Opinião

Assessoria nas licitações: segregação de funções e ausência de ativismo consultivo

Autor

  • é visiting scholar pela Fordham University School of Law (New York) doutor em Direito pela UVA-RJ mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-RJ especialista em Direito do Estado pela Uerj membro do Instituto de Direito istrativo do Estado do Rio de Janeiro (Idaerj) professor titular de Direito istrativo do Ibmec professor do programa de pós-graduação stricto sensu em Direito — mestrado e doutorado do PPGD/UVA do mestrado acadêmico em Direito da Universidade Cândido Mendes de Direito istrativo da Emerj e do Curso Forum pdos cursos de pós-graduação da FGV e Cândido Mendes procurador do município do Rio de Janeiro sócio-fundador do escritório Rafael Oliveira Advogados Associados árbitro e consultor jurídico.

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24 de setembro de 2024, 9h15

A atuação da advocacia pública e dos demais órgãos de assessoria jurídica é fundamental para garantir, de forma preventiva, a juridicidade dos atos e dos contratos istrativos.

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A advocacia pública, destacada no texto constitucional como função essencial à Justiça (artigos 131 e 132 da Constituição), é responsável pela representação judicial e extrajudicial da istração Pública, no exercício das atividades contenciosas e consultivas, incluído o controle interno da juridicidade dos atos estatais, garantindo aos istrados uma gestão pública dentro dos parâmetros fixados no ordenamento jurídico. [1]

A singularidade da advocacia pública pode ser demonstrada a partir de três possibilidades e perspectivas: [2] a) atuação prévia: é a única carreira jurídica que atua previamente à configuração das políticas públicas; b) atuação sistêmica: tem a visão sistêmica dos limites e das possibilidades relacionadas às políticas públicas, o que permite opinar sobre correção de rumos, com o objetivo de evitar efeitos colaterais indesejados; e c) atuação proativa: a advocacia pública pode atuar proativamente na prevenção de litígios.

Novo capítulo

Com a promulgação da Lei 14.133/2021, o papel da assessoria jurídica nas licitações e contratações istrativas ganhou novo capítulo, com a ampliação, em termos literais, das atribuições previstas na legislação anterior para estipular a sua atuação na fase preparatória e na fase externa da licitação, bem como na etapa de execução contratual.

Aliás, a expressão “assessoria jurídica” não é definida no artigo 6º da Lei, mas revela sentido amplo que engloba a advocacia pública (AGU, PGE e PGM) e, também, outros assessores jurídicos (exemplos: advogados das empresas estatais; assessores jurídicos ocupantes de cargos comissionados em Municípios que não possuem procuradorias institucionalizadas; [3] assessores jurídicos que auxiliam os membros da advocacia pública).

Na legislação anterior, a assessoria jurídica da istração Pública possuía a função de examinar a aprovar as minutas de editais de licitação, dos contratos, acordos, convênios e instrumentos congêneres (artigo 38, parágrafo único, da Lei 8.666/1993).

Atualmente, a Lei 14.133/2021 destaca, em diversos momentos, dispositivos voltados à atuação da assessoria jurídica, destacando-se, por exemplo:

a) observância dos parâmetros indicados no artigo 7º da Lei 14.133/2021, com o intuito de garantir a gestão por competências, a moralidade e a efetividade do princípio da segregação de funções;

b) auxílio aos agentes públicos que desempenham funções ao longo da licitação e da execução do contrato istrativo (artigo 8º, § 3º, e 117, § 3º, da Lei 14.133/2021);

c) representação judicial ou extrajudicial dos agentes públicos (e ex-agentes) acusados da prática de atos praticados com estrita observância de orientação constante em parecer jurídico, salvo se houver provas da prática de atos ilícitos dolosos (artigo 10, caput e §§ 1º e 2º, da Lei 14.133/2021); [4]

d) controle prévio de juridicidade ao final da fase preparatória, incluídas as hipóteses de contratações diretas, acordos, termos de cooperação, convênios, ajustes, adesões a atas de registro de preços, outros instrumentos congêneres e de seus termos aditivos (artigo 53, caput e § 4º, da Lei 14.133/2021);

e) atuação como segunda linha de defesa, na forma do artigo 169, II, da Lei 14.133/2021;

f) manifestação jurídica na aplicação da declaração de inidoneidade e a desconsideração da personalidade jurídica da empresa (artigos 156, § 6º e 160 da Lei 14.133/2021), além da análise do cumprimento dos requisitos exigidos para reabilitação dos licitantes ou contratados e na aplicação da declaração de inidoneidade (artigo 163, V, da Lei 14.133/2021; e

g) auxílio à autoridade competente para dirimir dúvidas e subsidiá-la com as informações necessárias para o julgamento de recursos e de pedidos de reconsideração (artigo 168, parágrafo único, da Lei 14.133/2021).

