Direito da Insolvência

Princípio da unidade dos crimes de insolvência: inaplicável após Lei 11.101

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1 de abril de 2025, 10h17

O objetivo do texto é discorrer sobre a não aplicação do princípio da unicidade dos crimes falimentares aos crimes de insolvência, após a Lei nº 11.101/2005, que ou a regular as falências e recuperações de empresas, revogando o Decreto-Lei nº 7.661/45.

Princípio da unidade dos crimes falimentares tinha expressa previsão legal

Quando as falências e concordatas eram reguladas pelo antigo Decreto-Lei nº 7.661/45, o princípio da unicidade, unidade ou unitariedade dos crimes falimentares era expressamente [1] previsto a fim de que, se houvesse pluralidade de crimes previstos no diploma falimentar, se aplicasse a regra do concurso formal, considerando-se todas as condutas crime único, com a pena aumentada de 1/6 até metade. Isso evidentemente beneficiava os autores de crimes falimentares, que respondiam por crime único, mesmo que tivessem praticado diversas condutas delitivas.

Tratava-se de medida de política criminal adotada naquela época, em que se entendia que a condição objetiva de punibilidade, consistente na decretação da falência, tornava o crime falimentar delito único. Esse princípio da unicidade dos crimes falimentares, porém, não foi reafirmado no novo ordenamento que se seguiu ao Decreto-Lei 7.661 de 1945, a Lei nº 11.101/2005, que ou a tratar das falências e recuperação de empresas. Da mesma forma, a nova LREF não adotou o sistema de prazo prescricional único de dois anos [2] para os crimes falimentares, que vigia no Decreto-Lei n.  7.661/45.

Apesar disso, com o devido respeito, há julgados recentes do Tribunal de Justiça de São Paulo em que o princípio da unicidade dos crimes falimentares tem sido ainda aplicado [3].

Doutrina contemporânea afasta a aplicação do princípio

A doutrina sustenta de forma unânime a não aplicação do princípio da unicidade dos crimes falimentares aos crimes de insolvência, na vigência da Lei nº 11.101/2005.

Nesse sentido, Alexandre Demetrius Pereira preleciona:

“Na vigência da lei anterior era pacífico na doutrina e na jurisprudência que o crime falimentar deveria ser único, ou seja, ocorrido mais de um delito falimentar, somente se puniria aquele dotado de pena mais grave, restando impuníveis os delitos menores.
A principal justificativa doutrinária para a unidade ou unicidade dos crimes falimentares era a de que a decisão que decreta a falência (hoje também concessiva de recuperação judicial e homologatória do plano de recuperação extrajudicial), agindo como condição de punibilidade do delito falimentar, de forma uma, converte em unidade jurídica os atos praticados pelo devedor ou equiparado”
(…)
“Ainda que se ita a unidade ou unicidade como princípio inerente aos crimes falimentares – posição com a qual não concordamos -, é de se ressaltar que esta não se aplica quando haja concurso de crime falimentar e crime comum, mas unicamente quando exista pluralidade de crimes falimentares (…) Na vigência Lei 11.101/2005, não há determinação expressa no sentido da espécie de concurso de crimes cabível em cada caso concreto. Assim, entendemos que a matéria restará regulada em sua totalidade pelo Código Penal (arts. 69-71), de aplicação subsidiária à legislação falimentar em matéria criminal” (Crimes Falimentares. São Paulo: Malheiros Editores, 2010, p. 123-129).

Na mesma direção, a lição de Marcelo Barbosa Sacramone:

“À míngua de qualquer previsão na LREF, aplicável supletivamente à disciplina geral do Código Penal que institui a regulação do concurso de crimes. Independentemente se o concurso de crimes envolve crimes comuns e falimentares, aos quais o Decreto-Lei n. 7.661/45 determinava a aplicação do concurso formal (art. 192 do Dec. -Lei n.  7.661/45) a falta de previsão específica acarreta que tanto o concurso entre tipos criminais falimentares entre si, como o concurso entre tipos penais falimentares e comuns impõem a aplicação da disciplina geral do Código Penal e, portanto, a possibilidade de concurso material ou formal conforme o caso.
Ademais, essa interpretação quanto ao fim do princípio da unicidade dos crimes falimentares condiz com a orientação do relator do Projeto de Lei que se converteu na Lei n. 11.101/2005 e que informa todos os tipos penais falimentares. Nos termos do PLC n. 71/2003, o Senador Ramez Tebet esclareceu que um dos princípios norteadores da lei seria o rigor na punição de crimes relacionados à falência e à recuperação judicial (…)” (Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2023, p.  648).

