Opinião

Crimes tributários e 'autonomia' das instâncias: solução prática

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  • é procuradora da Fazenda Nacional mestranda em Direito Tributário pela FGV Direito SP membro do Núcleo de Direito Tributário do mestrado profissional da mesma instituição bacharel em Ciências Jurídicas (Ufal) pós-graduada em Direito Processual pelo Centro de Ensino Superior de Maceió (Cesmac) e em Direito istrativo pela Anhanguera (Uniderp) e mestranda em Direito Profissional na FGV.

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26 de outubro de 2024, 6h39

Em linhas gerais, crimes contra a ordem tributária são ações fraudulentas que envolvem o não pagamento, aqui incluído o pagamento incompleto, de tributos. São crimes de natureza material ou de resultado, vez que a sua consumação acontece quando há a supressão ou redução do tributo, e não com a conduta de apresentar declaração falsa ou com a omissão de dados. Assim, é necessário haver lançamento definitivo do tributo (Súmula Vinculante 24) para que possa ser configurado o delito.

Cumpre destacar que não há crime pelo inadimplemento de tributo. O que a lei objetivou proteger foi a ordem tributária em face do não recolhimento decorrente de apropriação indébita de tributo descontado de terceiro. Assim, dada a importância social dos tributos em questão, o legislador possibilitou o uso do processo penal como meio coativo ao pagamento de tributos e, desta feita, a legislação brasileira permite a extinção da punibilidade dos crimes tributários mediante o pagamento dos tributos que originaram à ação penal (Lei nº 9.249/1995).

Há ainda a possibilidade de suspensão da pretensão punitiva “durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime de parcelamento” (artigo 9º Lei nº 10.684/03). No entanto, não há regra expressa prevendo a mesma solução para outras situações similares.

Observa-se que se o contribuinte, executado, presta garantia e embarga, mesmo que o juiz conceda efeito suspensivo da exigibilidade do crédito, não há reflexos na esfera penal. Idêntica solução ocorre se o contribuinte executado obtém tutela cautelar suspensiva da exigibilidade em uma ação anulátória ou uma liminar, para esse mesmo fim, em um mandado de segurança.

Assim, em uma análise rápida, pode-se dizer que se o contribuinte, em anulatória e/ou mandado de segurança, não obtém provimento suspensivo da exigibilidade, ainda assim devem caminhar “autonomamente” as ações (penal e cível), de acordo com maioria da doutrina.

Aqui, precisamos compatibilizar duas ideias: a) para que o tributo possa ser sonegado, se faz necessário que o crédito tributário seja hígido (inteligência da Súmula Vinculante 24) e b) o sistema jurídico permite a discussão no âmbito judicial do crédito tributário, mesmo após o lançamento definitivo no âmbito istrativo.

Questão prejudicial

Reprodução

A constituição definitiva do crédito tributário é elemento típico do crime tributário [1], fato que interliga as instâncias penal e cível [2]. Desse modo, se houver questionamento quanto à higidez do crédito tributário somado ou não com a determinação da suspensão da exigibilidade do crédito tributário (artigo 151, CTN) podemos inferir que um elemento típico do crime tributário poderá não estar presente.

Desta feita, não se pode negar que a propositura de ação antiexacional impacta, por si, o processo de aplicação da sanção penal tributária, vez que interfere no próprio mérito da ação penal.

Essa interferência recebe o nome de questão prejudicial e, utilizando os ensinamentos do professor Mirabete, podemos dizer que:

“Como toda a questão jurídica de direito penal ou extrapenal que verse elemento integrante do crime e cuja solução, escapando à competência do juiz criminal e provocando a suspensão da ação penal, deve preceder a decisão da questão principal” [3].

Observa-se que a questão exacional detém uma anterioridade lógica (dependência lógica), necessária (a ação criminal está vinculada à decisão da prejudicial para concluir se há tipicidade)  e autônoma (a questão tributária é tratada em processo autônomo) em relação ao mérito da ação penal, portanto a prejudicialidade da questão tributária resta clara.