Atribuições

É preciso destacar que o incremento textual das tarefas exercidas pela assessoria jurídica nas licitações e contratações públicas, que revela, de fato, tarefas que já seriam inseridas no âmbito das atribuições da advocacia pública, não altera o fato de que a assessoria jurídica deve exercer as suas funções com respeito às capacidades institucionais dos demais órgãos e agentes públicos, consubstanciada no princípio da segregação de funções.

Aliás, o princípio da segregação de funções (artigo 5º da Lei 14.133/2021) possui relevância na execução dos atos atinentes à contratação pública e na atuação dos órgãos de controle, influenciando, inclusive, na imputação de responsabilidade.

Mencione-se, por exemplo, a responsabilidade do gestor público por suas decisões, ainda que apoiadas em parecer jurídico, não sendo lícito responsabilizar o advogado público que emitiu o parecer por sua opinião técnica, salvo, de forma regressiva, na hipótese de dolo ou fraude (artigo 184 do C). [5]

Em consequência, a atuação da assessoria jurídica deve ficar restrita aos aspectos jurídicos das licitações e contratações públicas, não englobando, portanto, a análise das questões técnicas e políticas. [6]

De nossa parte, entendemos que não se insere nas atribuições do parecer jurídico, por exemplo:

a) a análise da correção técnica do conteúdo dos instrumentos elaborados na fase preparatória, tais como o Estudo Técnico Preliminar (ETP), Termo de Referência (TR), matriz de risco, classificação orçamentária, pesquisa de preços, por exemplo, uma vez que esses instrumentos possuem características técnicas que escapam das competências e da expertise do assessor jurídico, reservando-se o controle de legalidade aos aspectos formais [7] ;

b) a análise da veracidade dos atestados de exclusividade apresentados nas contratações por inexigibilidade ( Esse é o entendimento consagrado na Orientação Normativa 16/2009 da AGU, editada com fundamento na legislação anterior);

c) a atestação, na fase preparatória da licitação, de que o bem ou o serviço a ser contratado se insere na qualidade de “comum” para fins de utilização da modalidade pregão (mencione-se a Orientação Normativa 54/2014 da AGU, editada no contexto da legislação anterior); etc.

Com efeito, a atuação da assessoria jurídica deve ser pautada pela verificação da conformidade dos atos praticados com o ordenamento jurídico, sem a possibilidade de substituição das decisões tomadas pelo gestor público pela decisão do órgão de assessoria jurídica. Não se deve confundir a atuação da advocacia pública com a função do gestor público.

A decisão sobre a implementação de políticas públicas e o melhor caminho para satisfação dos direitos fundamentais é de competência exclusiva da autoridade competente, eleita ou nomeada, para o exercício das funções político-istrativas decisórias, não cabendo ao advogado público, inclusive por falta de legitimidade e de atribuição legal, compartilhar ou substituir a decisão do gestor.

Evita-se, com isso, o que denominamos de “ativismo consultivo” que englobaria a atuação invasiva no órgão de consultoria jurídica com a imposição da interpretação pessoal do parecerista em relação ao conteúdo da futura decisão istrativa no contexto em que o ordenamento jurídico apresenta, de fato, outras alternativas decisórias legítimas.

Com efeito, cabe à autoridade competente, eleita ou nomeada, para o exercício das funções político-istrativas, a decisão sobre a implementação de políticas públicas e o melhor caminho para satisfação dos direitos fundamentais não sendo possível a substituição da opção da autoridade por aquela apresentada pelo advogado público.

Não obstante seja recomendável que a assessoria jurídica não fique restrita à análise formal e iva do certame, devendo, na medida do possível, apontar para caminhos alternativos que se amoldam ao ordenamento jurídico, criando uma espécie de moldura jurídica, cabe, em última instância, ao gestor público a decisão sobre o melhor caminho a ser seguido dentro das fronteiras da referida moldura.

