Mecanismo multilateral de repartição de benefícios para sequências genéticas digitais
2 de setembro de 2024, 6h32
Entre os dias 12 e 16 de agosto de 2024, ocorreu em Montreal (Canadá) a segunda reunião do Grupo de Trabalho sobre Repartição de Benefícios oriundos do uso de sequência genética digital (conhecida pelo termo em inglês Digital Sequence Information — DSI).

As negociações resultaram em um texto de recomendação de decisão a ser levado à Conferência das Partes (COP) da Convenção da Diversidade Biológica, em seu próximo encontro oficial, que será em Cali, Colômbia (COP-16). A proposta define opções a serem consideradas pelas partes para permitir a operacionalização de um mecanismo multilateral de repartição de benefícios para DSI. No entanto, antes de nos aprofundarmos nos pontos principais do documento, faz-se necessário explicar brevemente o tema e a sua importância para o meio ambiente e para a conservação da biodiversidade.
Por que o DSI é importante nas negociações da Convenção sobre Diversidade Biológica e do Protocolo de Nagoia?
Os recentes avanços nas áreas de biologia, ciência da computação e processamento de dados têm revolucionado as metodologias empregadas pelos cientistas no o aos recursos genéticos para suas pesquisas. Se no ado eram necessárias amostras físicas de plantas, animais e microrganismos, hoje em dia, devido aos novos métodos utilizados para sequenciar o DNA, a informação genética tem sido adquirida, depositada, compartilhada e utilizada nos processos de P&D em formato puramente digital. Por exemplo, atualmente para produzir novas variedades de sementes resistentes à seca ou enchentes, as empresas identificam e utilizam sequências genéticas de interesse para incorporar o gene na variedade local (seja por técnica de engenharia genética ou hibridização).
Esta nova realidade suscitou o debate sobre se DSI deveria ser considerada um recurso genético no âmbito do CDB e do Protocolo de Nagoya. O Protocolo de Nagoya é um acordo complementar da CDB e destina-se a promover a implementação do terceiro objetivo da CDB: a repartição justa e equitativa dos benefícios decorrentes da utilização de recursos genéticos.
O protocolo estabelece que os usuários de recursos genéticos devem obter o consentimento prévio informado dos países fornecedores ou povos indígenas e comunidades locais e negociar os termos para repartição dos benefícios decorrentes de sua utilização. Porém, devido à ampla utilização do DSI, os recursos genéticos estão sendo ados sem o consentimento prévio e negociação de termos para repartição de benefícios. Essa situação fez com que alguns autores chamassem essa prática de “biopirataria digital” [1].
Em 19 de dezembro de 2022, os membros da CBD provaram a Decisão 15/9, que definiu alguns pontos de consenso para um futuro mecanismo para regular o o e repartição de benefícios de DSI e estabeleceu um grupo de trabalho dedicado a propor opções para o mecanismo de repartição de benefícios para DSI. Sobre os sistema, os principais pontos mencionados foram:
- (a) o rastreamento (track and trace) de todas as sequências genéticas utilizadas no processo de P&D não possui viabilidade prática
- (b) um mecanismo multilateral seria mais viável
- (c) a solução deve priorizar o “open access” aos bancos de dados públicos, onde a maior parte das DSIs estão depositadas para não prejudicar o desenvolvimento científico.
Após duas reuniões do grupo de trabalho, foi apresentado um projeto de recomendação a ser levado à COP-16 sugerindo opções sobre:
- (a) modalidades de contribuições monetárias dos usuários do DSI ao fundo global (gatilhos para as contribuições);
- (b) a metodologia e os critérios para a atribuição de financiamento,
- (c) a governação do fundo
- (d) a revisão do sistema.
Principais pontos da recomendação que será levada para a COP-16
a-se a explicar dois pontos mais importantes do documento, quais sejam, as modalidades (triggers) de pagamento ao fundo e a metodologia e os critérios de alocação dos recursos do fundo.
Modalidades (triggers)
A recomendação menciona quatro possíveis modalidades (também conhecidas trigger points) para operacionalização do mecanismo multilateral. As partes devem escolher a melhor opção para assegurar a conservação da biodiversidade sem prejudicar a competitividade das empresas.
- (a) Opção A — comercialização
Nesta opção, os utilizadores da DSI deverão [2] contribuir para um fundo global no valor de [X] por cento dos [lucros] [receitas] [volume de negócios] (expressões entre colchetes estão pendentes de decisão pelas partes) gerados por produtos e potencialmente [serviços] colocados no mercado que se beneficiaram da utilização da DSI no seu desenvolvimento.