Spacca

No mesmo sentido, a lição do professor Manoel Justino Bezerra Filho, que em seus comentários aos crimes falimentares faz expressa menção à aplicação subsidiária das normas gerais do Código Penal, relativas ao concurso de pessoas e ao concurso de crimes (artigos 29, 69, 70 e 71) (Lei de Recuperação de Empresas e Falência. 15ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, p.  587-596).

Renee do Ó Souza, ao invocar estudo de Hélvio Simões Vidal, no sentido de que deve ser revista a antiga concepção de unidade dos crimes falimentares, sustenta o afastamento do princípio da unicidade aos crimes falimentares:

A lição condensa o melhor entendimento sobre o assunto. Realmente a Lei 11.101/2005 não aborda diretamente mais o assunto de modo que deve ser afastado o princípio da unicidade do crime falimentar, que antes beneficiava o autor desses crimes. Ao determinar a aplicação das normas do Código Penal, especialmente as relativas ao concurso de crimes (arts. 69 a 71), a nova legislação elimina o privilégio da unitariedade. Além disso, a Lei de Recuperação de Empresas (LRE) introduziu crimes durante o processo de recuperação judicial, algo inexistente no antigo regime das concordatas, reforçando a superação do conceito de unicidade no sistema falimentar” (Leis Penais Especiais Comentadas. 8ª ed. São Paulo: Editora Jus Podivm, 2025, p. 1685). 

Também sustenta o fim da unicidade dos crimes falimentares Arthur Migliari Júnior:

“…pelo texto da Lei de Recuperação de Empresas
(LRE) tal forma de pensar caiu em total desuso e descrédito” (Crimes de Recuperação de Empresas e de Falências. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 106).

Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça

O Superior Tribunal de Justiça itiu em vários julgamentos a aplicação do princípio da unicidade dos crimes falimentares, na vigência da Lei n. 11.101/2005 [4], considerando especialmente as figuras típicas presentes no caso concreto e a circunstância de o concurso de crimes se verificar ou não entre as mesmas figuras típicas [5].

Porém, uma mudança de rumo, em direção à doutrina dominante, é vista em decisões mais recentes, que têm expressamente afastado a aplicação do princípio da unicidade aos crimes de insolvência para efeito de aplicação da suspensão condicional do processo.

Vale observar, nesse sentido, que quando ainda era recente a vigência da Lei nº 11.101/2005, houve precedente do Superior Tribunal de Justiça que, em 2006, já afastou [6] a aplicação do princípio da unicidade dos crimes falimentares em hipótese de concurso entre crimes falimentares e o crime de quadrilha, previsto no Código Penal.

Nesse sentido, decisão monocrática proferida pelo ministro Ribeiro Dantas, no AREsp nº  2.587.302, publicado no DJe de 18 de novembro de 2024, que afirmou expressamente:

Com o advento da Lei nº 11.101/05 não subsistem os argumentos jurídicos que, em tese, sustentavam a aplicação do princípio da unicidade aos crimes falimentares, que vicejava praticamente como unanimidade na doutrina formada com base no DL n. 7.661/45, a revogada Lei de Falências” (g.n.).

O mesmo Ministro Ribeiro Dantas, no Recurso em Habeas Corpus nº 174.790-RS, publicado no DJe de 22 de maio de 2023, manteve decisão do Tribunal de origem, que afastou a aplicação do princípio da unicidade dos crimes falimentares ao caso concreto, em que houve concurso de crimes dos arts. 168 e 171 da LREF.

Nesse julgamento, o ministro Ribeiro Dantas apontou com precisão os limites da decisão proferida pelo C. STJ, no julgamento do Recurso Especial nº 1.617.129/RS, em que se itiu a aplicação do princípio da unicidade dos crimes falimentares somente em relação à figura do artigo 168 da LREF, mas se manteve o concurso material reconhecido na origem entre aquele delito e a infração do artigo 171, da LREF:

“… finalmente, não se perca de vista que o Colendo Superior Tribunal de Justiça ao reconhecer a unicidade dos crimes falimentares no Recurso Especial nº 1.617.129 – RS, o fez apenas para os atos configuradores do delito do art. 168, mantendo o concurso material deste com a infração capitulada no art. 171, ambos da Lei nº 11.101/05, exatamente como julgo apropriado no caso dos autos…” (g.n.).