É possível dizer que o assessor jurídico é uma espécie de analista de riscos, cabendo-lhe apontar os riscos jurídicos das soluções apresentadas pelo gestor público. Não cabe à assessoria jurídica, portanto, tomar a decisão sobre o melhor caminho a ser seguido pelo gestor público, mas, sim, indicar os riscos jurídicos envolvidos nas alternativas apresentadas.

Ademais, a atuação da assessoria jurídica não deve ser fundamentada em valores jurídicos abstratos, sem que sejam consideradas as consequências jurídicas e práticas da decisão, bem como as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo (artigos 20, 21 e 22 da Lindb).

Revela-se fundamental, ainda, que o controle de legalidade exercido pela assessoria jurídica considere, ainda, as manifestações jurídicas apresentadas em casos semelhantes, com o objetivo de garantir coerência e segurança jurídica em suas manifestações, o que demonstra a importância das súmulas, orientações normativas e pareceres vinculantes editados pelo órgão jurídico (artigo 30 da Lindb). [8]

Verifica-se, portanto, a importância da assessoria jurídica na atuação preventiva para garantir a juridicidade do processo de licitação e do contrato que será celebrado pela istração Pública.

Em suma, a relevância da assessoria jurídica consagrada na Lei 14.133/2021 não acarreta a substituição do eixo decisório, com a indevida substituição da margem de conformação técnica e política do gestor público pela opção pessoal do assessor jurídico.

A efetividade das atribuições constitucionais e legais dos órgãos de assessoria jurídica depende, em grande medida, da adoção de medidas institucionais, com a garantia de independência de seus membros e constante capacitação.

Não obstante os avanços legislativos e o exercício da assessoria jurídica por membros de carreira concursados no âmbito da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios de grande porte, ainda é possível perceber o enorme desafio de implementação da Lei 14.133/2021 nos municípios de menor porte que não contam com a carreira da advocacia pública devidamente constituída, atribuindo-se essa importante tarefa para servidores comissionados que não possuem a necessária independência funcional para o exercício regular de suas competências.

É preciso, portanto, reconhecer as conquistas já alcançadas, mas permanecer vigilante na busca de efetividade das previsões da Lei de Licitações e Contratos istrativos na parte relacionada ao papel da assessoria jurídica.

 


[1] De acordo com Diogo de Figueiredo Moreira Neto: “Quanto às modalidades, a consultoria e a representação judicial são hoje apenas o núcleo de uma constelação de funções da advocacia de Estado. Para a realização da promoção e da defesa do interesse público, as modernas funções dos órgãos dela encarregados distribuem-se em três tipos de atividades: a orientação, a defesa e o controle jurídicos da atividade istrativa.” MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. A advocacia de Estado e as novas competências federativas. Revista de informação legislativa, v. 33, n. 129, p. 278, jan./mar. 1996.

[2] BINENBOJM, Gustavo. A advocacia pública e o Estado Democrático de Direito. Revista Brasileira de Direito Público, Belo Horizonte, v. 8, n. 31, out. 2010, p. 37-38. Marcos Juruena Villela Souto destaca a importância da advocacia pública fortalecida para efetividade da democracia e do Estado de Direito: “Em síntese, a ninguém – salvo a governos totalitários e/ou corruptos – pode interessar uma Advocacia Pública enfraquecida ou esvaziada. A democracia e o Estado de Direito só se fortalecem se houver sólidas e não fragmentadas instituições voltadas para o controle da legalidade, o que exige a garantia constitucional de um corpo permanente, profissionalizado, bem preparado, protegido e remunerado, sem riscos de interferências políticas indevidas no exercício de funções técnicas e despolitizadas”. SOUTO, Marcos Juruena Villela. O papel da advocacia pública no controle da legalidade da istração. Interesse Público, Belo Horizonte, v. 6, n. 28, nov. 2004, p. 62.

[3] Em nossa opinião, o exercício da assessoria jurídica por advogados, que ocupam cargos comissionados não é adequado, uma vez que o cargo comissionado, que é de livre nomeação e exoneração, retira a independência necessária para o exercício, especialmente, da atividade de controle interno da juridicidade dos atos praticados nas licitações e contratações públicas. Não obstante isso, o STF decidiu que “a instituição de Procuradorias municipais depende da escolha política autônoma de cada município, no exercício da prerrogativa de sua auto-organização” (STF, ADI 6331/PE, Rel. Min. Luiz Fux, Tribunal Pleno, DJe 25.04.2024). Posteriormente, o STF reiterou o posicionamento e destacou que, uma vez criada a Procuradoria Municipal, deve ser observada a unicidade institucional, com a exclusividade da Procuradoria para o exercício das funções de assessoramento e consultoria jurídica, bem assim de representação judicial e extrajudicial, ressalvadas as exceções consagradas pela Suprema Corte (STF, ADI 1.037/AP, Rel. Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, DJe 22.08.2024).

