Eleições 2024: nem Ministério da Verdade, nem Ministério do Amor!
26 de outubro de 2024, 8h00
Convidamos você a participar do 7º Colóquio de Crítica Hermenêutica do Direito, promovido pelo Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos, coordenado pelo professor doutor Lenio Luiz Streck, que esse ano ocorrerá em formato híbrido (virtual e presencial), nos dias 28 e 29 de novembro. Confira o cronograma e inscreva-se clicando aqui.
1. Da desinformação eleitoral e do papel das mídias sociais
George Orwell, ao comentar os pilares dogmáticos de estruturação do Socing em 1984, sustenta que a história é constantemente reescrita, sendo que “[e]ssa falsificação diária do ado, levada a efeito pelo Ministério da Verdade, é tão necessária para a estabilidade do regime quanto o trabalho de repressão e espionagem realizado pelo Ministério do Amor” [1]. Mutatis mutandis, a falsificação diária do ado realizada pelo Ministério da Verdade na distopia de Orwell possui estreita relação com a desinformação eleitoral que vivenciamos nas democracias atuais. Afinal, diferentemente de uma simples mentira, despida de credibilidade, o fenômeno das fake news eleitorais pressupõe “o falso com a estética do verdadeiro” [2], com o objetivo de persuadir o eleitorado. É algo mais complexo.
adas as eleições municipais desse ano, algumas questões ficaram evidenciadas. Uma delas é a de que as redes sociais estão cada vez mais presentes no contexto eleitoral e são cada vez mais utilizadas como veículos de comunicação com o grande público em época de campanha, especialmente em cidades de grande porte. Tratam-se de uma forma muito efetiva de os candidatos levarem suas propostas e ideias a um número maior de pessoas, comunicando também com a juventude. As redes sociais servem, portanto, como um efetivo meio de diálogo e informação e são uma realidade da qual é impossível sairmos. Em que pese em cidades menores as campanhas ainda sejam muito focadas na rua, na proximidade com o eleitor, a tendência é que a utilização das redes sociais na disputa pelo pleito eleitoral cresça a cada eleição.
Isso leva à outra questão que ficou evidente: a utilização das redes para disseminação de informações manipuladas na disputa eleitoral. Evidentemente que não se trata de algo novo, afinal, o próprio TSE vem desenvolvendo formas de combate. Nas eleições de 2022, por exemplo, as capacidades persuasivas e de agregação social da desinformação eleitoral foram comprovadas por um episódio específico: a ardilosa tese de fraude no sistema eletrônico de votação, que teve uma amplitude muito maior em razão das redes sociais, e que acabou sendo defendida processualmente no TSE. Esse mesmo episódio ficou responsável por arregimentar a lamentável invasão da Sede dos Três Poderes alguns meses depois. Comentando o episódio, classificado como “dia da infâmia”, Lenio Streck ironiza:
“Eis o resultado: as urnas eletrônicas são colocadas em dúvida ainda hoje, mesmo depois de tantas eleições. Cá entre nós, se as urnas foram fraudadas para dar vitória à Lula, os manipuladores devem ser punidos por incompetência. Afinal, esqueceram de fraudar a eleição de Ibaneis, por exemplo. Os manipuladores são gozadores? E por que deixaram Zambelli fazer mais de 800 mil votos? Esses fraudadores são uns pândegos. Tem um senso de humor bárbaro” [3].
Antes disso, o TSE já havia cassado de modo inédito o mandato do deputado Fernando Francischini (União Brasil-PR), que realizou uma live no dia do pleito, sustentando a existência de fraude nas urnas eletrônicas durante as eleições de 2018. Na ocasião, o ministro Luis Felipe Salomão, em seu voto-condutor, alertava que “constitui ato abusivo, a atrair as sanções eleitorais cabíveis, a promoção de ataques infundados ao sistema eletrônico de votação e à própria democracia, incutindo-se no eleitorado a falsa ideia de fraude e em contexto no qual determinado candidato sobrevenha como beneficiário dessa prática” [4].

