Opinião

Necessidade de relativização da Súmula nº 438 do Superior Tribunal de Justiça

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  • é mestrando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco cofundador e diretor de ensino da Liga Acadêmica de Ciências Criminais da UFPE (UFPECrim) e assessor do Ministério Público Federal.

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24 de setembro de 2024, 6h31

É bastante comum, principalmente no âmbito da Justiça Federal, o cometimento de crimes por parte de estrangeiros aqui no Brasil. Geralmente são casos envolvendo delitos de falsa identidade, falsidade ideológica, uso de documento falso, moeda falsa, tráfico internacional de drogas, porte/posse de arma, entre outros. Por serem crimes não tão graves, ou não item a possibilidade de decretação da prisão preventiva ou, quando cabível, a custódia cautelar não perdura por muito tempo.

STJ

Devido a isso, seja antes ou depois da propositura da ação penal, por estarem respondendo ao processo em liberdade, muitos deles retornam ao seu país de origem, o que acaba por dificultar a sua posterior localização para fins de citação e intimação para comparecimento aos atos do processo.

Mesmo expedidas cartas precatórias, solicitadas informações às autoridades estrangeiras com base nos elementos disponíveis (como nome e número do documento de identidade), incluído eventual mandado de prisão na difusão vermelha (Interpol), requerido à Delegacia de Imigração da Polícia Federal dados de possíveis registros de entrada ou saída dos indivíduos no país, realizados pedidos de cooperação jurídica internacional em matéria penal etc., é frequente que não haja localização dessas pessoas.

Diante desse cenário, são citadas por edital, não comparecem em Juízo, nem constituem advogado, o que acarreta a suspensão do processo e do prazo prescricional, nos moldes do artigo 366 do Código de Processo Penal.

Prosseguimento da ação penal

Ocorre que isso redunda, muitas vezes, na inviabilidade no prosseguimento da ação penal, mesmo que ainda não consumada a prescrição punitiva estatal, considerando os indicativos de que esses réus não mais estão em território nacional, o tipo penal imputado e as circunstâncias do cometimento do crime (na maior parte sem violência ou grave ameaça).

O processo fica suspenso por anos, décadas, após diversas diligências empreendidas na tentativa de localizar essas pessoas, nos termos da Súmula n° 415 do Superior Tribunal de Justiça: “O período de suspensão do prazo prescricional é regulado pelo máximo da pena cominada”. [1]

Spacca

O Supremo Tribunal Federal, em sede de repercussão geral (Tema nº 438), caminhou na mesma linha do entendimento do STJ, assentando que a suspensão do prazo prescricional em caso de citação por edital deve ser limitada pelo prazo da prescrição abstrata do delito imputado, voltando a correr após o seu decurso, visto que não se pode aceitar hipótese de imprescritibilidade inexistente na Constituição.

No julgamento, foi fixada a seguinte tese: “Em caso de inatividade processual decorrente de citação por edital, ressalvados os crimes previstos na Constituição Federal como imprescritíveis, é constitucional limitar o período de suspensão do prazo prescricional ao tempo de prescrição da pena máxima em abstrato cominada ao crime, a despeito de o processo permanecer suspenso”.[2]

Processo suspenso

Como consequência: “Após o decurso do prazo referente ao tempo de prescrição da pena máxima em abstrato cominada ao crime, embora volte a correr o prazo prescricional, deve o processo penal continuar suspenso, se não localizado o réu”. [3] Nesse panorama, o acusado fica sendo procurado, sem êxito, por anos pelas autoridades brasileiras, de forma que o processo permanece suspenso, movimentando, durante todo esse tempo, a máquina judiciária de forma desnecessária e inútil.

Não se perde de vista a posição da jurisprudência que rechaça o reconhecimento da chamada prescrição “antecipada”, “projetada”, “virtual” ou “em perspectiva”, consolidada na Súmula nº 438 do STJ: “É inissível a extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva com fundamento em pena hipotética, independentemente da existência ou sorte do processo penal”. [4]

Todavia, no contexto dos casos aqui detalhados, é certa a extinção da pretensão punitiva pela prescrição, de maneira que a persistência na persecução penal afronta sobremaneira o princípio da eficiência da istração pública. Comentando a aludida prescrição virtual, Gustavo Junqueira pondera que:

[…] muitos entendem que se trata de falta de interesse de agir na espécie utilidade: qual a utilidade de buscar um provimento jurisdicional condenatório se a pena querida pelo titular da ação será declarada prescrita, sem qualquer efeito extraprocessual?

