Garantias do Consumo

Aplicação da Teoria do Desvio Produtivo ao caso do 'apagão' em São Paulo

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30 de outubro de 2024, 8h00

O caso

Spacca

Após um temporal no dia 11 de outubro, moradores de São Paulo ficaram cerca de seis dias sem energia. Ao todo, segundo a própria Enel, 3,1 milhões de domicílios foram afetados. Em novembro de 2023, outro episódio semelhante já havia ocorrido em São Paulo e, em março deste ano, o problema novamente ocorreu de forma mais localizada no centro da cidade.

Nos dias 14 e 16 de outubro, a Senacon notificou a concessionária para que apresentasse um plano emergencial de restabelecimento da energia, criasse canais de atendimento à população atingida, esclarecesse sobre a continuidade do problema em diversas áreas e informasse quais medidas preventivas estavam sendo adotadas diante da previsão de novos temporais.

Responsabilidade da concessionária

A Lei 7.783/89 estabelece, no artigo 10, inciso I, que a distribuição de energia elétrica é considerada um “serviço essencial” e, conforme artigo 22 do CDC, os órgãos públicos, por si ou por suas concessionárias, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, “contínuos”.

Consoante jurisprudência iterativa do STJ, “A energia é, na atualidade, um bem essencial à população, constituindo-se serviço público indispensável, subordinado ao princípio da continuidade de sua prestação, pelo que se torna impossível a sua interrupção” [1].

O STJ também tem decidido que as concessionárias têm responsabilidade objetiva pelos danos causados aos consumidores no caso de interrupções reiteradas no fornecimento de energia elétrica, incluindo danos morais coletivos [2].

Impactos do “apagão” para coletividade de consumidores

O fornecimento de energia elétrica representa, na atualidade, um serviço basilar e imprescindível para o desempenho, com qualidade, comodidade, eficiência e segurança, das atividades existenciais da pessoa consumidora – trabalho, estudo, descanso, lazer, convívio social e familiar, etc. –, conferindo efetividade ao princípio da dignidade humana.

Inversamente, interrupções prolongadas e/ou reiteradas no seu fornecimento trazem, para além de danos materiais calculáveis, prejuízos imateriais imensuráveis para os consumidores, com efeitos individuais e repercussão coletiva.

De fato, durante os seis dias e seis noites (ou mais) em que a população paulista ficou privada de energia e assistência, milhões de pessoas não puderam trabalhar, estudar, descansar, ter lazer e convívio social, ao menos adequadamente; muitas ficaram sem água, sem comunicação, sem transporte adequado e com o limitado a andares mais altos de prédios; outras viram seus alimentos e remédios estragar; tiveram sua vida, saúde e segurança pessoal submetidas a riscos, sofrendo, portanto, tanto privações existenciais quanto enormes transtornos e abalos.

Ao lado disso, pessoas afetadas relataram muita dificuldade para falar e reclamar com a Enel, bem como para conseguir previsão do restabelecimento do serviço, o que sugere a quantidade relevante de tempo que tais consumidores precisaram gastar com reclamações reiteradas e esperas excessivas na tentativa de obter informações, auxílio e a solução do problema.

Aplicação da Teoria do Desvio Produtivo ao caso

A Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor, que até 1/9/2024 já havia sido citada em 116.635 acórdãos de todos os tribunais estaduais, do DF e regionais federais, além de aplicada pelo STJ [3], sustenta que:

“O desvio produtivo do consumidor é o evento danoso que tem origem quando o fornecedor, no curso da sua atividade, cria um problema de consumo e se exime da sua responsabilidade de solucioná-lo voluntária e efetivamente no prazo legal ou contratual ou, na inexistência dele, em prazo compatível com a essencialidade, a utilidade ou a característica do produto ou do serviço. Com esse comportamento, o fornecedor leva o consumidor em estado de carência [4] e situação de vulnerabilidade a desperdiçar o seu tempo vital e a se desviar das suas atividades existenciais para enfrentar o problema que lhe foi imposto, o que resulta na alteração prejudicial e indesejada do cotidiano e/ou do projeto de vida do consumidor, bem como na correspondente perda definitiva de uma parcela do seu tempo total de vida em situações previsíveis e evitáveis. […] O consumidor submete-se a esse modus operandi próprio de alguns fornecedores seja pela necessidade ou premência de satisfazer determinada carência [5], seja para buscar uma solução, seja para evitar um prejuízo, seja para reparar algum dano. Portanto um evento de desvio produtivo acarreta, derradeiramente, lesão à liberdade e à existência digna da pessoa natural consumidora, que assim sofre imediata e necessariamente um dano extrapatrimonial de natureza existencial, cujo prejuízo é presumido e deve ser reparado mediante comprovação do evento danoso. Num evento de desvio produtivo o consumidor também pode sofrer, simultaneamente, outras espécies de dano” [6].

