Opinião

Água virtual, pegada hídrica e gestão das águas na mudança climática

Autores

  • é professora adjunta do Curso de Direito da Universidade Federal Fluminense e da pós-graduação "lato sensu" em Residência Jurídica na UFF/VR doutora e mestre em Direito Público e Evolução Social especialista em Direito Público pesquisadora e professora do programa "stricto sensu" em Bioética Ética Aplicada e Saúde Coletiva (UFF/UFRJ/Fiocruz) e do mestrado em Tecnologia Ambiental (UFF/VR).

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  • é graduanda em Direito bolsista Pibic Cnpq/UFF 2024-2025 e pesquisadora do GEMADI.

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27 de outubro de 2024, 7h03

As sociedades em geral têm enfrentado crises ambientais, entre elas as mudanças do clima, que ora trazem efeitos drásticos de secas — gerando queimadas —, ora consequências como tornados, furacões e chuvas intensas, como o ocorrido recentemente no Rio Grande do Sul (considerado o maior desastre hidrológico da região sul), que resultou em perdas de vidas humanas e não-humanas, prejuízos na agricultura e em outras atividades.

Marinha do Brasil
Militares da Marinha levam agua potavel para desabrigados municípios de Eldorado do Sul e Guaíba (RS); enchentes no Rio Grande do Sul

Conforme Boletim Evento Adverso [1], no período de chuvas intensas, entre abril e maio de 2024, foram constatados muitos prejuízos em “9.158 localidades no estado do Rio Grande do Sul, impactando significativamente construções e estradas”, além de danos “em instalações localizadas na zona rural, como casas, galpões, armazéns, silos, estufas e aviários”.

O estudo também revelou sérios “problemas para o escoamento da produção de 4.548 comunidades em razão de estradas vicinais afetadas”. Rualdo Menegat [2] assevera que não há espaço para inércia, pontuando que “não temos a opção de nada mudar”. Ou seja, precisamos agir com planejamento, pois isso pode voltar a acontecer e de forma ainda mais drástica. Afirma ainda Menegat: “uma questão fundamental nesse século que adentra no Antropoceno é a mudança do sentido da palavra “sobrevivência”, até então vista como a conquista de um emprego ou de uma renda para pagar as contas do mês”.

A proteção dos recursos hídricos também exige ações do Poder Público e dos demais atores sociais. É preciso rever padrões de usos das águas, bem como avançar no sentido de melhorar as infraestruturas existentes, e de — efetivamente — expandir os serviços de saneamento básico. os quais afetam diretamente a qualidade das águas (aqui com o recorte em águas doces utilizadas para consumo e para produção de bens e serviços). Afinal, vale sempre realçar que a água, além de ser um recurso finito, é insubstituível e essencial à vida e ao desenvolvimento econômico [3].

O percentual de disponibilidade hídrica no planeta terra divide-se em: cerca de 97,5%  é de água salgada, cujo consumo dependeria de técnicas e estruturas de dessanilização; e — apenas — aproximadamente 2,5% do potencial restante está nas geleiras, na superfície e no plano subterrâneo [4]. Além do aspecto quantitativo das águas, deve-se levar em conta a questão da qualidade desta riqueza finita, o que tem sido problema mundial manter a salubridade do “ouro azul”, especialmente pelo crescimento de poluentes industriais e domésticos.

Impacto da mudança do clima

Estudos revelam também que a mudança do clima consubstancia relevante impacto no cenário hidrológico. Segundo dados da Unicer, “cerca de 74% dos desastres naturais entre 2001 e 2018 foram relacionados à água, incluindo secas e inundações” [5].  Neste ano de 2024, o Brasil tem vivenciado uma das suas piores experiências com a crise climática, somada a outros fatores, como a falta de políticas efetivas — nos planos nacional, regional e local — voltadas a estudos profundos sobre os efeitos do clima e de criação de estruturas para o enfrentamento de problemas futuros.

Spacca

Atualmente o Brasil se depara com outro sério problema, que são as queimadas — algumas decorrentes de ações antrópicas ilícitas e irresponsáveis, conforme investigação da Polícia Federal [6], que tem atuado para inibir e punir as queimadas ilegais. Com efeito, no dia 1 de outubro de 2024, a PF prendeu em flagrante “três suspeitos envolvidos em invasão de terras públicas e queimadas ilegais em terras da União, localizadas na região oeste do Pará”. Tais ações integram as operações de repressão contra crimes ambientais, que têm causado danos em grande parcela de vegetações, sem esquecer de vidas não-humanas que estão sendo ceifadas por conta desses incêndios.