Regra do artigo 93 do P

O Código de Processo Penal assim ensina:

“Art. 93.  Se o reconhecimento da existência da infração penal depender de decisão sobre questão diversa da prevista no artigo anterior, da competência do juízo cível, e se neste houver sido proposta ação para resolvê-la, o juiz criminal poderá, desde que essa questão seja de difícil solução e não verse sobre direito cuja prova a lei civil limite, suspender o curso do processo, após a inquirição das testemunhas e realização das outras provas de natureza urgente.”

De acordo com a doutrina processual penal, a regra do artigo 93 do P é uma questão prejudicial heterogênea facultativa, sendo que a suspensão da ação criminal seria uma faculdade do juiz criminal, desde que a questão cível seja de difícil solução.

Ocorre que o sistema jurídico precisa ser analisado de maneira que se mantenha a coerência e unidade, assim, ante a necessidade de certeza em relação a um dos elementos típicos do crime tributário e da dificuldade do juiz criminal em “resolver, de fato e de direito, toda a matéria da acusação ou da defesa” [4], se faz necessário que o artigo 93 do P não seja entendido como uma faculdade do juiz.

A suspensão da ação criminal até a decisão final da ação antiexacional não traria prejuízo para a persecução penal, pois a prescrição punitiva não corre “enquanto não resolvida, em outro processo, questão de que dependa o reconhecimento da existência do crime” (artigo 116, I, do ).

Desta feita, a leitura do artigo 93 do P de maneira a se harmonizar com o sistema evitaria a possibilidade de coisas julgadas contraditórias.

Não se pode permitir a manutenção de uma decisão penal condenatória por crime contra a ordem tributária se for comprovado que o crédito tributário inexiste, sendo necessário desconstituir a coisa julgada através de uma revisão criminal (artigo 621, IV, do P), sendo inaplicável o princípio da independência de instâncias.

A situação oposta, uma absolvição no âmbito penal, sendo posteriormente reconhecido a existência do credito tributário, temos que há possibilidade de defender a independência das instâncias, sem possibilidade de revisão criminal ou de um novo julgamento, em face da coisa julgada, mas restando assegurada a cobrança do crédito tributário.

Entretanto, a solução que melhor resguarda o direito da Fazenda Pública e o do contribuinte/executado é a suspensão da ação criminal até a conclusão da ação antiexacional.

 


Referências

BRASIL. Código de Processo Penal. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm. o em 21 set. 2024.

BRASIL. Código Penal. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. o em 26 set. 2024.

STF. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verPronunciamento.asp?pronunciamento=6797909. o em 21 set. 2024.

BRASIL. Lei º 10.664 de 30 de maio de 2003. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2003/L10.684.htm. o em: 21 set 2024.

MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo Penal. São Paulo: Atlas, 2000, 10ª ed.

[1] Parte da doutrina caracteriza a constituição definitiva do crédito como condições de procedibilidade da ação penal.

[2] Aqui recordamos que as instâncias penal, civil e istrativas são independentes como regra, havendo, pois, situações em que haverá necessária vinculação entre as instância, como exemplo podemos citar a impossibilidade de ação cível ex delicto quando a sentença criminal for absolutória por reconhecer a inexistência material do fato (art. 66, P).

[3] MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo Penal. São Paulo: Atlas, 2000, 10ª ed.,p.201.

[4] P. Art. 93, § 1o O juiz marcará o prazo da suspensão, que poderá ser razoavelmente prorrogado, se a demora não for imputável à parte. Expirado o prazo, sem que o juiz cível tenha proferido decisão, o juiz criminal fará prosseguir o processo, retomando sua competência para resolver, de fato e de direito, toda a matéria da acusação ou da defesa. (grifo nosso)

 

Autores

  • é procuradora da Fazenda Nacional, mestranda em Direito Tributário pela FGV Direito SP, membro do Núcleo de Direito Tributário do mestrado profissional da mesma instituição, bacharel em Ciências Jurídicas (Ufal), pós-graduada em Direito Processual pelo Centro de Ensino Superior de Maceió (Cesmac) e em Direito istrativo pela Anhanguera (Uniderp) e mestranda em Direito Profissional na FGV.

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