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Habeas Corpus estrutural: instrumento para resolver problemas coletivos de liberdade

Autor

  • é mestre e doutora em direito pela USP (Universidade de São Paulo) secretária-geral do STF (2016). Assessora do ministro do STF Ricardo Lewandowski (2016-2023). Assessora-chefe do Senado para fins do impeachment da presidente Dilma Rousseff (2016). Relatora da comissão de juristas do Senado para um anteprojeto de Lei de Impeachment (2022). Presidente do Ieja (Instituto de Estudos Jurídicos Aplicados).

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2 de abril de 2025, 9h15

Uma nova resposta para velhos problemas

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O sistema prisional brasileiro convive há décadas com violações massivas de direitos fundamentais. A superlotação, a violência institucional e o descumprimento de decisões judiciais revelam um estado de coisas inconstitucional, já reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (ADPF 347). Nesse cenário, o Habeas Corpus coletivo tem emergido como instrumento eficaz para tratar não apenas casos individuais, mas problemas estruturais relacionados ao direito de locomoção de grupos inteiros, de forma mais ágil e racional.

Tradicionalmente concebido como uma ação individual, o habeas corpus ou a ganhar nova feição no contexto do neoconstitucionalismo, que reconhece os direitos coletivos como integrantes do bloco de constitucionalidade. A tutela da liberdade de ir, vir e ficar, nesses termos, não pode mais ser pensada apenas sob o prisma individualista. A Constituição de 1988 (artigo 5º, LXVIII), ao lado de tratados internacionais de direitos humanos, fornece o e normativo para uma interpretação ampliativa, capaz de contemplar o habeas corpus coletivo como instrumento legítimo de proteção da liberdade ambulatorial em sua dimensão coletiva.

Experiência do STF e a virada legislativa

Desde o leading case do HC 143.641, relatado pelo ministro Ricardo Lewandowski em 2018, o STF tem afirmado a issibilidade do habeas corpus coletivo. Casos como o HC 165.704 (relator Gilmar Mendes), que concedeu prisão domiciliar a responsáveis por crianças ou pessoas com deficiência, e o HC 188.820 (relator Edson Fachin), que beneficiou presos em situação de risco durante a pandemia, reforçam esse novo paradigma.

A aprovação da Lei nº 14.836/2024, que introduziu o artigo 647-A no Código de Processo Penal, representou um importante avanço ao reconhecer expressamente o cabimento do Habeas Corpus coletivo. Contudo, a nova norma não disciplina aspectos procedimentais essenciais, especialmente quando se trata de problemas estruturais que exigem medidas de alcance sistêmico.

Medidas estruturais e o à justiça

O habeas corpus coletivo não deve ser visto como um novo “remédio heroico”, mas como uma modalidade procedimental com vocação para enfrentar litígios complexos e coletivos. Trata-se de um instrumento que agrega celeridade, eficiência e racionalidade, viabilizando decisões estruturantes, inclusive com planejamento, audiências públicas e fiscalização do cumprimento das medidas pelo Ministério Público.

O alargamento procedimental e decisório do habeas corpus coletivo pode ser empregado como meio para:

1 – Superar a disfuncionalidade do uso excessivo de habeas corpus individuais;
2 – Corrigir ações estatais reiteradamente ilegais contra determinados grupos;
3 – Unificar entendimentos jurisprudenciais, inclusive no regime de recursos repetitivos;
4 – Reestruturar instituições públicas cujas práticas afetam o direito à liberdade de forma sistêmica.

Uma proposta legislativa necessária

Urge considerar a necessidade de nosso Parlamento elaborar diretrizes legislativas concretas voltadas a conferir maior efetividade a esse  habeas corpus coletivo, inspiradas tanto em experiências nacionais quanto estrangeiras bem-sucedidas. Entre as sugestões, quatro eixos fundamentais podem ser destacados:

Em primeiro lugar, a possibilidade de conversão do habeas corpus individual em coletivo, sempre que identificada a multiplicidade de casos com idêntica causa de pedir e objeto, o que favorece a racionalização processual e a proteção ampla de grupos vulnerabilizados.

Em segundo lugar, a previsão expressa da elaboração de planos de ação com metas e prazos definidos, especialmente em litígios de natureza estrutural, permitindo ao Judiciário atuar de maneira mais eficaz e resolutiva.

A terceira diretriz parte da adoção do modelo de precedentes qualificados, a exemplo do que já ocorre no regime dos recursos repetitivos e da repercussão geral, conferindo maior segurança jurídica e uniformidade na aplicação do direito.

Por fim, ressalta-se a garantia de participação democrática, por meio da realização de audiências públicas e da escuta ativa dos grupos diretamente afetados pelas decisões, promovendo maior legitimidade e efetividade às medidas judiciais.

Tais propostas têm por objetivo ampliar o o à justiça e fortalecer o papel do Poder Judiciário como garantidor dos direitos fundamentais, sobretudo diante de cenários marcados por desigualdades e vulnerabilidades sociais.

O futuro do HC coletivo

O Habeas Corpus estrutural é resposta constitucional e democrática aos desafios contemporâneos da tutela da liberdade. Não há razão jurídica, lógica ou prática para restringir sua utilização quando há ofensa sistemática a direitos fundamentais.

Se a ação civil pública pode ser usada para proteger o meio ambiente ou a saúde pública, por que não aplicar o Habeas Corpus coletivo para proteger o direito de locomoção de populações inteiras sujeitas a prisões ilegais, condições desumanas ou decisões judiciais ignoradas?

A efetividade dos direitos fundamentais exige novas respostas institucionais, e o habeas corpus coletivo, especialmente em sua dimensão estrutural, é uma delas. Sua regulamentação legislativa completa é não apenas oportuna, mas urgente, diante da magnitude dos problemas que afetam o sistema de justiça criminal no Brasil.

 

*Em minha tese de doutorado na USP, defendida em setembro do ano ado e sob a orientação do ministro da Justiça Ricardo Lewandowski, propus um projeto de lei a respeito. A íntegra da tese ainda não foi publicada.

Autores

  • é mestre e doutora em direito pela USP (Universidade de São Paulo), secretária-geral do STF (2016). Assessora do ministro do STF Ricardo Lewandowski (2016-2023). Assessora-chefe do Senado para fins do impeachment da presidente Dilma Rousseff (2016). Relatora da comissão de juristas do Senado para um anteprojeto de Lei de Impeachment (2022). Presidente do Ieja (Instituto de Estudos Jurídicos Aplicados).

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