[4] De nossa parte sustentamos a inconstitucionalidade da literalidade do art. 10 da Lei 14.133/2021, em razão da violação (i) da autonomia legislativa dos Entes federados para fixação das normas de competência dos respectivos órgãos da Advocacia Pública (arts. 18 e 132 da CRFB) e (ii) da competência privativa do Chefe do Poder Executivo para iniciativa das leis que tratam do regime jurídico dos servidores públicos (art. 61, § 1.º, II, “c”, da CRFB). VALE, Luís Manoel Borges do; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. A inconstitucionalidade do art. 10 da Nova Lei de Licitações: a invasão de competência dos estados e municípios. Revista Síntese de Direito istrativo. Porto Alegre: Síntese, v. 17, n. 202, p. 63-78, out. 2022; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Licitações e contratos istrativos: teoria e prática. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024, p. 21-22; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Comentários à nova lei de licitações e contratos istrativos. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024, p. 39-43. Lembre-se que o STF declarou inconstitucional o § 20 do art. 17 da Lei 8.429/1992, incluído pela Lei 14.230/2021, que possui previsão semelhante (STF, ADI 7.042/DF e ADI 7.043/DF, Rel. Min. Alexandre de Moraes, j. 31.08.2022).

[5] OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Licitações e contratos istrativos: teoria e prática. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024, p. 18; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Comentários à nova lei de licitações e contratos istrativos. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2024, p. 130-133. Destaca-se que os agentes públicos, em geral, somente podem ser responsabilizados pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro, na forma do art. 28 da LINDB.

[6] Essa parece ser a opinião, também, de Marçal Justen Filho que, apoiado no princípio da segregação de funções, afirma: “Não incumbe ao órgão de assessoramento jurídico assumir a competência política e istrativa atribuída a agente público distinto. Inexiste autorização normativa para que o assessor jurídico se substitua ao agente público titular da competência prevista em lei”. JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações istrativas. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 643.

[7] De forma semelhante, Anderson Pedra e Ronny Charles sustentam: “Dito de outra forma, embora tenha o parecerista jurídico a incumbência de realizar controle prévio de legalidade e análise jurídica da contratação, não lhe cabe substituir a decisão do setor técnico (…). Também não é o parecerista jurídico responsável por analisar (“controlar”) a legalidade de um Estudo Técnico Preliminar, de um Termo de Referência, de uma Matriz de Risco, de uma Pesquisa de Preço ou outros instrumentos similares. Cada um desses artefatos ou instrumentos possui especificidades técnicas que lhe são inerentes e o parecerista jurídico não tem formação técnica para realizar essa análise.” PEDRA, Anderson Sant’Ana; TORRES, Ronny Charles Lopes de. O papel da assessoria jurídica na Nova Lei de Licitações e Contratos istrativos. In: BELÉM, Bruno e outros (Coord.). Temas controversos na nova Lei de Licitações. Salvador: JusPodivm, 2021, p. 293-332.

[8] Sobre a importância da relevância do papel da advocacia pública para coerência da atuação estatal, vide: OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Precedentes no Direito istrativo. São Paulo: Método, 2018, p. 161-166; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. O papel da advocacia pública no dever de coerência na istração Pública, REI – Revista Estudos Institucionais, v. 5, p. 382-400, 2019.

Autores

  • é visiting scholar pela Fordham University School of Law (EUA), pós-doutor pela Uerj, doutor em Direito pela UVA-RJ, mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-RJ, especialista em Direito do Estado pela Uerj, professor Titular de Direito istrativo do Ibmec, professor do programa de pós-graduação stricto sensu em Direito do PPGD/UVA, do mestrado acadêmico em Direito da Universidade Cândido Mendes, professor de Direito istrativo da Emerj, do curso Forum, dos cursos de pós-graduação da FGV e Cândido Mendes, ex-defensor público federal, procurador do município do Rio de Janeiro, sócio-fundador do escritório Rafael Oliveira Advogados Associados, árbitro e consultor jurídico.

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