O lugar do 3º setor nas faculdades de direito
2 de setembro de 2024, 18h29
O 3º setor é uma força que transforma vidas, influencia políticas de governo e contribui para a redução da desigualdade social e econômica. O Brasil possui quase 880 mil Organizações da Sociedade Civil (OSCs), que, juntas, geram 4,7 milhões de postos de trabalho, de acordo com o mapa das organizações da sociedade civil do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).

Números de um setor que desempenha papel crucial no desenvolvimento do país. Apesar da sua relevância crescente, este segmento ainda não recebe das faculdades de direito a atenção devida: faltam aos cursos jurídicos atividades teóricas e práticas relativas a essa temática, com o merecido enfoque autônomo e multidisciplinar.
Entender os desafios que compõem esse universo, dominar a legislação específica que rege as entidades e a sua relação com o Estado e conhecer os diferentes atores que movimentam essa complexa engrenagem são ferramentas fundamentais para os jovens estudantes de direito. As faculdades são a base da preparação destes futuros profissionais, capacitando-os a entender o regime jurídico das organizações da sociedade civil que impactam áreas como saúde, educação, assistência social, meio ambiente, cultura e direitos humanos.
Espaços onde essas entidades muitas vezes atuam em parceria com o governo para suprir lacunas essenciais. O regime jurídico privado, mas voltado ao interesse público, afeta a regulação das OSC, tornando este universo repleto de questões interessantes para a formação do profissional do direito.
Algumas instituições de ensino pelo país começam a voltar a atenção para este ramo jurídico. Em 2020, o Núcleo de Estudos Avançados do 3º Setor da PUC/SP e o ICNL (Internacional Center for Not-for-Profit Law) realizaram um seminário sobre “Liberdade de Associação na Universidade”. O estudo mapeou oportunidades e ações relevantes desenvolvidas na graduação, extensão e especialização em diferentes instituições, com destaque para as iniciativas de extensão universitária.
Em 2022, a Comissão de Direito do 3º Setor da OAB-SP lançou uma cartilha sobre o tema e realizou o seminário “Direito das Organizações da Sociedade Civil: o Papel das Universidades“, apresentando experiências de ensino, pesquisa e extensão. Entre as iniciativas, destacam-se além da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), que possui o Núcleo de Estudos Avançados do 3º Setor (Neats) que é interdisciplinar; a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), que tem disciplinas na graduação e mestrado em direito, além de projetos de extensão; a Fundação Getulio Vargas (FGV-SP), com uma linha de pesquisa jurídica aplicada que construiu uma série de estudos na área, e o Insper, que oferece em seu programa do direito conteúdos que abordam o terceiro setor, enfatizando a governança, as políticas públicas e as parcerias com a istração pública. Precisamos, no entanto, ir além.
Diante da complexidade e da importância do terceiro setor, é imprescindível que as faculdades de direito incluam em seus currículos cadeiras específicas sobre o tema. Os alunos precisam estar preparados para lidar com as particularidades jurídicas dessas entidades que vão desde as suas constituição e gestão até a captação de recursos, parcerias com entes públicos e privados, contratação de pessoas e prestação de contas, demandando conhecimentos do campo societário, civil, trabalhista, istrativo, tributário — só para citar alguns — sob a roupagem própria do setor não lucrativo.
Facilitando o trabalho das organizações
A formação especializada permite aos futuros operadores do direito compreenderem melhor as nuances jurídicas deste universo, facilitando o trabalho de organizações que dependem de assessoria qualificada para agirem sempre de maneira eficiente e dentro da legalidade. Essa especialização abre um leque de oportunidades profissionais para os estudantes que poderão operar em um campo em expansão e de grande impacto social. Além disso, oferece a chance de que trabalhem com propósito, algo cada vez mais valorizado pelos jovens que se engajam em causas sociais.
O crescimento e a importância do terceiro setor se refletem em uma crescente complexidade jurídica, impulsionando e demandando a criação de serviços jurídicos voltados especificamente para o atendimento do segmento. Alguns escritórios já nasceram especializados, atuando exclusivamente neste ramo. Enquanto isso, outros mais genéricos dão início a uma verticalização, criando equipes em seus quadros para o atendimento voltado para as OSCs.

A valorização desta área no País ganha reconhecimento inclusive internacional. A mais recente edição do guia britânico Chambers Awards, que promove um dos rankings jurídicos mais disputados do mundo, inaugurou na edição brasileira de 2024 uma seção específica voltada para o terceiro setor, nos mesmos moldes do que ocorre no Reino Unido. Este novo segmento do guia cobre escritórios e advogados focados no atendimento a organizações não governamentais, fundações e associações sem fins lucrativos, divididos em níveis que vão do Band 1 ao Band 3.
O terceiro setor no Brasil possui uma trajetória marcada por desafios e conquistas. Intensificado a partir de movimentos sociais e comunitários nas décadas de 1960 e 1970, o trabalho dessas entidades ou por um processo de profissionalização e expansão nos anos seguintes por conta da indução de sua regulamentação no Governo FHC, que criou a Lei das OS (organizações sociais) e das Oscip (organizações da sociedade civil de interesse público).
Outro salto importante foi dado no governo Dilma, com a agenda do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC), que estabeleceu um conjunto de normas para as parcerias entre governo e organizações da sociedade civil e que completa dez anos em 2024. Estamos agora às voltas com a reforma tributária, que também deve impactar significativamente o setor, especialmente com a novidade da desoneração das doações conquistada na Emenda Constitucional 132/2023.
É fundamental que o meio acadêmico volte sua atenção para o terceiro setor, apoiando de maneira diversa as OSCs. Além de gerar conhecimento, as instituições de ensino podem oferecer assessoria jurídica a organizações comunitárias, potencializando seu impacto social. Estruturar projetos de extensão, núcleos de práticas jurídicas, assistências judiciárias e escritórios modelos para atender entidades privadas sem fins lucrativos com menos recursos tem um impacto enorme na formação humanista dos estudantes e resulta em retorno social direto a quem mais necessita. A mobilização dos operadores do direito é fundamental para uma melhor compreensão e defesa do universo do terceiro setor.
São ações que mudam vidas, alteram carreiras e, acima de tudo, promovem um novo olhar. Um olhar mais sensível para compreender a sociedade civil e como sua atuação é importante para lidar com os desafios socioambientais de nossos tempos e com a própria manutenção da nossa democracia.
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