Assim, ainda que não haja previsão legal, a prescrição virtual pode ser declarada e trancada a ação penal, em razão da falta de interesse de agir, que é condição da ação. [5]

Denunciado sem localização

Assim, não é razoável dar prosseguimento a uma ação penal em que não há sequer a localização do denunciado, sendo que, pelo decurso temporal, a instrução ficará muito prejudicada. Acima de tudo, devem preponderar os princípios da eficiência e da finalidade pública dos órgãos envolvidos na persecução penal. Deve o Ministério Público, como instituição constitucionalmente incumbida de exercitar o jus persequendi, velar para que tal exercício se opere de modo racional.

Apesar do princípio da indisponibilidade da ação penal, a questão do interesse de agir deve ser analisada também sob a perspectiva da efetividade do processo — ou mesmo sob a ótica do princípio da eficiência (artigo 37 da CRFB), que deve ser observado não só pelo Poder Executivo, como também pelo Legislativo e Judiciário.

A efetividade ganhou corpo não só entre os teóricos do processo civil, mas também em relação ao processo penal, já que a lógica do sistema foi alterada em seu cerne, pois a visão rígida que prevalecia anteriormente não mais poderia conviver com institutos como a composição civil, transação penal, colaboração premiada etc.

Utilidade, adequação e necessidade

Com efeito, o interesse em agir, ou interesse processual, é uma condição da ação, que possui três dimensões: utilidade, adequação e necessidade.

A utilidade é o proveito processual para o autor, isto é, “deve poder conseguir posição jurídica mais favorável do que aquela existente ao início do processo”; a adequação “refere-se à verificação de adequação entre a situação narrada e a tutela pretendida”; e a necessidade é a “da ação para se obter a tutela pretendida”, ou seja, “é necessária a ação para que o autor obtenha seu intento">[6]

O interesse-utilidade, nas palavras de Nestor Távora e Rosmar Alencar, “só existe se houver esperança, mesmo que remota, da realização do jus puniendi estatal, com aplicação da sanção penal adequada. Se a punição não é mais possível, a ação a a ser absolutamente inútil”.[7] Com entendimento similar, Eugênio Pacelli pontua:

[…] sob perspectiva de sua efetividade, o processo deve mostrar-se, desde a sua instauração, apto a realizar os diversos escopos da jurisdição, isto é, revelar-se útil. Por isso, fala-se em interesse-utilidade.

[…] Com efeito, diante da constatação, feita nos próprios autos do procedimento de investigação (inquérito policial ou qualquer outra peça de informação), da impossibilidade fática de imposição, ao final do processo condenatório, de pena em grau superior ao mínimo legal, é possível, desde logo, concluir pela inviabilidade da ação penal a ser proposta, porque demonstrada, de plano, a inutilidade da atividade processual correspondente. E assim ocorre porque, em tais hipóteses, o prazo prescricional inicialmente considerado, isto é, pela pena em abstrato (art. 109, ), seria sensivelmente reduzido após a eventual sentença condenatória (com a pena concretizada). Semelhante operação seria possível antes mesmo do início da ação penal, à vista das condições pessoais do agente imputado ou das circunstâncias objetivas do fato, que impediriam, em sede de juízo prévio, a imposição de pena acima do mínimo previsto no tipo penal adequado ao fato apurado na investigação.

Por isso, entendemos perfeitamente possível o requerimento de arquivamento do inquérito ou peças de investigação por ausência de interesse — utilidade — de agir.[8]

Afronta ao direito constitucional

Sob outro viés, a manutenção do processo afronta o direito constitucional à razoável duração do processo (artigo 5º, LXXVIII, da CRFB). A própria função da pena revela-se esvaída, até porque o decurso do tempo conduz à recuperação e ao reajustamento social do agente e, por conseguinte, não há mais razão para o Estado desencadear a punição.

Em seu voto lançado nos autos do recurso extraordinário citado acima, o relator, ministro Edson Fachin, trouxe a lume uma agem de François Ost, que, em seu “Tempo do Direito”, ao citar Franz Kafka, afirma que um Estado e um tribunal que não esquecem nada se mostram arbitrários: [9]

Diante do longo transcurso de tempo, o indivíduo que será eventualmente punido é bastante diverso daquela que, em circunstâncias outras, teria praticado o crime. O longo tempo em que essa pessoa não foi localizada pelo poder Estatal, sem cometer novos delitos, está a indicar que a finalidade de readaptação social foi atingida. A par disso, não haverá mais relação entre causa e efeito, pois o significativo lapso entre a data do crime e a data da possível punição faz com que se perca a noção de proximidade e a própria ideia de prevenção geral. Igualmente, há um enfraquecimento das provas de apuração do crime, com significativo risco de injustiça e com graves prejuízos à ampla defesa, pois se estaria a demandar do indivíduo a produção de provas longos anos após o suposto crime. [10]