Ou seja, as tecnologias sempre impactaram as opiniões populares e os processos de poder. Antes, o rádio e a televisão exerceram seus importantes papeis servindo como ferramentas poderosas de comunicação de massa, impactando a opinião popular e o exercício de diversos governos no mundo. Agora, as mídias sociais também servem de ferramentas importantes nesse sentido, com a diferença de que o sujeito sai de uma posição iva (de mero telespectador, ouvinte e receptor da mensagem) para uma posição ativa (de emissor do conteúdo e do discurso). Assim, as mídias sociais promovem a propagação e proliferação viral de informação, sem que ela e por uma análise da sua veracidade ou confirmação, fenômeno que Byung-Chul Han denomina de infodemia [5].
Assim, figuras políticas que sabem dominar as ferramentas e mídias sociais acabam, também, dominando discursos e narrativas. Recentemente, Lenio Streck publicou um texto na ConJur, em sua coluna Senso Incomum, em que falou sobre um novo personagem que exsurge, tanto na política como no Direito: o outsider. Para ler o texto, basta clicar aqui. O que importa frisar, nessa oportunidade, é que as mídias sociais são importantes ferramentas para que o outsider ganhe voz e engajamento, porque elas facilitam o o direto ao público, permitindo uma comunicação mais personalizada e imediata, e permitindo a criação de narrativas falsas ou manipuladas com mais facilidade.
2. Da responsabilização dos candidatos
Nesse contexto, preocupado com o impacto da divulgação de fatos notoriamente inverídicos ou descontextualizados na integridade do processo eleitoral, o TSE vem consolidando um arcabouço normativo de combate às fake news, destacando-se a Res-TSE nº 23.714/22, cuja constitucionalidade foi reconhecida pelo STF no julgamento da ADI nº 7.261/DF, assim como a Res-TSE nº 23.732/24, responsável por atualizar a Res-TSE nº 23.610/19. As novidades são inúmeras, algumas procedimentais – possibilidade de suspensão temporária de perfis e contas de redes sociais, nos termos do artigo 4º, caput, da Res-TSE nº 23.714/22 –, outras de mérito, como a possibilidade de cassação de mandato por uso indevido dos meios de comunicação social em casos de fake news e deep fake (artigo 9º-C da Res-TSE nº 23.610/19, incluído pela Res-TSE nº 23.732/24).
Entretanto, malgrado esse conjunto de novos instrumentos normativos e o próprio fato de a Justiça Eleitoral estar mais madura no tratamento das fake news, verifica-se que esse problema ainda é bastante presente. Esse ano a campanha em São Paulo foi um importante exemplo disso. Para além de toda a teatralidade envolvendo os debates, a desinformação também esteve presente. Por exemplo, as redes sociais do candidato Pablo Marçal (PRTB-SP) foram suspensas em no mínimo duas oportunidades, sendo a última, na antevéspera do pleito, por divulgação de laudo falso sobre uso de drogas contra o candidato Guilherme Boulos (PSOL-SP). Pode-se dizer que, diferentemente da maioria das fake news divulgadas, cuja autoria é incerta, o candidato Pablo Marçal inaugurou uma prática de divulgação pelas suas próprias redes sociais, vinculando-se diretamente à informação notoriamente inverídica ou descontextualizada e, portanto, fazendo prova da autoria.
Apesar disso, o procedimento padrão de divulgação de fake news ainda é o mesmo das eleições de 2018: fatos notoriamente inverídicos ou descontextualizados contidos em material anônimo, cujo compartilhamento, na ampla maioria das vezes, ocorre através de grupos de WhatsApp. Logo, dentre os principais obstáculos ao enfrentamento da desinformação eleitoral, situa-se a responsabilização do candidato beneficiário, seja em casos mais simples, como representações por propaganda irregular e pedidos de direito de resposta, seja em casos mais complexos, como ações de investigação judicial eleitoral por uso indevido dos meios de comunicação social.
Nos casos mais simples, afora as hipóteses de autoria direta, a legislação permite também a responsabilização do candidato beneficiário em caso de prévio conhecimento deste, vide o artigo 40-B da Lei nº 9.504/97 e o artigo 30, § 1º, da Res-TSE nº 23.610/19. A esse respeito, Rodrigo López Zilio esclarece que a regra do prévio conhecimento do candidato “objetiva impedir uma responsabilidade por ato de terceiros. Daí que o beneficiário somente é sancionado por determinada propaganda irregular quando houver prova mínima de sua participação ou anuência ao ilícito” [6] Além disso, em se tratando de autoria direta pelo candidato, aplica-se o dever positivo de conferir a fidedignidade da informação antes de compartilhá-la (artigo 9º, caput, da Res-TSE nº 23.610/19).
