Fábrica de Leis

O que torna o processo legislativo mais atrativo e democrático?

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  • é professora adjunta na Universidade de Brasília (UnB) advogada do Senado Federal doutora em Direito pela Universidade de Alicante (Espanha) doutora e mestre em Direito pela UnB e professora do Curso de Especialização Bases para una Legislación Racional na Universidade de Girona (Espanha).

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24 de setembro de 2024, 8h00

A coluna de hoje retoma um gancho deixado pela coluna ada, quando se comentou sobre o problema da ideia de abuso de poder regulatório, notadamente no contexto da decisão tomada na ADPF nº 1.141, cuja premissa parece ter partido de uma visão já relativamente ultraada sobre a ideia do princípio da legalidade, ignorando que este sofreu uma mutação.

Um leitor, então, defendeu a superioridade (prioridade) da lei para tratar de certos temas, em razão da sua origem (a partir de um órgão democraticamente eleito) e pela sua legitimidade decorrente dos procedimentos.

Em resposta, o texto de hoje tece um comentário sobre essas questões e traz alguns ingredientes para a reflexão sobre a maior atratividade do processo legislativo, bem como a respeito do seu caráter democrático, e se essas características distintivas justificariam a primazia da legislação em detrimento de outras fontes. Daí o leitor poderá julgar se ainda é o caso de defender uma maior preferência do processo de elaboração das leis pelos Legislativos.

Um dos dogmas fundamentais do Estado de direito é a ideia de supremacia da lei (leia-se, ideia de que a lei seria a fonte jurídica suprema, e as demais normas seriam fontes a ela subordinadas, subsistindo tão-somente nos espaços assignados pela própria lei).

Ocorre que essa visão, de certa forma, tornou-se obsoleta, na linha do que se argumentava no texto ado, pois ignora as transformações por que os processos legislativos (lato sensu) aram em nossos tempos, com um deslocamento do centro de gravidade do ordenamento jurídico, que ou a girar ao redor da Constituição.

Essas mudanças, naturalmente, têm impactos na teoria das fontes do direito, que conforma o núcleo de qualquer concepção do direito, já que — como bem recorda Josep Aguiló Regla — à teoria das fontes estão vinculados o problema de como identificar o direito (distinguir o direito o não-direito) e a explicação da unidade do direito (a ficção pela qual mesmo em um ordenamento jurídico complexo, cujas normas não estão todas no mesmo plano, existe, não um mero amontoado de normas, mas um conjunto unitário).

Estado constitucional

O advento do Estado constitucional acarretou diversas mudanças no tratamento das fontes do direito, notadamente:

1) o deslocamento da primazia da lei à primazia da Constituição;
2) o deslocamento da reserva de lei à reserva de Constituição; e
3) o deslocamento do controle jurisdicional da legalidade ao controle jurisdicional da constitucionalidade. [1]

Outra transformação significativa tem a ver com o reconhecimento do caráter criativo do direito por parte das decisões judiciais, cuja natureza deixa de ser a de uma mera fonte secundária ou subsidiária (porquanto limitada à aplicação do direito), para se tornar verdadeiro direito jurisprudencial, ao lado do direito legislado.

Na ótica de Manuel Atienza, o contexto do Estado constitucional fomentou o surgimento de um papel mais ativo por parte dos juízes: o juiz não pode ser um mero aplicador de regras, tem um papel ativo na concretização dos direitos fundamentais e na busca por soluções justas, dentro dos limites do sistema jurídico, sem necessariamente por isso incorrer em ativismo judicial. Não se trata tanto de uma defesa desse tipo de postura; a afirmação pode ser lida sobretudo como uma constatação da realidade.

Spacca

O assunto mereceria muitas mais linhas, mas essas são o bastante para dar as amostras no sentido de que atualmente há uma maior pluralidade de instâncias que influem na produção do direito, competindo com o próprio processo legislativo dos órgãos legislativos. Trata-se de um fato.

Atratividade do processo legislativo

No que interessa à coluna de hoje, constatado que a reserva de lei deixou de ser uma garantia para regular o status jurídico de diversas questões básicas, nem mesmo é mais uma realidade em relação a uma miríade de matérias — dada a produção de normas e regulamentos por diversos órgãos istrativos, incluindo as agências reguladoras, e pelo Poder Judiciário —, a questão é saber o que tornaria o processo legislativo (leia-se, a elaboração de leis no seio do Poder Legislativo) o modo mais atrativo de criação do direito em comparação com a criação do direito pelos demais órgãos.

A resposta, desde logo, não é somente a democracia, já que ainda existem pelo mundo órgãos legislativos sem credenciais democráticas (como é o caso da House of Lords britânica e Senado canadense, por exemplo).