No mesmo tom, Aury Lopes Jr. salienta a problemática de manter o processo em trâmite por vários e vários anos, sem nenhuma utilidade prática, notadamente sob a ótica do direito penal e das funções que a pena deve — ou, pelo menos, deveria — cumprir:

Por fim, desde o Direito Penal, vem o questionamento: como justificar e legitimar uma pena aplicada muitos anos depois do fato? O núcleo do problema da (de)mora, como bem identificou o Tribunal Supremo da Espanha na STS 4519602, está em que, quando se julga além do prazo razoável, independentemente da causa da demora, se está julgando um homem completamente distinto daquele que praticou o delito, em toda complexa rede de relações familiares e sociais em que ele está inserido, e, por isso, a pena não cumpre suas funções de prevenção específica e retribuição (muito menos da falaciosa “ressocialização”). Para os que acreditam no caráter “ressocializador” da pena privativa de liberdade, como legitimá-la tantos anos depois do fato? Imaginamos a situação de alguém que, aos 20 anos de idade, comete um delito qualquer e, após o fato, muda de cidade. Constitui família, emprego, enfim, vira um “homem médio” (figura clássica da mitologia penal…) e, ados 30 anos, volta às origens e se descobre réu. Reabre-se o processo, a prova já foi colhida antecipadamente e sem a sua presença, e a sentença condenatória surge quase que naturalmente… Como legitimar uma pena de prisão, sob o argumento da ressocialização, num caso assim? Impossível.[11]

Extinção da punibilidade

Diante dessa realidade, é forçoso reconhecer a extinção da punibilidade nesses casos, com fulcro no princípio da eficiência na istração da Justiça, considerando a ausência de interesse de agir (utilidade) no prosseguimento do processo e a falta superveniente de justa causa para a continuidade da persecução penal.

Assim entendem vários magistrados ao redor do país, como divulgado nesta Conjur em diversas oportunidades, com decisões noticiadas de junho de 2018,[12] fevereiro de 2024 [13] e, mais recentemente, de agosto deste ano.[14]

Na mesma toada, foram localizadas algumas sentenças penais no âmbito da Justiça Federal em Pernambuco, proferidas pelos Juízos da 4ª e 13ª Varas da Seção Judiciária de Pernambuco, respectivamente:[15]

[…] O caso em tela merece apreciação que leve em consideração o binômio interesse-necessidade do Estado, na qualidade de detentor do poder de punir, para prosseguir com a ação.

Isso porque dos autos extraem-se que já são ados aproximadamente 24 (vinte e quatro) anos da suspensão do processo, sem que houvesse quaisquer notícias do paradeiro do acusado, apesar das diligências levadas a cabo para a sua localização.

[…] Não só. Numa eventual sentença condenatória em desfavor do acusado, a análise das circunstâncias judiciais que permeiam o delito narrado na exordial itiriam uma conclusão no sentido de que não subsistem motivos relevantes que extrapolem o próprio tipo legal aptos a justificarem o sopesamento da pena-base tão acima do mínimo legal. Desse modo, e ainda levando em conta uma provável prescrição, vem o MPF, titular do jus puniendi, requerer a extinção da punibilidade do acusado.

De qualquer forma, o caso dos autos mais se amolda ao desinteresse estatal de prosseguir na elucidação dos fatos típicos deste processo, haja vista os investimentos de recursos financeiros e de pessoal no impulsionamento de uma ação natimorta, especialmente pelo fato de já ter transcorrido mais de 20 anos sem localização do réu e com a probabilidade dele já ter falecido ao longo do processo, conforme notícia transcrita.

Nesse cenário, e diante de feitos análogos, o entendimento deste órgão julgador tem sido no sentido de tornar imperiosa, para o caso concreto, a extinção do processo sem julgamento do mérito, por falta de interesse de agir superveniente do Estado.

[…] Ante o exposto, DECLARO EXTINTO o processo sem julgamento do mérito, em relação ao acusado, ante a ausência superveniente do interesse de agir do Estado. [16]

[…] Compulsando os autos, verifico que a punição do fato delitivo antevisto teria sido fulminada pela prescrição, senão vejamos.

Prefacialmente, infere-se que o crime em exame foi praticado em momento anterior ao advento da alteração legislativa, portanto, aplica-se a legislação com a redação anterior à determinada pela Lei nº 12.234/10.

