Opinião

'Problemas de gênero' entre grades: dilema da unidade prisional LGBT no ES

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2 de abril de 2025, 17h19

Em abril de 2021, o estado do Espírito Santo deu um o importante ao criar a primeira unidade prisional voltada ao atendimento da população LGBTQIAPN+. A Penitenciária de Segurança Média 2, pertencente ao Complexo Prisional de Viana, foi a escolhida para tal finalidade. Assim, ela ou a abarcar os três regimes prisionais (fechado, semiaberto e aberto), que ditam sua organização interna.

TV Gazeta/Globo

A criação da unidade trouxe algum nível de dignidade no cumprimento da pena e possibilitou o o a oportunidades de estudo e trabalho para a população LGBTQIAPN+ encarcerada, com cerca de 90% dos/as internos/as exercendo alguma atividade. Entretanto, nesses mais de três anos de funcionamento, alguns desafios persistem. Dentre eles, destacam-se a superutilização de psicotrópicos, a violência autoinfligida, a deficiência (em alguns casos, ausência) de uma formação adequada de servidores ali atuantes e a autodeclaração como meio único de inclusão de novos/as internos/as.

Autodeclarar-se se entende como o ato de uma pessoa afirmar sua identidade de gênero e orientação sexual de acordo com sua autopercepção. É um processo pelo qual as pessoas se definem de forma autêntica, sem necessidade de validação externa. A inclusão de pessoas com base no seu autorrelato reconhece a importância de respeitar e aceitar a forma como se identificam, independentemente das normas sociais predeterminadas. Com efeito, esse é o principal critério, hoje, para que um/a interno/a seja encaminhado à Unidade de Segurança Média 2 no Estado do Espírito Santo.

A filósofa Judith Butler, maior expoente no mundo, hoje, sobre Teoria Queer, deixa evidente o seu posicionamento de que não haveria uma ontologia, um algo em essência a designar gênero. Construção linguístico-social que é, o gênero se esgotaria na performatividade [1]. Como ato discursivo, se é “homem” ou se é “mulher” não enquanto categorias dadas pela natureza, e sim, pela mimetização ou não de movimentos, práticas, gostos, comportamentos etc. E, nisso, incluímos o discurso por excelência, a verbalização, a autoafirmação – afinal, falar, autoafirmar, discursar é, dentre outras coisas, performar.

A autodeclaração, a princípio, parecia o critério ideal para definir quem faria jus a ingressar e permanecer na primeira unidade prisional LGBTQIAPN+ capixaba. É, inclusive, o procedimento textualmente previsto na Resolução 348 do CNJ. Contudo, eis o “problema de gênero” que ninguém havia previsto: por motivos de perseguição de facções criminosas, por desejar estar numa unidade que lhes garanta o estudo e o trabalho para remir sua pena, ou, simplesmente, por ter-se convencionado que a PSME II é “mais tranquila” que as demais, diversos homens héteros cisgêneros têm se afirmado gays, bissexuais ou trans/travestis a fim de lá se abrigarem.

Isso poderia ser apenas um percalço, um mero detalhe. No entanto, inúmeros são os transtornos gerados pela presença dos “héteros infiltrados”. Além da superlotação que ocasiona, tal manobra é vista como uma invasão do espaço destinado aos LGBTQIAPN+, que se sentem vulneráveis e questionam a autenticidade de muitos dos novos incorporados. A presença desses indivíduos também gera conflitos e desordens, além de alimentar a percepção entre os agentes penitenciários de que a unidade oferece benefícios indevidos.

Spacca

Em alguns dos relatos colhidos em pesquisa de campo realizada in loco, presos/as LGBTQIAPN+ protestam: “‘Eles vêm pra cá e querem fazer as regras deles aqui, mas aqui a cadeia é nossa’ (INT24), ‘Eles vêm pra cá e querem ‘xerifar’ a cela, bater nas bicha, ‘presepar’ (INT03). ‘Por causa de confusão deles a gente acaba sendo punido’ (INT25)” [2]. E agora? Estamos com Butler?

