Opinião

Blockchain no futebol: antídoto contra manipulação de jogos

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  • é promotor de Justiça do Ministério Público do Paraná coordenador do Grupo de Pesquisas em Inovação Direito e Novas Tecnologias do MP-PR diretor de Inovação e Novas Tecnologias da Associação Paranaense do Ministério Público e mestre em Raciocínio Probatório pela Universidade de Girona-Espanha e Universidade de Gênova-Itália

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3 de abril de 2025, 9h25

A beleza do futebol está na sua imprevisibilidade: viradas épicas, gols nos acréscimos e craques decidindo partidas no último lance. Mas e quando o resultado já está definido antes mesmo de a bola rolar? Não por mérito ou estratégia, mas por manipulação?

O chamado match-fixing é um inimigo antigo que ganhou força com as apostas esportivas online e a globalização dos campeonatos. Em outras palavras, em vez de um espetáculo, o que se vê é um roteiro ensaiado, onde o talento em campo perde espaço para interesses obscuros nos bastidores. E assim, o futebol deixa de ser jogado nas quatro linhas para ser decidido longe delas — por regras que só favorecem quem está do lado de fora.

Se um escanteio no primeiro tempo vale mais para um apostador do que um gol no segundo, o jogo está errado. A presença de supostas organizações criminosas no mercado de apostas expõe a fragilidade da fiscalização e, nesse propenso mundo esportivo, os jogadores, árbitros e dirigentes tornam-se alvos fáceis, muitas vezes sem perceberem que estão sendo arrastados para um esquema que compromete suas carreiras e a credibilidade dos campeonatos. Mas o problema vai além da ética esportiva: é um crime que corrói a confiança de torcedores e investidores, afastando patrocinadores e enfraquecendo o espetáculo. Se a paixão pelo futebol vem da sua autenticidade, como mantê-la quando a desconfiança ganha espaço?

Nesse cenário, o STJD (Superior Tribunal de Justiça Desportiva) atua como um goleiro tentando evitar o pior, julgando casos de manipulação e punindo clubes e atletas, sendo certo que defender essa meta não é fácil. A obtenção de provas concretas é um desafio constante, e a sofisticação das fraudes dificulta as investigações. Muitas vezes, o tribunal depende de denúncias, gravações clandestinas ou evidências frágeis, o que abre brechas para que os verdadeiros culpados escapem. Nesse tema frágil, o jogo contra a corrupção esportiva, portanto, é sempre um duelo desigual.

Há algumas semanas, a Quarta Comissão Disciplinar do STJD puniu sete integrantes do Patrocinense-MG por envolvimento na manipulação do resultado de uma partida contra a Inter de Limeira, pela Série D do Brasileirão 2024. Um dirigente e um investidor foram identificados como responsáveis pelo agenciamento dos jogadores no esquema. Eles receberam a pena mais severa: eliminação do futebol e multas de R$ 50 mil e R$ 25 mil, respectivamente. Já o técnico, um auxiliar e três atletas foram punidos com multas e suspensões (no caso dos jogadores, de 720 dias e 549 dias).

A partida que levantou as suspeitas foi vencida pelo clube paulista por 3 a 0. Os indícios surgiram a partir de um relatório da empresa Sportradar, que identificou movimentações fora de padrão em casas de apostas, indicando que determinados apostadores tinham conhecimento prévio de que o Patrocinense sairia do primeiro tempo perdendo por ao menos dois gols. A equipe acabou sofrendo três gols na primeira etapa, um deles contra.

Segurança do blockchain

É nesse contexto que a tecnologia blockchain pode entrar em campo como um verdadeiro camisa 10 da transparência. Inovando com um sistema descentralizado e imutável, o blockchain registra transações e eventos de forma segura, tornando qualquer tentativa de fraude praticamente impossível. No futebol, não seria diferente, e sua aplicação é como um antídoto que pode revolucionar a fiscalização, dificultando manipulações e garantindo que os resultados sejam decididos única e exclusivamente dentro de campo.

A indústria das apostas esportivas, predominantemente operada por empresas privadas, é orientada pela lógica do lucro. Essas corporações investem em estratégias de marketing altamente eficazes, valendo-se de influenciadores digitais, atletas e ex-jogadores para promover suas plataformas, muitas vezes sem que o público perceba os riscos éticos e sociais subjacentes à prática das apostas.

Contudo, o avanço das tecnologias descentralizadas tem proporcionado alternativas a esse modelo. Desde o surgimento da Ethereum, em 2014, tornou-se tecnicamente viável organizar sistemas de apostas utilizando contratos inteligentes (smart contracts) em redes blockchain. Um exemplo paradigmático dessa aplicação foram os chamados “mercados de predição” (prediction markets), como aqueles utilizados para apostas sobre o resultado da eleição presidencial dos Estados Unidos em 2020. Nesses sistemas, os valores são depositados diretamente em smart contracts, que, por sua vez, executam automaticamente os pagamentos aos vencedores com base nos resultados previamente definidos, eliminando a necessidade de intermediários.