Destarte, diante do crime investigado e demais nuances correlatas ao mesmo – inclusive as circunstâncias judiciais descritas no art. 59 do -, possível antever desde já que a pena futuramente cominada no ato jurisdicional final, caso o mesmo ostentasse caráter condenatório, fatalmente restaria prescrita.

E assim arremato tendo em conta não apenas a pena hipoteticamente projetada, mas, sobretudo, o lapso temporal decorrido, que já é razoável […]

[…] Assim sendo, ante as ínfimas probabilidades de alteração dessa situação de vácuo da identificação ou da localização, possível vislumbrar que, desde já, carece o presente feito de um dos elementos essenciais à sua subsistência: o interesse de agir, especificamente consubstanciado no binômio interesse/utilidade da prestação jurisdicional, já que esta, ao final, restaria inócua, haja vista o advento futuro da prescrição, por todos os motivos já expostos.

Portanto, anuindo integralmente aos fundamentos elencados pelo Parquet, verifico que, no caso concreto, cabível mesmo é a extinção da punibilidade, com posterior arquivamento.

[…] Ante o exposto, com fulcro no art. 107, IV, c/c art. 109, II, e seguintes, todos do (com redação anterior à alteração legislativa mais gravosa), DECLARO EXTINTA A PUNIBILIDADE em relação ao acusado, quanto aos fatos narrados na exordial acusatória. [17]

 


[1] Terceira Seção, julgado em 9/12/2009, DJe de 16/12/2009.

[2] RE 600851, Relator(a): Edson Fachin, Tribunal Pleno, julgado em 07/12/2020, DJe 23/02/2021.

[3] HC 189022 AgR, Relator(a): Cármen Lúcia, Relator(a) p/ Acórdão: Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgado em 08/02/2021, publicado em 10/03/2021. No mesmo diapasão: RHC 115042, Relator(a): Marco Aurélio, Primeira Turma, julgado em 22/03/2021, publicado em 13/04/2021.

[4] Terceira Seção, julgado em 28/4/2010, DJe de 13/5/2010.

[5] JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz. Direito penal [livro eletrônico]. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, capítulo 18.

[6] DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de processo penal [livro eletrônico]. 8. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, RB 7.6.

[7] TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de direito processual penal. 12. ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 250.

[8] PACELLI, Eugênio. Curso de processo penal [livro eletrônico]. 25. ed. São Paulo: Atlas, 2021, p. 158-159.

[9] OST, François. O tempo do direito. Bauru: Edusc, 2005, p. 153.

[10] RE 600851, Relator(a): Edson Fachin, Tribunal Pleno, julgado em 07/12/2020, publicado em 23/02/2021, p. 26 do acórdão.

[11] LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal [livro eletrônico]. 18. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021, p. 338.

[12] ROVER, Tadeu. Juíza aplica prescrição virtual e determina trancamento de ação penal. Revista Consultor Jurídico, jun. 2018. Disponível em: /2018-jun-26/juiza-aplica-prescricao-virtual-determina-trancamento-acao-penal/. o em: 20 set. 2024.

[13] HIGÍDIO, José. Juiz extingue caso de tráfico privilegiado após aplicar prescrição virtual. Revista Consultor Jurídico, fev. 2024. Disponível em: /2024-fev-16/juiz-extingue-caso-de-trafico-privilegiado-apos-aplicar-prescricao-virtual/#:~:text=Entre%20as%20modalidades%20de%20prescri%C3%A7%C3%A3o,a%C3%A7%C3%B5es%20penais%20fadadas%20ao%20insucesso. o em: 20 set. 2024.

[14] HIGÍDIO, José. Juíza afasta súmula do STJ e reconhece prescrição antecipada. Revista Consultor Jurídico, ago. 2024. Disponível em: /2024-ago-28/juiza-afasta-sumula-do-stj-e-reconhece-prescricao-antecipada/. o em: 20 set. 2024.

[15] Apesar de os processos serem íveis por meio da consulta pública, suprimiu-se o nome dos réus, substituindo-os pelo termo “acusado”.

[16] Sentença prolatada nos autos da Ação Penal nº 0008079-55.1999.4.05.8300.

[17] Sentenças prolatadas nos autos da Ação Penal nº 0010248-29.2010.4.05.8300 e da Ação Penal nº 0012757-93.2011.4.05.8300.

Autores

  • é mestrando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, cofundador e diretor de ensino da Liga Acadêmica de Ciências Criminais da UFPE (UFPECrim), assessor do Ministério Público Federal e bacharel em Direito pela UFPE.

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