Opinião

Exigência de reserva para PCD e reabilitados do INSS no contexto das licitações

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  • é sócio do escritório David & Athayde Advogados pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Multivix (ES) e consultor em Direito istrativo Ambiental Minerário e Urbanístico.

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2 de abril de 2025, 18h26

A Constituição de 1988, influenciada por uma necessária concepção democrática e humanista de Estado, após a ruptura do regime repressivo então vigente, fez uma releitura do modelo jurídico aplicado, que a a ser concebido a partir, dentre outros, do sobreprincípio da dignidade da pessoa humana. Desde então, todo ordenamento jurídico ou a ser interpretado a partir desses postulados, o que inclui, naturalmente, o tratamento conferido a pessoas com deficiência (PCD).

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Mulher PCD em cadeira de rodas

Tanto o é que a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência foi inserida no ordenamento jurídico através do Decreto Legislativo n° 186/208 e Decreto n° 6.949/2009 (nos moldes do procedimento previsto no artigo 5°, §3° da CF/88), preconizando, com clareza, o dever do Estado na tutela às pessoas com deficiência e a importância de inseri-las no mercado de trabalho.

A premissa é evidente. A pessoa com deficiência não pode ser alijada do convívio em sociedade. Além de sua inclusão social, é cogente a implementação de políticas afirmativas que busquem instituir meios de lhe fornecer o convívio digno em sociedade, especialmente no mercado de trabalho.

Mas qual é repercussão dessa concepção ontológica no âmbito das licitações?

Partindo dessa perspectiva, instituiu-se o Estatuto da Pessoa com Deficiência através da Lei n° 13.146/2015, que trouxe importantes modificações legislativas não apenas ao Código Civil (notadamente em relação à Teoria da Incapacidade), mas em todo o ordenamento jurídico, incluindo a extinta Lei n° 8.666/1993 (Lei de Licitações).

A Lei n° 8.213/1991 ou a prever em seu artigo 93 que empresas com cem ou mais colaboradores estarão obrigadas a preencher o percentual de 2% a 5% de seus cargos com pessoas portadoras de deficiência (PCD) ou reabilitados da previdência social, na proporção ali estabelecida.

Demonstrando a importância jurídica conferida pelo legislador ao Estatuto da Pessoa com Deficiência, o artigo 3°, §2°, V da Lei n° 8.666/1993 ou a estabelecer como critério de desempate [1] em licitações as propostas de empresas que declarem cumprir com a reserva de cargos prevista pela Lei n° 8.213/1991.

Nota-se que, no âmbito da licitação, a empresa que cumprir a citada reserva de cargos poderá desfrutar do benefício do desempate no certame, caso sua proposta fosse igual a de outro licitante que não atendesse tal critério.

Porém, tratar como critério de desempate o cumprimento da reserva de cargos para PCD e reabilitados da previdência social não concretizava, em sua plenitude, as premissas propugnadas pela dignidade da pessoa humana e a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.

Além disso, a previsão normativa dada a Lei n° 8.666/1993 permitiu interpretações distorcidas do artigo 3°, §2°, V, pois diversos Editais contemplavam a reserva de cargos como critério de habilitação na licitação, e não de desempate.

Nesse contexto, a Lei n° 14.133/2021 (nova Lei de Licitações) foi enfática em seu artigo 63, IV ao elencar, como pressuposto da fase de habilitação, a declaração de que o licitante cumpre a reserva de cargos a que alude a Lei n° 8.213/1991.

Reserva de cargos para PCD e reabilitados na Lei de Licitações

A nova redação proposta pela Lei n° 14.133/2021 demonstra uma distinção importante. A redação da Lei n° 8.666/1993 exigia que o licitante, para fazer jus ao benefício do desempate, precisava comprovar que cumpria a reserva de cargos da Lei n° 8.213/1991.

O artigo 63, IV da Lei n° 14.133/2021, por sua vez, exige do licitante apenas a declaração de que atende a referida reserva de cargos na fase de habilitação.

Exigência x supremacia do interesse público: parecer da AGU e a recente decisão do Plenário do TCU

 Visando uniformizar a jurisprudência istrativa, a Advocacia Geral da União (AGU) editou o Parecer n° 00060/2024/Decor/CGU/AGU [2], estabelecendo as diretrizes que deverão ser seguidas pela istração pública quanto à interpretação do artigo 63, IV da Lei n° 14.133/2021.