Há diversos caminhos possíveis para refletir sobre a possível maior atratividade da legislação. Um dos mais promissores é apresentado por Jeremy Waldron, que aponta quatro argumentos em defesa da maior legitimidade das legislaturas:

1) o fato de que o Legislativo é uma instituição publicamente dedicada a criar e alterar leis;
2) o valor intrínseco relacionado à grande quantidade de membros em uma legislatura;
3) em consequência do anterior, a maior capacidade para representar diversas perspectivas e interesses do povo de forma mais eficiente do que na democracia direta (e a importância disso); e
4) tal representatividade permite um sistema de deliberação política para a tomada de decisões de forma mais segura. Convém olhar esses argumentos um a um.

Tribunais não são casas legislativas originalmente

Em primeiro lugar, quanto à dedicação transparente à elaboração de leis, trata-se de constatar que, por mais que diversas mudanças legais ocorram via tribunais, esses órgãos não nasceram para funcionar como instituições legisladoras, nem são apresentados dessa forma no discurso constitucional oficial.

Nas palavras de Waldron:

Os tribunais não são criados de forma a tornar legítima a criação de leis. Eles não recebem publicamente as estruturas, os recursos e o pessoal para auxiliar em seu papel de legislador. Eles não seguem os procedimentos de criação de leis: embora seus procedimentos sejam elaborados, eles são dedicados a tarefas bem diferentes”. [2]

Juízes não são legisladores; não são avaliados para essa função no momento de sua indicação; não fazem campanha da mesma forma que os candidatos ao legislativo; enfim, não anunciam para os seus eleitores quais leis gostariam de fazer ou mudar quando estiverem no cargo.

Sob esse aspecto, qualquer criação de direito pelo Poder Judiciário é uma forma meramente oblíqua de legislar. É nesse sentido que, para Waldron, a primeira virtude dos órgãos legislativos está nessa transparência sobre qual é a sua função. Inclusive, para ele, a própria ideia de legislação incorpora o compromisso com a criação explícita das leis, no sentido de que o processo de fazer ou mudar as leis é sempre um processo publicamente dedicado a essa tarefa.

Sob esse aspecto, não restam dúvidas de que a produção de normas fora do Poder Legislativo tem seus problemas, sobretudo em relação a como os cidadãos vão exercer seus poderes participativos, já que as outras instituições são menos abertas às razões de quaisquer pessoas, que sequer podem se manifestar, ser recebidas ou sabem para onde encaminhar suas opiniões e argumentos.

De tão opaco, Hugh Heclo chega a se referir ao processo no âmbito das agências reguladoras como um governo de estranhos.

Elaboração de leis em grande assembleia

Em segundo lugar, voltando para Waldron, a vantagem da legislação advém de que as Casas Legislativas compreendem centenas (em alguns casos, milhares) de indivíduos. De acordo com ele, isso — que para alguma vertente da literatura poderia parecer disfuncional — na verdade é uma espécie de instinto constitucional no sentido de que, em uma sociedade, a elaboração ou reforma de leis, além de explícita, deve ser feita em (ou sob a autoridade de) uma grande assembleia composta por centenas de indivíduos.

A lógica é, não a do “teorema de Condorcet” — pelo qual um número maior de pessoas votando uma proposta faz com que as chances de uma maioria chegar à resposta certa por meio de votação aumentem, em vez de um número menor de pessoas, quando todos os membros de um grupo são razoavelmente competentes —, mas sim a da diversidade: pessoas diferentes trazem perspectivas diferentes para as questões em discussão.

Recorrendo às palavras do próprio Waldron outra vez: “(…) quanto mais pessoas houver, maior será a riqueza e a diversidade de pontos de vista. Quando as diversas perspectivas são reunidas em um processo coletivo de tomada de decisão, esse processo será informado por recursos informativos muito maiores do que aqueles que acompanham a tomada de decisão de um único indivíduo”. [3]

A diversidade a que se refere Waldron é tanto de opinião, quanto de conhecimento e de experiência, o que também se relaciona à própria representação geográfica (ainda mais importante em países com dimensões continentais como o Brasil). Daí o valor da presença de uma grande quantidade de pessoas no processo legislativo como ocorre no parlamento. Sem isso, e aqui já sou eu comentando, corre-se o risco de ter mera ditadura da minoria.

Representatividade

Em terceiro lugar, Waldron aponta precisamente a representatividade como característica distintiva e atraente das legislaturas em comparação aos demais centros de criação do direito. O autor usa como ponto de contraste a democracia direta e remete expressamente às ideias de Nadia Urbinati.

Muito resumidamente, o argumento é o de que a representação permite o que chama de abstração de conteúdo e abstração do agente. Esses dois tipos de abstração fazem com que sejam produzidas leis gerais e abstratas, em lugar de diretrizes locais ou específicas para determinadas pessoas ou situações.

Assim, a representação ajuda a despersonalizar reivindicações e opiniões, o que, por seu turno, facilita a deliberação política, operando como um simplificador de interesses e um assimilador de assuntos, com o que se a para o último argumento.