Reducionismo

Já se pode perceber, com o resgate materialista feito pela Teoria Queer de Paul Preciado, que a “redução da identidade a um efeito do discurso, ignorando as formas de incorporação específica que caracterizam distintas inscrições performativas da identidade” [3] traz um emaranhado de complicações.

É possível se dizer uma coisa e ser lido socialmente como outra (o que se chama, por exemplo, de “abilidade hétero”, “abilidade cis” etc.). Um sujeito pode se autoafirmar gay e, no silêncio das entrelinhas sociais, ser lido como hétero (e também o contrário). A performatividade resta inócua; a matriz cisheterossexual fica intacta. A unidade prisional para acolher detentos LGBTQIAPN+ fica lotada de cishéteros, que, mais uma vez, impõem sua dominação.

Talvez a oposição realizada pelo construtivismo de gênero entre natureza e cultura não seja suficiente, hoje, nem para combater o colonialismo cisheteronormativo, nem para proclamar conceitos autoperformáticos de homem, mulher, não-binário, agênero, gay, hétero etc. Há algo de nós que não é só afirmação, andar, gesto, trejeito… Há algo de nós que está em nós. E não estamos fazendo referência ao símbolo: falamos da materialidade que nos inscreve na dureza do mundo. Estar no mundo numa posição cis, trans, hétero, homo ou bi é experiência linguística e material. Tem efeitos representativos e concretos. Há discurso e há materialidade.

Obviamente, não queremos, aqui, retomar uma ultraada ontologia transcendental absoluta. Ora, a consciência humana não está pairando apartada e abstratamente sobre o universo físico, secular e profano. Isto é, “Não é a consciência que determina a vida”; primordialmente, é “a vida que determina a consciência” [4]. A linguagem existe, a teatralidade cotidiana é fundamental, mas há um DNA material que condiciona o universo das representações e que, no retorno, é afetado por ele.

Não há problema algum em mudar de ideia sobre si, sobre as coisas, sobre os outros. A incoerência é humana, demasiado humana. Um sujeito pode perfeitamente, numa hora, entender-se gay, hétero, cis, trans, e, noutra, já não mais. Todavia, reduzir tudo ao discurso seria realmente libertador? É essa a epistemologia adequada a pautar políticas públicas — entre elas, as políticas de encarceramento? Deveríamos nos orientar, no cuidado da coisa comum, naquilo o que as pessoas dizem que o mundo é, ou no que ele, de fato, se revela, enquanto essência para além da aparência? Por aqui, ainda acreditamos haver instâncias objetivas de verificação da verdade a pautarem a ciência e a política.

Afinal, para quem está duplamente encarcerado, dentro dos muros físicos de um presídio, que, além de isolador social, é enclave de uma sociedade patriarcal cisheteronormativa, Butler e sua teoria construtivista são quimeras que nada dizem sobre a opressão material diária imprimida pela instituição total e pelos performativos de ocasião.

Qual seria a resposta ideal para o dilema da Média 2? Ainda não sabemos. O tema é denso e requer maior apuração. No entanto, já temos algumas perguntas. E isso é o início da construção de qualquer conhecimento na busca pela vivência em pluralidade.

 


[1] BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

[2] CERQUEIRA, Samira Medeiros. “Pão, pau e doce”: relato etnográfico sobre a primeira unidade prisional de referência para o atendimento da população LGBTQIA+ do Brasil. Dissertação (Mestrado em Segurança Pública) – Universidade Vila Velha. Vila Velha, 2023, p. 80.

[3] PRECIADO, Paul B. Manifesto contrassexual: práticas subversivas de identidade sexual. Tradução de Maria Paula Gurgel Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2022, p. 98.

[4] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia alemã: crítica da mais recente Filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). São Paulo: Boitempo Editorial, 2007, p. 94.

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