Disso se extrai que, se por um lado, o STJ itiu em alguns julgados a aplicação do princípio da unicidade aos crimes falimentares, para efeito de readequação de penas fixadas pelas instâncias de origem, por outro lado o mesmo Tribunal da Cidadania não aplicou referido princípio para efeito de se permitir a suspensão condicional do processo (artigo 89, da Lei n. 9.099/95), conforme veremos mais à frente.

Essa constatação reforça a ideia de que o STJ tende a uniformizar sua jurisprudência no sentido da não aplicação do princípio da unicidade dos crimes falimentares, pois se o faz para o menos (para efeito de suspensão condicional do processo, cuja aplicação independe de sentença condenatória e no mais das vezes a antecede), com maior razão certamente poderá adotar esse entendimento para o mais, ou seja, diante de recursos contra condenações criminais editadas pelas instâncias de origem, para efeito de readequação de penas.

Nesse sentido, de todo pertinente a análise de Alexandre Demetrius Pereira, acima citado, em texto publicado desta feita no Migalhas:

“Outro problema interessante sobre a aplicabilidade do ANPP aos crimes falimentares é a questão da unidade ou unicidade do crime falimentar. Esse vetusto princípio, verdadeira particularidade dos delitos falimentares, considerado por muitos uma ficção jurídica, preconiza que, em havendo concurso de crimes envolvendo exclusivamente crimes falimentares, deve-se aplicar somente a pena do crime falimentar mais grave.
Conquanto criticado pela mais moderna doutrina, o princípio da unidade ou unicidade do crime falimentar é ainda aplicado pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, mesmo na vigência da lei 11.101/05 (vejam-se os acórdãos de julgamento do REsp 1.617.129-RS, Min. Sebastião Reis Júnior, do HC 94.632/MG, Min. Og Fernandes e do HC 56.368, Min. Gilson Dipp).
(…)
Para responder essa questão, devemos analisar novamente a jurisprudência do STJ, pois, ainda que ita a aplicação da unicidade, referido tribunal não tem itido que, para análise da pena concernente ao cabimento de benefícios penais análogos ao ANPP (transação penal e suspensão condicional do processo), a unicidade seja utilizada para reduzir a pena teoricamente aplicável, antes do momento da sentença.
Nesse sentido:
HC 26126 / SP HABEAS CORPUS 2002/0175898-4 Relator(a) Ministra LAURITA VAZ (1120) Órgão Julgador T5 – QUINTA TURMA Data do Julgamento 18/11/2003 Data da Publicação/Fonte DJ 15/12/2003 p. 332 Ementa: HABEAS CORPUS. CRIMES FALIMENTARES. CONCURSO MATERIAL. SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO. IMPOSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA UNICIDADE. INAPLICABILIDADE ANTES DA SENTENÇA. INCIDÊNCIA DA SÚMULA N.º 243 DO STJ (…)”  (g.n.) [7].

Princípio da unicidade dos crimes falimentares não comporta aplicação atualmente

Nessa ordem de ideias, na vigência da Lei nº 11.101/2005, respeitado entendimento diverso, não tem mais lugar a aplicação do princípio da unicidade dos crimes falimentares.

Sobre o tema, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro emitiu nota técnica no sentido da não aplicação do princípio da unicidade aos crimes de insolvência, com base em Enunciado aprovado na 2ª Jornada Institucional.

Trata-se do Enunciado de Unidade Institucional nº 009/2024:

“A partir da vigência da Lei 11.101/2005, não se deve reconhecer a aplicação do chamado princípio da unicidade dos crimes de insolvência, ainda que as condutas se limitem aos tipos penais contidos na Lei de Falências e Recuperações, aplicando-se, conforme for a hipótese, as regras de concurso de crimes previstas no Código Penal. Dispositivos legais: artigos 168 a 178 da Lei 11.101/2005. Justificativa: aqui”. [8]

 Vale observar ainda que o texto doutrinário que justificou a nota técnica emitida pelo MP-RJ, de autoria de Márcio Souza Guimarães e Juan Luiz Souza Vazquez, pontuou com propriedade:

“A ratio da lei 11.101/2005 não abre mais espaço para o acolhimento do postulado, inclusive diante da adoção de um regime penal mais gravoso na vigente norma. O seu fundamento, desenvolvido na égide da legislação ada, é superado pelo texto legislativo atual, ao não dispor sobre a unidade dos crimes falimentares e, ademais, determinar a aplicação das regras constantes do Código Penal. Assim, as condutas praticadas devem ser consideradas individualmente, com subsunção dos respectivos tipos delituosos existentes, sem que se considere todas as praticadas como um único evento delitivo (…) (g.n.).” [9]

Em síntese, podemos concluir que, diante da orientação unânime da doutrina, de precedentes do Superior Tribunal de Justiça, que afastam o princípio da unicidade dos crimes falimentares para efeito de aplicação do sursis processual, assim como ante a ausência de previsão de referido princípio na Lei nº 11.101/2005, devem ser aplicadas aos crimes de insolvência as regras do concurso de crimes, previstas nos artigos 69 a 71, do . O mesmo ocorre com a prescrição penal, remetida pela LREF (artigo 182) às normas gerais do , abandonado pelo novo regramento o prazo prescricional bienal único, numa clara demonstração de que o legislador pretendeu romper totalmente com o tratamento dado aos delitos falimentares pela lei anterior.

Essa posição contrária à aplicação do princípio da unidade dos crimes de insolvência atende ainda ao objetivo do legislador de punir com maior rigor os crimes relacionados à falência e à recuperação de empresas, em especial as fraudes, desvios e manobras de blindagem patrimonial, praticadas em prejuízo dos credores, da coletividade e da confiança no ambiente de negócios, condutas que, em última análise, atentam contra a ordem econômica e contra os valores e princípios constitucionais da livre iniciativa e do empreendedorismo, que lhe dão fundamento (CF, artigo 170, seus incisos e parágrafo único).

_______________________________________

[1] Art. 192, do Decreto-lei n. 7.661/45. Se o ato previsto nesta lei constituir crime por si mesmo, independentemente da declaração da falência, aplica-se a regra do art. 51*, parágrafo 1º do Código Penal (artigo alusivo ao concurso formal de crimes no daquela época*).

[2] Art. 199, do Decreto-lei n. 7.661/45. A prescrição extintiva da punibilidade de crime falimentar opera-se em dois anos.

Parágrafo único. O prazo prescricional começa a correr da data em que transitar em julgado a sentença que encerrar a falência ou que julgar cumprida a concordata.

[3] Nesse sentido: TJSP; Apelação Criminal 0035049-40.2016.8.26.0100; Relator (a): Klaus Marouelli Arroyo; Órgão Julgador: 7ª Câmara de Direito Criminal; Foro Central Cível – 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Data do Julgamento: 08/05/2024; Data de Registro: 08/05/2024); Apelação Criminal 1500018-85.2019.8.26.0549; Relator (a): Klaus Marouelli Arroyo; Órgão Julgador: 7ª Câmara de Direito Criminal; Foro de Santa Rosa de Viterbo – Vara Única; Data do Julgamento: 08/03/2023; Data de Registro: 08/03/2023).

[4]  STJ: AgRg no AREsp n. 986.276/RS, Relator Ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 7/8/2018, DJe de 17/8/2018; REsp n. 1.617.129/RS, Relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 7/11/2017, DJe de 21/11/2017.

[5]  STJ: AgRg no RHC: 174.790 RS 2022/0401755-5, Relator.: Ministro RIBEIRO DANTAS, Data de Julgamento: 17/10/2023, T5 – QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 23/10/2023.

[6]  STJ: HC n. 56.368/SP, Relator Ministro Gilson Dipp, Quinta Turma, julgado em 24/10/2006, DJ de 20/11/2006, p. 347.

[7] Texto disponível em: https://www.migalhconjur-br.diariodoriogrande.com.br/coluna/insolvencia-em-foco/320614/o-acordo-de-nao-persecucao-penal-e-os-crimes-falimentares–algumas-particularidades – o em 24 de fevereiro de 2025.

[8] Enunciado disponível em: https://h-internet.mprj.mp.br/servicos/consulta-juridica/enunciados – o em 24 de fevereiro de 2025.

[9] Material disponível em: https://www.migalhconjur-br.diariodoriogrande.com.br/coluna/insolvencia-emfoco/392158/utilizacao-do-principio-da-unicidade-nos-crimes-de-insolvencia – o em 22 de fevereiro de 2025.

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