Em quarto lugar, de acordo com a construção de Waldron, a característica anterior (da representatividade) promove deliberação genuína na política. Isso porque a representação cria uma distância entre os momentos de discurso e decisão e, nesse sentido, permite um exame crítico, ao mesmo tempo em que protege os cidadãos do assédio de palavras e paixões que a política gera.

O argumento aqui é sofisticado e faz uma diferença entre a política baseada em respeitar pessoas como portadoras de vontade e a política baseada em respeitá-las como capazes de julgamento político. Essa segunda noção é a que importa.

Então, novamente bebendo no pensamento de Urbinati, Waldron explica que as estruturas de representação típicas do Poder Legislativo fornecem processos para a formação de julgamentos por parte do povo e para o engajamento deliberativo de julgamentos tanto entre as pessoas quanto entre seus representantes. Na explicação do próprio Waldron:

A capacidade de julgamento do povo está em jogo quando buscamos um modo democrático de legislar e, se quisermos respeitar essa capacidade, devemos respeitar as formas, as estruturas e os processos que podem abrigá-la e enquadrá-la”. [4]

A ideia é a de que a política partidária representativa consiste em uma cadeia de processos de formação de opinião, reflexão, revisão e emenda, que somente podem existir em órgãos eleitos e sujeitos a responsabilização (able bodies).

Processo democrático

O recurso às ideias de Waldron foi necessário para a minha resposta ao comentário do leitor com que se abri a coluna: da maior atratividade do processo legislativo nas Casas Legislativas (comparado ao de outras instituições) não resulta que o restante das normas do ordenamento não seja direito.

De um lado, nossos ordenamentos jurídicos atuais precisam conviver com a multiplicação de intervenções normativas do Estado, que se proliferam sobretudo a partir do Poder Executivo, mas também em grau não desprezível são produzidas pelo próprio Poder Judiciário. Essa é uma realidade e uma questão relacionada à teoria das fontes do direito.

Por outro lado, essas transformações de fato não servem para esvaziar o eterno (e sempre atual) debate sobre qual(is) é(são) a(s) melhor(es) instituição(ões) para a produção do direito. São questões diferentes.

As legislaturas podem ter inúmeros defeitos não abordados por Waldron, mas parece impossível negar as virtudes institucionais do Poder Legislativo para tratar de uma miríade de temas. Mas já não se pode criar a expectativa de que os legisladores tenham condições de cuidar de tudo.

Sem prejuízo disso — e para que não se fique apenas com o argumento de autoridade de Waldron —, convém registrar um certo consenso que existe internacionalmente a respeito da ideia de processo legislativo democrático.

Nesse sentido, por exemplo, são as Guidelines on Democratic Lawmaking for Better Laws da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE).

De acordo com essas diretrizes, a tomada de decisões democráticas pressupõe que a maior parte das normas de um ordenamento seja produzida a partir de um processo de prévio debate aprofundado levado a cabo por órgãos democraticamente eleitos (ou designados para mandatos) que aderem ao princípio da separação de poderes e de checks and balances; esse processo deve ser necessariamente aberto, transparente, ível, não discriminatório, sensível às questões de gênero, inclusivo, representativo, participativo e sensível às necessidades dos diversos grupos da sociedade.

Tudo isso, desnecessário dizer, continuará sendo associado ao processo conduzido no âmbito do Poder Legislativo, não de outras instituições.

Como dizia Kelsen:

(…) todo o procedimento parlamentar, com sua técnica dialético-contraditória, baseada em discursos e réplicas, em argumentos e contra-argumentos, tende a chegar a um compromisso. Este é o verdadeiro significado do princípio de maioria na democracia real.” [5]

 


[1] PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. El desbordamento de las fuentes del Derecho. Madrid: La Ley, 2011, p. 75.

[2] No original: “Courts are not set up in a way that is calculated to make lawmaking legitimate. They are not publicly provided with the structures, resources, and personnel to assist in their lawmaking role. They do not follow lawmaking procedures: though their procedures are elaborate they are dedicated to quite different tasks. (WALDRON, Jeremy. Representative lawmaking. Boston University Law Review, v. 89, p. 335-355, 2009, p. 336).

[3] No original: “Different people bring different perspectives to bear on the issues under discussion and the more people there are the greater the richness and diversity of viewpoints are going to be. When the diverse perspectives are brought together in a collective decision-making process, that process will be informed by much greater informational resources than those that attend the decision-making of any single individual.” (WALDRON, Jeremy. Representative lawmaking. Boston University Law Review, v. 89, p. 335-355, 2009, p. 343).

[4] No original: “The people’s capacity for judgment is at stake when we look for a democratic mode of lawmaking, and if we are to respect that capacity, we must respect the forms, structures and processes that can house and frame it.” (WALDRON, Jeremy. Representative lawmaking. Boston University Law Review, v. 89, p. 335-355, 2009, p. 353).

[5] KELSEN, Hans. A democracia. São Paulo: Martins Fontes, 2019, p. 70.

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