Segundo pesquisa realizada pela MapBiomas, em agosto de 2024, as queimadas atingiram mais de 5,65 milhões de hectares [7]. No Amazonas, por exemplo, segundo nota do próprio governo, de junho até o dia 22 de setembro de 2024, mais de 18,1 mil focos de incêndio foram combatidos. Além disso, embora as condições climáticas extremas impulsionem esse cenário, muitos focos são consequência de ações criminosas. Nessa perspectiva, foram aplicadas multas no valor de R$ 136,2 milhões, 362 autos de infração e 58 termos de apreensão lavrados, além de 188 detenções realizadas [8].

Assim, no cenário de proteção das águas, e, considerando a interferência da humanidade no bom equilíbrio ambiental, bem como, o fato de que os recursos hídricos são essenciais à vida do e no planeta, entende-se pertinente trazer à baila os conceitos de água virtual e de pegada hídrica. O conceito de “água virtual” foi introduzido na década de 1990, pelo cientista britânico John Anthony Allan, em estudos realizados no Oriente Médio e na África do Norte, sobre escassez hídrica. O termo “virtual” relaciona-se ao quantitativo de água doce, que é incorporado no processo de produção, não sendo — aparentemente — visível no produto final [9].

Já o termo “pegada hídrica”, como desdobramento da pegada ecológica, foi criado por Arjen Y. Hoekstra, em 2002, quando trabalhava no Unesco-IHE (Instituto for Water Eucation), e refere-se a uma metodologia que mensura o volume total de água utilizado durante a produção de bens e serviços, assim como o consumo direto pelos seres humanos [10].

Eventos climáticos podem impactar o  à água

Para se ter uma ideia da importância de se estudar os mencionados conceitos, para produção de 1kg de trigo é necessário, em média, mil litros de água. Desse modo, “um país que importa um milhão de toneladas de trigo, estará importando um bilhão de metros cúbicos de água”[11]. O relatório “Conjuntura dos Recursos Hídricos no Brasil”, de 2023, trouxe o atual panorama do “ouro azul” em relação à sua disponibilidade, qualidade, usos, efeitos nas mudanças climáticas e ações para garantir a segurança hídrica.

O estudo em tela revela que apenas no ano de 2022, cerca de 1,5 milhão de pessoas foram afetadas por cheias no Brasil e os eventos climáticos foram intensificados, acarretando chuvas extremas no Sul e secas no Norte [12]. Este contexto impacta sobremaneira nas etapas da cadeia produtiva de bens e serviços. Ainda, eventos climáticos extremos podem dificultar — e muito — o o à água potável. O “Relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância”[13] (Unicef) ressalta que somente na América Latina e Caribe, “17,8 milhões de crianças e adolescentes vivem em áreas de vulnerabilidade hídrica”. Vale mencionar também o Programa das Nações Unidas para o desenvolvimento Brasil (Pnud Brasil) [14],o qual alerta acerca da escassez de água, que já atinge 40% da população mundial, podendo, até 2050, afetar uma em cada quatro pessoas.

Nesse contexto, entende-se que avaliar a possibilidade de inserir no rol de mecanismos de gestão das águas, os conceitos de água virtual e pegada hídrica, pode contribuir para a sustentabilidade desta riqueza finita e essencial.

 


[1] Emater. Associação Riograndense de Empreendimentos de Assistência Técnica e Extensão Rural. Boletim Evento Adverso. Disponível em https://www.estado.rs.gov.br//arquivos/202406/relatorio-sisperdas-evento-enchentes-em-maio-2024.pdf. o em: 04 out. 2025, p. 6.

[2] Menegat, Rualdo. Não temos a opção de nada mudar’, afirma autor do Atlas Ambiental de Porto Alegre. Entrevista concedida ao jornalista Ayrton Centeno, in: Brasil de Fato. Disponível em https://www.brasilconjur-br.diariodoriogrande.com.br/2024/05/18/nao-temos-a-opcao-de-nada-mudar-afirma-autor-do-atlas-ambiental-de-porto-alegre. o em: 04 out,2024.

