Educação jurídica e questões étnico-raciais no Brasil
2 de setembro de 2024, 19h36
Ao tratarmos de educação jurídica no Brasil, uma pergunta (retórica) necessita ser feita: por que os cursos de direito — ainda hoje — não tratam das questões étnico-raciais com a profundidade que o tema exige, especialmente, em um país cujas relações sociais estão estruturadas pelo racismo?

No âmbito internacional, a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial determina que haja a adoção de medidas imediatas e eficazes no campo do ensino, da educação, da cultura e da informação, para a luta contra os preconceitos que levem à discriminação racial.
A adoção de políticas para gerar igualdade de oportunidades para todas as pessoas e políticas de caráter educacional também é uma exigência da Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância. Por outro lado, conforme o nosso Estatuto da Igualdade Racial, é necessária a “modificação das estruturas institucionais do Estado para o adequado enfrentamento e a superação das desigualdades étnicas decorrentes do preconceito e da discriminação étnica” (artigo 4º, III). Também é importante salientar, em respeito às Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Direito, a existência da obrigação de ser promovido o ensino das políticas de educação das relações étnico-raciais, histórias e culturas afro-brasileira, africana e indígena, entre outras.
Apesar da existência de todas essas disposições legais, o que se vê é o ensino dos mais variados ramos do direito — quando muito — à tradição juspositivista, incapaz de estimular a sensibilidade crítica necessária à desconstrução das múltiplas dimensões do racismo[1], notadamente àquelas que afetam pobres (aporofobia)[2], negros (negrofobia), mulheres (machismo), estrangeiros (xenofobia) e membros da comunidade LGBTQIA+ (homotransfobia)[3].
Para tanto, classe, raça e gênero devem ser reconhecidos como vetores indispensáveis à compreensão jurídica das questões étnico-raciais no Brasil. Sem esses vetores é impossível reconhecer as dimensões essenciais do racismo: estrutural, institucional, interpessoal, científico, cultural, religioso e de gênero. Por exemplo: não há como compreender as questões mais candentes relacionadas ao modo de funcionamento do poder punitivo, já denunciadas pela criminologia radical, ou, a necropolítica de drogas e o terrorismo de Estado, sem uma leitura transdisciplinar vinculada aos elementos constitutivos do racismo estrutural e institucional no nosso País.
Luta contra injustiças sociais
A metodologia de ensino do direito deve complementar as abstrações e os idealismos jurídicos, mediante a adoção da crítica materialista e analética[4], permitindo uma percepção realística das relações de poder dentro da estrutura social brasileira. Permitir o embate franco entre aqueles que fazem uso do direito para a conservação da “ordem” e aqueles que o utilizam como instrumento estratégico de luta contra as injustiças sociais, notadamente, contra o racismo multidimensional, constitui um dos efeitos positivos da abertura às questões étnico-raciais. É uma exigência ética.
Trata-se de uma “quilombagem epistêmica” na educação jurídica antirracista. Como diria Clóvis Moura: é um movimento de rebeldia e emancipação que desgasta as estruturas do racismo em nosso país[5]. É o desenvolvimento de uma “consciência Negra” (com ‘N’ maiúscula): atividade de luta democrática contra a opressão; consciência política contra a asfixia — “I can’t breath”! (Garner e Floyd) — imposta por sociedades antinegras, antipolíticas e antidemocráticas[6]. É libertação!

Docentes e discentes podem — e devem — constituir núcleos de resistência antirracista, extrapolando os limites alienantes de um ensino jurídico adepto do legalismo rasteiro. Instituições como o Poder Judiciário, o Ministério Público e a OAB têm o dever de exigirem conhecimentos amplos e sólidos relacionados às questões étnico-raciais nas provas de o às carreiras jurídicas, como já vem sendo feito em alguns concursos das Defensorias Públicas.
A justiça racial não pode ser uma questão marginal na formação jurídica. Novos pressupostos epistemológicos são uma exigência ética no processo de formação jurídica antirracista[7], especialmente quando pululam na mídia notícias a respeito de apologia ao nazismo.
Para evitar a formação de novos “juristas malditos”, como aqueles que apoiaram o regime nazifascista ou as ditaduras militarescas da América Latina é necessário estimular não só o domínio analítico do direito, mas, especialmente, a sensibilidade crítica na direção da luta antirracista, rompendo o silêncio mortal da indiferença: “Vivo, sono partigiano. Perciò odio chi non parteggia, odio gli indifferenti” (Gramsci).
[1] SOUZA, Jessé. Como o Racismo criou o Brasil. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2021. p. 131-132: “se quisermos compreender o racismo em suas múltiplas variações, temos que compreender as diversas formas de redução dos seres humanos à sua dimensão mais básica e animalizada”.
[2] CORTINA, Adela. Aporofobia, a aversão ao pobre: um desafio para a democracia. Trad. Daniel Fabre. São Paulo: Contracorrente, 2020. p. 19: “A aporofobia, o desprezo pelo pobre, o rechaço a quem não pode entregar nada em troca, ou, ao menos, parece não poder”.
[3] STF, ADO n. 26, Pleno, Rel. Min. CELSO DE MELLO, j. 13/06/2019.
[4] O método analético (momento analético da dialética), é o último estágio do pensamento crítico da filosofia da alteridade, na busca pela superação da filosofia moderna (colonial-capitalista), abrindo-se à exterioridade do Outro (Levinas) e ao modo de pensar latinoamericano (libertador), historicamente negado pela totalidade eurocêntrica.
[5] MOURA, Clóvis. História do Negro Brasileiro. São Paulo: Dandara, 2023. p. 46.
[6] GORDON, Lewis Ricardo. Medo da Consciência Negra. Trad. José G. Couto. São Paulo: Todavia, 2023. 29.
[7] MOREIRA, Adilson José; ALMEIDA, Philippe Oliveira de; CORBO, Wallace. Manuel de Educação Jurídica Antirracista. São Paulo: Contracorrente, 2022. p. 61.
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