Apesar das vantagens em termos de segurança e transparência, a descentralização por si só não resolve todas as vulnerabilidades do ambiente esportivo. No contexto brasileiro, mesmo com o uso de plataformas descentralizadas, subsistiria o risco de manipulação interna dos jogos — por exemplo, mediante ações de atletas, árbitros ou dirigentes que simulassem situações em campo para lucrar com apostas.

Implementação do Drex

Nesse cenário, ganha relevância a proposta do Banco Central do Brasil de criação do Drex — o Real Digital —, uma moeda digital de banco central (Central Bank Digital Currency — CBDC). O Drex — moeda fiduciária nacional — operará em um blockchain permissionado, baseado na plataforma Hyperledger Besu. Diferente dos blockchains públicos, os permissionados funcionam sob governança controlada: os nós validadores são previamente autorizados, o que confere maior controle, confidencialidade e aderência à regulação financeira.

Com a implementação do Drex, seria possível regulamentar o uso exclusivo da moeda digital para todas as transações no setor de apostas esportivas. Isso implicaria a rastreabilidade integral dos fluxos financeiros relacionados ao esporte, dificultando o pagamento de propinas, a lavagem de dinheiro e outras práticas ilícitas. Todas as movimentações financeiras estariam registradas de forma imutável no blockchain, permitindo o rastreamento detalhado por autoridades competentes, como o STJD, o Ministério Público, a Receita Federal e o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). A aplicação de contratos inteligentes em conjunto com uma moeda digital nacional reforça, portanto, os instrumentos de integridade institucional e combate à corrupção no futebol.

O blockchain, deste modo, pode trazer mais transparência ao mercado de apostas esportivas, registrando todas as transações em uma rede pública auditável. A recente I da Manipulação de Jogos no Senado reforça a gravidade do problema e a necessidade de medidas concretas. Seu relatório final apontou esquemas de fraude e resultou em pedidos de indiciamento, evidenciando como a manipulação impacta a credibilidade do futebol. Diante desse cenário, padrões suspeitos poderiam ser detectados em tempo real, impedindo que supostos grupos criminosos manipulem partidas sem ser descobertos. Para os apostadores de boa-fé, isso garantiria um ambiente mais justo e confiável, onde o único fator decisivo fosse o desempenho dentro de campo — e não uma jogada ensaiada fora dele.

Os smart contracts (contratos inteligentes) também poderiam servir para outras funções. No contexto desportivo, referidos instrumentos poderiam garantir que os pagamentos de premiações e salários só fossem liberados após o cumprimento de metas, reduzindo, também, o risco de corrupção.

VAR seria beneficiado

Até mesmo o VAR poderia se beneficiar, com suas decisões sendo registradas de forma imutável, impedindo interferências externas que comprometam a lisura do jogo. Afinal, se o VAR já é motivo de polêmica, imagine se descobríssemos que suas decisões podem ser manipuladas nos bastidores? Neste contexto, desponta mais uma solução no blockchain, as cortes descentralizadas. A plataforma Kleros, por exemplo, é uma corte descentralizada, num sistema em que jurados decidem se um fato ocorreu ou não, na forma de crowdsourcing e regida por smart contracts em blockchain. Esses jurados são incentivados a decidir conforme a racionalidade, numa estrutura de teoria de jogos (no caso da Kleros, o Schelling Point). Assim, as decisões do VAR poderiam ser validadas ou não conforme a decisão dessas cortes (que são independentes de qualquer organização centralizada).

Noutro giro, a adoção do blockchain também poderia dar mais voz aos torcedores na gestão dos clubes, a exemplo dos tokens de governança, em que os fãs teriam participação ativa em decisões istrativas, ajudando a afastar interesses obscuros. Esse modelo de governança digital já vem sendo testado em clubes europeus, criando um tipo de relação direta entre time e torcida.

Apesar do grande potencial, esse sistema tecnológico ainda enfrenta resistência no futebol, seja por falta de conhecimento dos dirigentes, seja pelo medo de expor práticas pouco transparentes. Para que a tecnologia funcione de forma segura e eficaz, é fundamental uma regulamentação que proteja clubes e atletas. O que não dá para fazer, na linguagem do futebol, é ignorar essa inovação e recuar para a defesa enquanto o adversário já pressiona na grande área.

Se bem implementado, o blockchain pode ser o craque que o futebol precisa para recuperar sua credibilidade e afastar cartolas e apostadores mal-intencionados. No fim das contas, o torcedor quer vibrar com um gol de placa e não se perguntar se aquele pênalti duvidoso fez parte de um esquema. O jogo precisa voltar a ser decidido dentro de campo — e talvez a tecnologia seja o reforço de peso que o STJD e o futebol brasileiro tanto precisam.

Autores

  • é advogado e procurador do STJD do Futebol.

  • é promotor de Justiça do Ministério Público do Paraná, mestre em Raciocínio Probatório pelas universidades de Girona (Espanha) e Gênova (Itália), especialista em Programação de Contratos Inteligentes em Blockchain para o Direito pela PUC-RJ e coordenador do grupo de pesquisas de Inovação, Direito e Novas Tecnologias do Ministério Público do Paraná.

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