Habeas Corpus estrutural: instrumento para resolver problemas coletivos de liberdade
2 de abril de 2025, 9h15
Uma nova resposta para velhos problemas

O sistema prisional brasileiro convive há décadas com violações massivas de direitos fundamentais. A superlotação, a violência institucional e o descumprimento de decisões judiciais revelam um estado de coisas inconstitucional, já reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (ADPF 347). Nesse cenário, o Habeas Corpus coletivo tem emergido como instrumento eficaz para tratar não apenas casos individuais, mas problemas estruturais relacionados ao direito de locomoção de grupos inteiros, de forma mais ágil e racional.
Tradicionalmente concebido como uma ação individual, o habeas corpus ou a ganhar nova feição no contexto do neoconstitucionalismo, que reconhece os direitos coletivos como integrantes do bloco de constitucionalidade. A tutela da liberdade de ir, vir e ficar, nesses termos, não pode mais ser pensada apenas sob o prisma individualista. A Constituição de 1988 (artigo 5º, LXVIII), ao lado de tratados internacionais de direitos humanos, fornece o e normativo para uma interpretação ampliativa, capaz de contemplar o habeas corpus coletivo como instrumento legítimo de proteção da liberdade ambulatorial em sua dimensão coletiva.
Experiência do STF e a virada legislativa
Desde o leading case do HC 143.641, relatado pelo ministro Ricardo Lewandowski em 2018, o STF tem afirmado a issibilidade do habeas corpus coletivo. Casos como o HC 165.704 (relator Gilmar Mendes), que concedeu prisão domiciliar a responsáveis por crianças ou pessoas com deficiência, e o HC 188.820 (relator Edson Fachin), que beneficiou presos em situação de risco durante a pandemia, reforçam esse novo paradigma.
A aprovação da Lei nº 14.836/2024, que introduziu o artigo 647-A no Código de Processo Penal, representou um importante avanço ao reconhecer expressamente o cabimento do Habeas Corpus coletivo. Contudo, a nova norma não disciplina aspectos procedimentais essenciais, especialmente quando se trata de problemas estruturais que exigem medidas de alcance sistêmico.
Medidas estruturais e o à justiça
O habeas corpus coletivo não deve ser visto como um novo “remédio heroico”, mas como uma modalidade procedimental com vocação para enfrentar litígios complexos e coletivos. Trata-se de um instrumento que agrega celeridade, eficiência e racionalidade, viabilizando decisões estruturantes, inclusive com planejamento, audiências públicas e fiscalização do cumprimento das medidas pelo Ministério Público.
O alargamento procedimental e decisório do habeas corpus coletivo pode ser empregado como meio para:
1 – Superar a disfuncionalidade do uso excessivo de habeas corpus individuais;
2 – Corrigir ações estatais reiteradamente ilegais contra determinados grupos;
3 – Unificar entendimentos jurisprudenciais, inclusive no regime de recursos repetitivos;
4 – Reestruturar instituições públicas cujas práticas afetam o direito à liberdade de forma sistêmica.
Uma proposta legislativa necessária
Urge considerar a necessidade de nosso Parlamento elaborar diretrizes legislativas concretas voltadas a conferir maior efetividade a esse habeas corpus coletivo, inspiradas tanto em experiências nacionais quanto estrangeiras bem-sucedidas. Entre as sugestões, quatro eixos fundamentais podem ser destacados:
Em primeiro lugar, a possibilidade de conversão do habeas corpus individual em coletivo, sempre que identificada a multiplicidade de casos com idêntica causa de pedir e objeto, o que favorece a racionalização processual e a proteção ampla de grupos vulnerabilizados.
Em segundo lugar, a previsão expressa da elaboração de planos de ação com metas e prazos definidos, especialmente em litígios de natureza estrutural, permitindo ao Judiciário atuar de maneira mais eficaz e resolutiva.
A terceira diretriz parte da adoção do modelo de precedentes qualificados, a exemplo do que já ocorre no regime dos recursos repetitivos e da repercussão geral, conferindo maior segurança jurídica e uniformidade na aplicação do direito.
Por fim, ressalta-se a garantia de participação democrática, por meio da realização de audiências públicas e da escuta ativa dos grupos diretamente afetados pelas decisões, promovendo maior legitimidade e efetividade às medidas judiciais.
Tais propostas têm por objetivo ampliar o o à justiça e fortalecer o papel do Poder Judiciário como garantidor dos direitos fundamentais, sobretudo diante de cenários marcados por desigualdades e vulnerabilidades sociais.
O futuro do HC coletivo
O Habeas Corpus estrutural é resposta constitucional e democrática aos desafios contemporâneos da tutela da liberdade. Não há razão jurídica, lógica ou prática para restringir sua utilização quando há ofensa sistemática a direitos fundamentais.
Se a ação civil pública pode ser usada para proteger o meio ambiente ou a saúde pública, por que não aplicar o Habeas Corpus coletivo para proteger o direito de locomoção de populações inteiras sujeitas a prisões ilegais, condições desumanas ou decisões judiciais ignoradas?
A efetividade dos direitos fundamentais exige novas respostas institucionais, e o habeas corpus coletivo, especialmente em sua dimensão estrutural, é uma delas. Sua regulamentação legislativa completa é não apenas oportuna, mas urgente, diante da magnitude dos problemas que afetam o sistema de justiça criminal no Brasil.
*Em minha tese de doutorado na USP, defendida em setembro do ano ado e sob a orientação do ministro da Justiça Ricardo Lewandowski, propus um projeto de lei a respeito. A íntegra da tese ainda não foi publicada.
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