A AGU fixou orientação no sentido de que, na fase de habilitação, somente poderá ser exigido do licitante a declaração de que cumpre com as exigências de reserva de cargo.

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Além disso, o parecer da AGU atribuiu à declaração do licitante na fase de habilitação uma presunção relativa de veracidade, que pode ser desconstituída através de autos de infração e certidões expedidas pelos auditores-fiscais do Trabalho.

A posição exarada pela AGU, em verdade, revela a colisão entre a política afirmativa que o artigo 63, IV da Lei n° 14.133/2021 pretende concretizar frente à supremacia do interesse público, com a prevalência deste.

Afinal, a presunção de veracidade conferida à declaração do licitante afasta a necessidade de se perquirir sobre o seu respectivo teor, que pode ser desconstituída através de elementos plausíveis.

Em recente decisão, datada de 13/3/2025, o Plenário do TCU proferiu o Acórdão n° 523/2025-TCU-Plenário [3] conferindo interpretação semelhante ao artigo 63, IV da Lei n° 14.133/2021, afirmando que tais exigências (observância à reserva de cargos) deve ser interpretada a partir do interesse público, da economicidade e competitividade.

“9. Bem se vê que a inovação introduzida no procedimento licitatório tem o objetivo claro de se tornar um mecanismo de política pública destinado a reduzir o quadro de desigualdade e vulnerabilidade de categorias específicas. Nesse sentido, o art. 92, inciso XVII, da Lei 14.133/2021, também exige a inclusão, como cláusula do contrato a ser firmado com o licitante vencedor, do cumprimento das aludidas reservas de vagas durante a vigência do contrato.

10. Contudo, tais exigências precisam estar alinhadas aos princípios descritos no art. 5º da mesma Lei, com destaque, nesse caso, para o interesse público, a economicidade e a competitividade.

11. Nesse sentido, cabe esclarecer que a exigência legal, na fase de habilitação, é apenas a declaração formal do licitante de que cumpre as exigências de reserva de cargos para pessoa com deficiência e para reabilitado da Previdência Social, presumindo-se sua veracidade com base nos princípios da boa-fé e da lealdade processual.

12. Isso não impede, obviamente, que essa declaração seja questionada de ofício ou a partir de elementos trazidos ao processo licitatório, no âmbito de recurso istrativo, no qual se argumente no sentido da inveracidade de declaração.” (g.n.)

Porém, é preciso compreender essa sistemática com parcimônia. Não se pode interpretar o comando do artigo 93, da Lei n° 8.213/1991 como uma norma de mera exortação, pois reflete uma política de ação afirmativa e inclusiva, exigindo ação concreta do licitante.

O respeito à reserva de cargos de PCD e reabilitados da previdência é inserida no contexto jurídico da licitação através da Lei n° 8.666/1993 com o advento do Estatuto da Pessoa com Deficiência, visando efetivar a dignidade da pessoa humana e a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência.

Todavia, sua aplicação no contexto jurídico da licitação precisa ser concebida à luz da supremacia do interesse público, conforme entendeu o Plenário do TCU.

Nesse contexto, a mera declaração formal, nos moldes do que preconiza o Parecer da AGU e o Plenário do TCU, não eximiria o licitante de possuir o quantitativo mínimo de PCDs ou reabilitados da previdência em seus quadros.

Tal interpretação é possível, pois a declaração de que cumpre com a reserva de cargos previstos em lei goza de presunção relativa e, portanto, pode ter o seu teor averiguado em diligências pela própria Comissão de Licitação, ou desconstituída por meio de outros elementos robustos apresentados.

Logo, em que pese ser suficiente para fins de habilitação a mera declaração formal do licitante de que atende a reserva de cargos prevista em lei, sua desconformidade com a realidade pode trazer implicações indesejadas para o licitante.

Cuidados que o licitante precisa observar ao prestar declaração no certame de que atende ao critério de reserva de cargos

O cenário exposto exige cautela do licitante ao prestar as declarações exigidas em licitação, principalmente para não incorrer, eventualmente, na conduta de prestar declaração falsa em licitação, além de sua inevitável inabilitação.

Como visto, tanto o parecer da AGU, quanto a decisão do Plenário do TCU, consignam expressamente que a presunção inerente à declaração em análise pode ser refutada diante de elementos que infirme seu teor.

Para a AGU, a higidez da declaração pode ser rechaçada diante de documento ou declaração fornecida pela fiscalização trabalhista que ateste o contrário.