[3] Carli, Ana Alice De.   Água é vida: eu cuido, e pouco – para um futuro sem crise. FGV Livro de Bolso, série 39. Rio de Janeiro: Ed. FGV Rio, 2015, p. 2.

[4] Carli, Ana Alice De.   A água e seus instrumentos de efetividade: educação ambiental, normatização, tecnologia e tributação. São Paulo: Ed. Millenium, 2013, p. 13.

[5] Unicef. Água e a crise climática global: dez coisas que você deve saber. Disponível em https://www.unicef.org/brazil/agua-e-crise-climatica-global-dez-coisas-que-voce-deve-saber. o em: 18 set. 2024.

[6] Brasil. PF realiza prisões em flagrante por invasões e queimadas criminosas na Amazônia Legal. Comunicação Social da Polícia Federal em Santarém. Disponível em https://www.gov.br/pf/pt-br/assuntos/noticias/2024/10/pf-realiza-prisoes-em-flagrante-por-invasoes-e-queimadas-criminosas-na-amazonia-legal. o em: 04 de out. 2024.

[7] Santos, Poliana. Queimadas e seca histórica impactam o bolso e a saúde do brasileiro. Forbes Store, 19 de setembro de 2024. Disponível em: Queimadas e seca histórica impactam o bolso e a saúde do brasileiro (forbes.com.br).

[8] Castro, Matheus. Amazonas registra 21,6 mil queimadas em 2024 e tem o pior índice em 26 anos, aponta Inpe. Disponível em: https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2024/09/24/amazonas-registra-216-mil-queimadas-em-2024-e-tem-o-pior-indice-em-26-anos-aponta-inpe.ghtml. o em: 03 de outubro de 2024.

[9] HUNG, AY Hoekstra PQ. Virtual water trade a quantification of virtual water flows between nations in relation to international crop trade. 2002. Disponível em:  https://www.waterfootprint.org/resources/Report11.pdf. o em: 17 de outubro de 2024.

[10] SILVA, et al. Uma medida de sustentabilidade ambiental: pegada hídrica. Gestão e Controle Ambiental. Revista Brasileira de Engenharia Agrícola e Ambiente. Paraíba, 2013. Disponível em: SciELO – Brasil – Uma medida de sustentabilidade ambiental: pegada hídrica. Uma medida de sustentabilidade ambiental: pegada hídrica.

[11] RENAULT, D. Value of virtual water in food: Principles and virtues. Virtual Water Trade Delft, the Netherlands, 2002.

[12] AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS E SANEAMENTO BÁSICO (Brasil). Relatório Conjuntura dos Recursos Hídricos no Brasil atualiza informações sobre águas do País. ANA, 2024. Disponível em https://www.gov.br/ana/pt-br/assuntos/noticias-e-eventos/noticias/relatorio-conjuntura-dos-recursos-hidricos-no-brasil-atualiza-informacoes-sobre-aguas-do-pais. o em: 15 de outubro de 2024.

[13] UNICEF. Água e a crise climática global: dez coisas que você deve saber. Disponível em: Água e a crise climática global: dez coisas que você deve saber (unicef.org). o em: 02 de outubro de 2024.

[14]ONU NEWS. 46% da população global vive sem o a saneamento básico. 22 de março de 2023. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2023/03/1811712#:~:text=Estudo%20lan%C3%A7ado%20pela%20Unesco%20marca%20abertura%20da%20Confer%C3%AAncia,atingir%20at%C3%A9%202%2C4%20bilh%C3%B5es%20de%20pessoas%20at%C3%A9%202050. o em: 25 de setembro de 2024.

Autores

  • é professora adjunta do Curso de Direito da Universidade Federal Fluminense e da pós-graduação "lato sensu" em Residência Jurídica na UFF/VR, doutora e mestre em Direito Público e Evolução Social, especialista em Direito Público, pesquisadora e professora do programa "stricto sensu" em Bioética, Ética Aplicada, e Saúde Coletiva (UFF/UFRJ/Fiocruz) e do mestrado em Tecnologia Ambiental (UFF/VR).

  • é graduanda em Direito, bolsista Pibic Cnpq/UFF 2024-2025 e pesquisadora do GEMADI.

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