Com efeito, a concessionária Enel impôs um “apagão” de energia elétrica durante seis dias e seis noites (ou mais) à população paulista, que nesse período se viu obrigada a desperdiçar uma enorme quantidade de tempo no enfrentamento do problema e a alterar suas atividades existenciais de forma prejudicial, o que ainda se somou à impossibilidade de usufruir de outros serviços e produtos cujo fornecimento dependia da energia faltante. Tal evento danoso caracteriza o desvio produtivo dos consumidores afetados pela falta de atendimento, de assistência e de uma rápida solução do problema por parte da concessionária.

Consequentemente essa situação vivenciada pelos consumidores paulistas permite a aplicação da Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor, que pioneiramente identificou e valorizou o “tempo do consumidor” como um bem jurídico, desse modo contribuindo para a ampliação do conceito de dano moral, assim como ensejando o desenvolvimento de uma nova jurisprudência nacional fundada no reconhecimento de que o prejuízo resultante da lesão ao tempo caracteriza um dano extrapatrimonial ressarcível.

Conceito seguro de dano e distinção entre danos extrapatrimoniais e morais

Francisco Amaral [7] ensina que dano é o prejuízo decorrente da lesão a um bem jurídico. Fernando Noronha [8] acrescenta que o dano extrapatrimonial é o gênero, enquanto o dano moral anímico é uma espécie dele. Porém tendo em vista que no Brasil a Constituição Federal, o Código Civil e o CDC utilizam unicamente a nomenclatura “danos morais” para abarcar indistintamente o gênero e a espécie supracitados, objetivando evitar a “tradicional confusão“ entre danos extrapatrimoniais e morais presente em grande parte da doutrina e da jurisprudência [9], os danos extrapatrimoniais (gênero) devem ser entendidos como “danos morais em sentido amplo”, enquanto os danos morais anímicos (espécie) devem ser compreendidos como “danos morais em sentido estrito”.

Nesse sentido, desejando contribuir para o reconhecimento de novas espécies de dano extrapatrimonial para além da esfera anímica da pessoa, propus que os danos morais fossem classificados em duas categorias com base no bem jurídico lesado:

O dano moral em sentido amplo, enquanto gênero que corresponde ao dano extrapatrimonial, é o prejuízo não econômico decorrente da lesão a bem extrapatrimonial juridicamente tutelado, abrangendo os bens objeto dos direitos da personalidade; e

O dano moral em sentido estrito, enquanto espécie de dano extrapatrimonial, é o prejuízo não econômico decorrente da lesão à integridade psicofísica da pessoa [10].

Espécies de dano identificadas no caso

Adicionalmente aos danos materiais indenizáveis mediante comprovação, os consumidores paulistas sofreram simultaneamente danos anímicos (ou morais em sentido estrito), em razão do seu abalo emocional e psicofísico, e danos existenciais (ou morais em sentido amplo), em decorrência do seu desvio produtivo. Explico:

Durante o longo período em que a população paulista foi submetida à falta de energia, de assistência e de rápida solução do problema por parte da Enel, os consumidores atingidos sofreram abalo emocional e psicofísico pelo fato de a concessionária ter-lhes imposto uma situação indesejada, danosa e prolongada, cuja consequência natural, conforme ordinariamente acontece, é a geração de sentimentos de grande frustração, impotência, indignação e revolta nos consumidores afetados. Logo se verifica, na hipótese, o dano anímico (ou moral em sentido estrito) pela lesão ao bem jurídico “integridade psicofísica”, o que naturalmente prescinde de prova do prejuízo (emocional e psicofísico) para sua reparação.

Concomitantemente, a população paulista foi privada de um serviço que é imprescindível para o regular desenvolvimento das suas atividades existenciais. Significa dizer que, durante o “apagão”, os consumidores atingidos não tiveram alternativa senão desviar-se da sua rotina ou dos seus planos, assim como precisaram gastar tempo excessivo — que é um bem finito, inacumulável e irrecuperável – para enfrentar o problema que lhes foi imposto em razão do despreparo e/ou da negligência da concessionária. Logo se verifica, nessa outra hipótese, o dano existencial (ou moral em sentido amplo) pela lesão ao bem jurídico “tempo vital” e a consequente perturbação das “atividades existenciais” dos consumidores afetados, resultando na alteração prejudicial e indesejada do seu cotidiano e/ou do seu projeto de vida, bem como na correspondente perda definitiva de uma parcela do seu tempo total de vida em situações previsíveis e evitáveis, o que naturalmente dispensa prova do prejuízo (existencial) para sua reparação.

Nas duas hipóteses acima, os danos extrapatrimoniais tiveram efeitos individuais e repercussão coletiva. Por conseguinte a sua reparação, idealmente, deve ser pleiteada em ação coletiva de consumo que, segundo entendimento do STJ no aresto abaixo, permite que a condenação em danos morais coletivos ocorra em quantia expressiva que confira efetividade às funções preventiva e punitiva da responsabilidade civil.