Por outro lado, a ratio decidendi do Acórdão n° 523/2025-TCU-Plenário revela que a certidão fornecida pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), por si só, não é suficiente para inabilitar a licitante (e, naturalmente, ofuscar sua veracidade), sendo necessário, inclusive, permitir que o licitante comprove a legitimidade das declarações prestadas.

Contudo, é possível perceber que Tribunais do país avaliam a veracidade da declaração do licitante a partir da mencionada certidão emitida pelo MTE, diferente do que é proposta pela AGU e pelo TUC.

Sobre isso, em recente julgamento (23/2/2025), o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo assim decidiu [4]:

“[…] A impetrante aponta a ilegalidade do ato, argumentando que a vencedora entregou documentação com declaração falsa, já que possui número inferior de pessoas com deficiência ou beneficiários reabilitados da previdência social em relação ao exigido pela Lei nº 8.213/91 (art. 93), de modo que deixou de atender ao item 11.1.12 do Edital, bem como ao disposto no art. 63, IV, e art. 116, da Lei nº 14.133/2021.

[…] A despeito de ter ela apresentado a aludida declaração (fl.90), fez dela constar informação errônea, ao afirmar que resguardava cota superior ao percentual previsto no art. 93 da Lei nº 8.213/91, quando, em verdade, não o fazia, conforme Certidão emitida pelo Ministério do Trabalho e Emprego (fl. 91).”

Em qualquer cenário, prestar declaração que não condiz com a realidade fática pode resultar não apenas na inabilitação da licitante, mas também em imposição de penalidades, por exemplo, pela conduta de prestar declaração falsa em licitação, conforme artigo 155, VIII e 156 da Lei n° 14.133/2021.

Além disso, uma vez verificada a inidoneidade da declaração, o licitante poderá sofrer com fiscalizações por parte do Ministério do Trabalho e Emprego, que pode resultar em autuações e novas penalidades.

Caso o licitante não consiga preencher o quantitativo mínimo de vagas para PCD ou reabilitados, é importante que adote medidas visando resguardar sua participação em futuras licitações, que, inclusive, podem impedir sanções impostas no bojo da licitação e de fiscalizações trabalhistas.

A respeito disso, a Justiça do Trabalho tem adotado a posição de afastar a responsabilidade de empresas na contratação de pessoas com deficiência ou reabilitados da previdência social em situações específicas, quando demonstrado que, mesmo sendo adotadas todas as medidas necessárias, não foi possível alcançar o quantitativo mínimo.

Porém, no contexto da licitação, percebe-se que alguns tribunais têm seguido posições peculiares, relativizando a exigência da Lei n° 8.213/1991 diante das especificidades da empresa licitante, a fim de permiti-la participar de licitações, conforme, por exemplo, decidiu o TRF-4 [5] em relação a empresa que constituía grupo econômico dedicado à terceirização de serviços.

Ademais, é importante destacar a orientação do Parecer da AGU no sentido de que, se autuado pela fiscalização trabalhista por descumprimento do disposto no artigo 63, IV da Lei n° 14.133/2021, a continuidade no certame ou na própria execução do contrato estará condicionada à anulação ou suspensão da autuação.

Portanto, é importante que o licitante tenha atenção e cautela ao prestar declaração em licitação de que atende a exigência de reserva de vagas previstas em lei, podendo, inclusive, adotar medidas visando resguardar sua participação em futuras licitações.

 


[1] Outra importante alteração na Lei de Licitações (Lei n° 8.666/1993) foi o §5° do art. 3°, que em seu inciso II permitiu que nos processos de licitação houvesse uma margem de preferência para bens e serviços produzidos por empresas que comprovem cumprir a reserva de cargos para PCD e reabilitados da previdência social.

[2] Disponível em: PARECER n. 00060/2024/DECOR/CGU/AGU

[3] Disponível em: 4791729d-bfa2-4c7e-884a-fa08db03df0d

[4] TJ-SP – Apelação: 10231640320248260562 Santos, Relator.: Luís Francisco Aguilar Cortez, Data de Julgamento: 23/02/2025, 1ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 23/02/2025.

[5] TRF-4 – AG – Agravo de Instrumento: 50154449620244040000 RS, Relator.: SÉRGIO RENATO TEJADA GARCIA, Data de Julgamento: 18/12/2024, 4ª Turma, Data de Publicação: 19/12/2024.

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  • é sócio do escritório David & Athayde Advogados, pós-graduado em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Multivix e consultor em Direito istrativo, Ambiental, Minerário e Urbanístico.

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