Por outro lado, a ação de investigação judicial eleitoral é regida pelo artigo 373 do C, incumbindo-se ao autor o ônus de provar os fatos constitutivos de seu direito, incluindo a autoria por parte do candidato beneficiário. Aliás, conforme ensina Rodrigo López Zilio, “[n]o âmbito das ações cassatórias, por certo, evidencia-se uma típica natureza de direito sancionador, o que exige do autor um ônus de demonstrar com robustez a existência do fato ilícito e sua repercussão no bem jurídico protegido” [7]. Nesse tom, em caso de divulgação massiva de fake news pelo aplicativo WhatsApp, cuja prova da autoria era débil em relação ao candidato beneficiário, o TSE endossou a necessidade de um acervo probatório contundente, valorizando-se a vontade popular, sendo a cassação do mandato pela Justiça Eleitoral uma exceção [8].
3. Os desafios a serem enfrentados
Os desafios, portanto, subdividem-se. Isso porque, de um lado, a proliferação de fake news e criação de falsas narrativas no contexto eleitoral é uma realidade cada vez mais presente nas eleições. De outro, contudo, é preciso ter cautela na responsabilização dos candidatos para que não haja interferência indevida do Poder Judiciário no resultado do pleito eleitoral, o que toca diretamente à democracia.
Nos casos de propaganda irregular, por exemplo, afasta-se a presunção de prévio conhecimento do candidato, a exemplo do que já ocorre com o derramamento de santinhos, exigindo-se prova inequívoca do seu prévio conhecimento, ônus inteiramente aplicável a quem ajuíza a representação. A seu turno, nos casos de uso indevido dos meios de comunicação social, impõe-se a comprovação da autoria do candidato, afastando-se a aplicação da tese do prévio conhecimento, tampouco a presunção do prévio conhecimento, dada a ausência de previsão legal e a impossibilidade de analogia in malam partem no âmbito do direito sancionador.
Porém, é preciso dizer, a complexidade das ferramentas utilizadas para a disseminação de fake news e de narrativas falsas torna difícil a obtenção de prova inequívoca quanto à real ingerência do candidato na conduta. Isso porque, conforme referido anteriormente, os processos de comunicação têm ficado cada vez mais pulverizados com as mídias sociais. No contexto eleitoral, isso acaba sendo muito mais difícil, na medida em que o tempo é curto e as medidas judiciais precisam ser tomadas de maneira célere para evitar a interferência no resultado das eleições.
Ressalte-se que, embora fundamental para o exercício da democracia, o enfrentamento à desinformação eleitoral não pode ocorrer mediante práticas abusivas e heterodoxas, exigindo-se o preenchimento dos requisitos legais no reconhecimento da autoria. Caso contrário, retornando ao 1984 de George Orwell, estar-se-ia adotando o modus operandi autoritário praticado pelo Ministério do Amor em nome do combate às mentiras difundidas pelo Ministério da Verdade. Ou seja, a questão é e continua sendo extremamente complexa, exigindo também que as respostas sejam complexas.
[1] ORWELL, George. 1984. Trad. Alexandre Hubner e Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 251.
[2] RAIS, Diogo. Fake News. In. Dicionário das Eleições. DE SOUZA, Cláudio André; ALVIM, Frederico Branco; BARREIROS NETO, Jaime; DANTAS, Humberto (Coordenadores). Curitiba: Editora Juruá, 2020. p. 319-320.
[3] STRECK, Lenio. 8/1/2023: o dia infâmia para não ser esquecido! “Nunca más”! Revista Consultor Jurídico. 10 de jan. 2023. Disponível em: /2023-jan-10/lenio-streck-812023-dia-da-infamia-nao-esquecido/. o em: 14 out. 2024.
[4] TSE, RO-EI nº 0603975-98/PR, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Pleno, j. 28/10/21.
[5] HAN, Byung-Chul. Infocracia: Digitalização e a crise da democracia. Trad: Gabriel S. Philipson. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2022.
[6] ZILIO, Rodrigo López. Direito eleitoral. 10 ed. São Paulo: Editora Juspodivm, 2024. p. 460.
[7] Ibid. p. 755.
[8] TSE, AIJE nº 0601779-05/DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Pleno, j. 09/02/21.
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