Análise do presente caso à luz do REsp 1.737.412/SE e conclusão

Em 5/2/2019, ao julgar o Recurso Especial 1.737.412/SE, a 3ª Turma do STJ, sob relatoria da ministra Nancy Andrighi, utilizou a Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor como ratio decidendi de caso análogo. Veja-se:

“[…]

  1. No dano moral coletivo, a função punitiva – sancionamento exemplar ao ofensor – é, aliada ao caráter preventivo – de inibição da reiteração da prática ilícita – e ao princípio da vedação do enriquecimento ilícito do agente, a fim de que o eventual proveito patrimonial obtido com a prática do ato irregular seja revertido em favor da sociedade.
  2. O dever de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho que é atribuído aos fornecedores de produtos e serviços pelo art. 4º, II, d, do CDC, tem um conteúdo coletivo implícito, uma função social, relacionada à otimização e ao máximo aproveitamento dos recursos produtivos disponíveis na sociedade, entre eles, o tempo.
  3. O desrespeito voluntário das garantias legais, com o nítido intuito de otimizar o lucro em prejuízo da qualidade do serviço, revela ofensa aos deveres anexos ao princípio boa-fé objetiva e configura lesão injusta e intolerável à função social da atividade produtiva e à proteção do tempo útil [sic] [11] do consumidor.
  4. Na hipótese concreta, a instituição financeira recorrida optou por não adequar seu serviço aos padrões de qualidade previstos em lei municipal e federal, impondo à sociedade o desperdício de tempo útil [sic] [12] e acarretando violação injusta e intolerável ao interesse social de máximo aproveitamento dos recursos produtivos, o que é suficiente para a configuração do dano moral coletivo.

[…]”

Confrontando-se o caso concreto com o acórdão destacado, constata-se que a Enel tem o dever de fornecer energia elétrica com continuidade, eficiência, adequação e segurança, adicionalmente ao seu dever de adotar medidas preventivas com vistas a eventos danosos futuros.

O desrespeito a tais deveres, com o aparente intuito de otimizar o lucro em detrimento da qualidade do serviço, revela grave ofensa aos deveres anexos decorrentes do princípio da boa-fé objetiva, bem como configura violação injusta e intolerável tanto da função social da atividade produtiva quanto da proteção do tempo e das correspondentes atividades existenciais dos consumidores. Afinal, a existência humana é indissociável do tempo.

Conclui-se que, ao não se preparar e não adequar seu serviço aos padrões previstos em lei, resolução e contrato, a Enel impôs a milhões de consumidores paulistas, de um lado, enormes transtornos, abalo emocional e psicofísico e, de outro, o desvio produtivo desses consumidores afetados representado pela violação injusta e intolerável do interesse social ao máximo aproveitamento do recurso “tempo” nas atividades existenciais e produtivas da sociedade.

Logo se mostram configurados os danos morais coletivos, cuja condenação deve atender tanto à função punitiva de sancionar exemplarmente a empresa lesante, quanto ao caráter preventivo de inibir a reiteração da sua conduta antijurídica e danosa.

 


[1] STJ, REsp 952.760/RS, j. 28-08-2007, rel. min. José Delgado.

[2] Cf. STJ, AgRg no AREsp 370.831/PE e REsp 1.197.654/MG.

[3] A metodologia de pesquisa utilizada foi efetuar, na página de “pesquisa de jurisprudência” do site de cada tribunal estadual, distrital, regional federal e do STJ, durante um único dia escolhido aleatoriamente (no caso, 01-09-2024), buscas pela expressão exata e inequívoca “desvio produtivo” na ementa e no inteiro teor das decisões colegiadas proferidas pelas turmas recursais, câmaras cíveis e turmas de direito privado.

[4] Estado de carência corresponde ao estado de desconforto ou de tensão gerado pela ativação de certa carência (necessidade, desejo ou expectativa). Tal estado impulsiona a pessoa a obter certo objeto ou a alcançar determinada meta e, geralmente, não permite demora.

[5] Veja NR acima.

[6] DESSAUNE, Marcos. Teoria ampliada do desvio produtivo do consumidor, do cidadão-usuário e do empregado. 3. ed. rev., modif. e ampl. Vitória: Edição do Autor, 2022. p. 363-364.

[7] AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 10. ed. rev. e modif. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 954.

[8] NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 584 e 590-592.

[9] NORONHA, 2013, p. 591.

[10] DESSAUNE, Marcos. A ampliação do conceito de dano moral e a superação da tese do ‘mero aborrecimento’. Consultor Jurídico, 2021. Disponível em: [/2021-nov-10/garantias-consumo-ampliacao-conceito-dano-moral-superacao-tese-mero-aborrecimento/]. o em: 22-10-2024.

[11] Qualificar o tempo de “útil” implica reconhecer que existe algum tempo “inútil”, o que não é concebível. Na Teoria do Desvio Produtivo, denomino esse valioso bem jurídico de “tempo vital ou existencial” para diferenciá-lo do “tempo cronológico”, que é fato jurídico em sentido estrito ordinário.

[12] Idem NR acima.

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