo interfederativo (4.4).

A ressalva mencionada no STA 175-AgR pelo ministro Gilmar Mendes é clara: sempre que não for comprovada a ineficácia ou a impropriedade da política de saúde existente, o tratamento oferecido pelo SUS deve ser priorizado. Isso quer dizer que, mesmo em casos de não recomendação pela Conitec, o ônus da prova continua a recair sobre o autor, que deve demonstrar, de forma inequívoca, a ineficácia ou inadequação do tratamento disponibilizado pelo SUS.

Assim, a não recomendação de um medicamento pela Conitec não é por si só um obstáculo insuperável, mas o deferimento judicial dependerá da capacidade do autor de demonstrar, por meio de evidências científicas, que o tratamento existente é inadequado ou ineficaz para o caso específico.

o a alternativas terapêuticas

Nesse contexto, é crucial ressaltar que a existência de políticas públicas com Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) para determinados tratamentos não exclui a possibilidade de intervenção do Judiciário quando um paciente busca um tratamento que não está incorporado ao SUS, para seu quadro clínico.

Mesmo quando um PCDT está estabelecido, é possível que o paciente já tenha esgotado as opções terapêuticas disponíveis sem alcançar os resultados esperados ou que tenha experimentado a progressão da doença.

A atuação do Judiciário se torna fundamental para garantir o o a alternativas terapêuticas adequadas às necessidades individuais do paciente, evidenciando a imprescindibilidade da análise do caso concreto pelo Judiciário, bem como a necessidade do autor da demanda apresentar provas robustas que sustentem a imprescindibilidade do tratamento requerido.

Por exemplo, em casos oncológicos, mesmo quando há um Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) estabelecido, é possível que o paciente já tenha utilizado a terapia disponível sem obter os resultados desejados, ou que haja progressão da doença.

Nesses casos, o paciente busca o Judiciário não apenas por uma questão de escolha, mas porque a terapia anteriormente istrada e padronizada não está mais surtindo efeitos. A Lei nº 14.758/2023, em seu artigo 12, assegura que o paciente oncológico não deve ficar desassistido em relação a tratamento, mesmo em situações que envolvem cuidados paliativos. Isso reforça a necessidade de uma análise judicial cuidadosa, garantindo que os direitos à saúde e ao o a tratamentos adequados sejam preservados (interpretação sistemática).

A análise do caso concreto é essencial, pois a padronização de medicamentos não implica automaticamente na sua eficácia ou adequação para todos os pacientes. Em situações oncológicas, por exemplo, um medicamento padrão pode ter efeitos adversos significativos que comprometem o estado clínico do paciente.

Um caso ilustrativo é o tratamento do câncer de próstata com docetaxel, cuja alta toxicidade não só ataca as células cancerígenas, mas também prejudica severamente o estado geral do paciente. Essa toxicidade intensa pode justificar a autorização judicial para a utilização de abiraterona, um fármaco que se mostra mais eficiente e que pode melhorar a qualidade de vida do paciente, mesmo sem o uso prévio da quimioterapia (observado o caso em concreto).

Esse entendimento é corroborado pela diretriz do PCDT para o tratamento de adenocarcinoma de próstata, que estabelece que a abiraterona deve ser istrada apenas após a quimioterapia com docetaxel em casos de câncer metastático resistente à castração (Relatório de Recomendação nº 464 – Conitec).

Contudo, a realidade clínica pode exigir uma abordagem mais flexível. Quando o tratamento padrão se revela ineficaz ou prejudicial, o Judiciário deve ser acionado para avaliar a situação do paciente, permitindo o o a alternativas terapêuticas que ofereçam benefícios significativos.

Considerações finais

Assim, a conclusão que se extrai é que, mesmo na presença de políticas públicas, o Judiciário desempenha um papel crucial na proteção dos direitos dos cidadãos à saúde, assegurando que as decisões sobre tratamentos sejam fundamentadas na realidade clínica e nas necessidades individuais dos pacientes, conforme as diretrizes da medicina baseada em evidências.

Entretanto, o acordo interfederativo entre os entes da istração pública direta, ao introduzir exigências probatórias rigorosas, revela-se problemático. O estabelecimento de critérios como a apresentação de ensaios clínicos randomizados ou revisões sistemáticas não apenas eleva o nível de complexidade na formação da prova, mas também acentua uma desigualdade já existente no o à justiça.

Aqueles que dispõem de recursos financeiros e de representação judicial especializada são favorecidos, enquanto a grande maioria dos brasileiros, que busca atendimento na rede pública, encontra-se em uma posição vulnerável. Médicos que atendem a múltiplos pacientes, frequentemente sem tempo para elaborar laudos técnicos detalhados, são pressionados a produzir evidências científicas de alto nível, o que nem sempre é viável.

Essa situação não apenas limita as alternativas terapêuticas disponíveis, mas também compromete o direito de o à saúde de forma equânime. Nesse contexto, o Judiciário deve atuar como um guardião dos direitos individuais, garantindo que a análise das demandas por medicamentos não seja condicionada a barreiras excessivas.

O papel do Judiciário é fundamental na formação da prova, que deve ser pautada pela realidade clínica dos pacientes. É essencial que as decisões considerem não apenas as diretrizes formais estabelecidas, mas também as necessidades e contextos específicos de cada caso.

A rigidez das exigências probatórias, portanto, não pode se sobrepor ao princípio da dignidade da pessoa humana, que deve guiar todas as decisões no campo da saúde.

Diante dessa realidade, a formação de uma nota técnica se torna fundamental na análise de casos que envolvem o o a medicamentos e tratamentos não incorporados. É nesse contexto que o sistema e-Natjus se destaca como uma solução eficaz.

A utilização deste sistema, que opera por meio dos Núcleos de Apoio Técnico ao Judiciário (Natjus), oferece uma assessoria técnica qualificada e embasada em evidências científicas de alto nível, permitindo que o Judiciário tenha o a informações precisas e atualizadas para fundamentar suas decisões.

A decisão do juízo frequentemente não pode se basear apenas na narrativa do autor da ação, especialmente em se tratando de questões de saúde, onde a complexidade dos tratamentos e medicamentos exige uma avaliação técnica aprofundada.

O e-Natjus não só fornece pareceres que podem ser favoráveis ou contrários ao pleito do paciente, mas também integra uma base de dados que concentra informações essenciais sobre medicamentos, alternativas já incorporadas nas políticas de saúde e suas evidências científicas. Isso é particularmente relevante para aqueles que buscam a tutela judicial, geralmente pessoas vulneráveis que carecem de recursos para contratar especialistas.

Portanto, a utilização do e-Natjus se revela essencial e imprescindível para que o Judiciário possa decidir com precisão acerca dos limites técnicos em casos de saúde. Essa plataforma não apenas oferece análises científicas de alto nível, mas também promove um o à justiça mais equitativo, evitando a criação de dicotomias que favorecem apenas aqueles com melhores recursos.

 

Autores

  • é advogado atuante na área da saúde, sócio- do escritório Francisco Cristóvão Advogados Associados, pós-graduando em Direito Médico e da Saúde pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) e pós-graduado em Direito da Aduana e Comércio Exterior pela Universidade do Vale do Itajaí, Campus Itajaí - Univali, autor de artigos jurídicos e membro consultivo da Comissão de Direito da Saúde da Ordem dos Advogados do Brasil da Seccional do Estado de Santa Catarina (OAB-SC).

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!