- (b) Opção B — baseada em setores dependentes de DSI
De acordo com esta opção, os usuários de DSI em setores que estão [altamente conectados] [direta ou indiretamente se beneficiam] do uso de DSI em suas atividades comerciais deverão contribuir para o fundo global com [X] por cento de seus [lucros] [receitas] [faturamento][vendas]. Uma lista de setores é mencionada no Anexo A.

Vale salientar que, embora o Anexo A esteja quase em sua totalidade entre colchetes, o que significa ausência de consenso entre as partes, é possível listar os seguintes setores como potenciais alvos da contribuição para o fundo global: (a) farmacêutico; (b) nutracêuticos; (c) melhoramento de plantas e animais/indústria de biotecnologia agrícola; (d) biotecnologia industrial; (e) fabricantes de equipamentos de laboratório e (f) serviços de informação, científicos e técnicos relacionados a DSI (software e IA).
Esta opção também prevê uma possibilidade de “opt-out” para as empresas incluídas no setor, mas que não são verdadeiramente dependentes de DSI.
- (a) Opção C — contribuição com base no valor de varejo dos produtos
Esta opção estabelece uma contribuição de 1% do valor de varejo de todos os produtos [e serviços] [que foram desenvolvidos e criados usando] [vinculados à utilização de] DSI. Esta proposta foi colocada na mesa pelo grupo de países africanos.
- (b) Opção D – contribuições voluntárias
Esta modalidade estabelece que os usuários que usam ativamente o DSI [são encorajados a] [irão] [deverão] contribuir com uma parte de sua [receita] [lucro] para o fundo global. É considerada uma opção mais branda, que tenta evitar pagamentos obrigatórios ao fundo, sendo proposta pelo Japão, com e da Coreia do Sul.
Alocação de fundos
O texto apresenta duas opções para a alocação de financiamento:
Opção A: O financiamento seria distribuído com base em projetos específicos, geridos por uma entidade internacional, e considerando as alocações indicativas para países, povos indígenas, comunidades locais, incluindo mulheres e jovens.
Opção B: O financiamento seria alocado diretamente aos países, usando uma fórmula que considera a riqueza da biodiversidade e o nível de desenvolvimento do país.
Outros pontos que estão na mesa de negociação são: a forma de reconhecimento e compensação do conhecimento tradicional associado aos recursos genéticos no formado de DSI dos povos indígenas e comunidades tradicionais e a possibilidade da inclusão de benefícios não monetários
Como essa decisão pode afetar o setor privado?
Embora a decisão seja um documento não vinculativo, temos exemplo de sistema multilateral também criado por resolução de caráter não vinculante e plenamente operacional: o Pandemic Influenza Preparedness (PIP) Framework, criado em 2011 no âmbito da Organização Mundial da Saúde. Esse exemplo serve como evidência de que o sistema multilateral de repartição de benefícios para DSI poderá tornar-se o sistema escolhido pelos países membros para lidar com repartição de benefícios oriundos do uso de DSI.
Para os países que já incluem o DSI no escopo de sua legislação de ABS (por exemplo, Brasil, Peru, Uganda, Namíbia, Quênia, Etiópia e Índia), o mecanismo multilateral poderá substituir o sistema bilateral. Para aqueles que não consideram DSI no escopo, pode haver uma implementação de um novo mecanismo para abranger o DSI em seus sistemas (por exemplo, Reino Unido e União Europeia).
De qualquer forma, é difícil informar que os negócios das empresas que utilizem DSI não serão afetados caso uma decisão seja tomada na COP-16, na Colômbia. Esse evento, que está programado para acontecer entre 21 de outubro e 1º de novembro agora, poderá ser um marco na implementação de um Mecanismo multilateral de repartição de benefícios de DSI.
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Referências
CBD/COP/DEC/15/9.Disponível em: https://www.cbd.int/doc/decisions/cop-15/cop-15-dec-09-en.pdf.
Draft recommendation: Further development of the multilateral mechanism for benefit-sharing from the use of digital sequence information on genetic resources, including a global fund. Disponível em: https://lnkd.in/eKA-VGTg.
FARIAS, Talden; MAIA, Bruna; LIMA, Paula Simões. O Protocolo de Nagoya, os benefícios oriundos dos recursos genéticos e a legislação brasileira. Revista Veredas do Direito, v. 19, p. 95-124.
LIMA, João Emmanuel Cordeiro. O Protocolo de Nagoia no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2024.
Molly R. Bond, Deborah Scott. Digital biopiracy and the (dis)assembling of the Nagoya Protocol, Geoforum, Volume 117, 2020, Pages 24-32, https://doi.org/10.1016/j.geoforum.2020.09.001.
[1] Molly R. Bond, Deborah Scott, Digital biopiracy and the (dis)assembling of the Nagoya Protocol, Geoforum, Volume 117, 2020, Pages 24-32, https://doi.org/10.1016/j.geoforum.2020.09.001.
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