Invisibilização do trabalho doméstico, alimentos compensatórios e projeto de reforma do Código Civil
3 de abril de 2025, 16h16
Imagine o seguinte exemplo concreto: um casal celebra seu matrimônio sob o regime da separação total de bens. Enquanto um dos cônjuges é bastante abastado, o outro vem de família humilde. E a diferença patrimonial ao longo do casamento apenas se agrava: enquanto um acumula bens em seu nome por decorrência de sua atividade profissional, o outro é obrigado a se manter em casa, responsável pelas questões domésticas e pelos cuidados aos filhos.

Agora, imagine que este mesmo casal, depois de dez anos juntos, resolve se divorciar. Por imposição do regime de separação de bens, a regra é a de que não haja patrimônio comum entre os cônjuges a se apurar pelo fim do matrimônio. Logo, o que foi amealhado pelo cônjuge abastado será exclusivamente seu (incrementando ainda mais o seu acervo patrimonial); por outro lado, o cônjuge que se manteve a cuidar da casa e da prole sairá em uma condição financeira ainda pior, já que, para além de não ter tido condições de acumular qualquer mínimo conjunto patrimonial que o sustente, estará afastado do mercado de trabalho por longo período, dificultando sobremaneira o seu reingresso. E isso, ainda, sem contar com o fato de nunca ter sido diretamente remunerado pelo árduo trabalho dedicado aos cuidados intrafamiliares.
Neste caso, é possível que se fixem “alimentos compensatórios”, ou seja, uma renda voltada a equilibrar a disparidade econômica gerada pelo fim do casamento. Mais que isso, trata-se de um pagamento voltado a remunerar o serviço doméstico – que, via de regra exercido pelo público feminino, é menosprezado e não considerado relevante para a própria composição do ambiente familiar. Esta compensação pode ser dar por meio de uma renda única ou mesmo pela via de pagamentos periódicos, tudo sempre voltado a reduzir o abismo patrimonial gerado.
Este contexto – bastante comum, notadamente com as mulheres ocupando esta condição de vulnerabilidade financeira, resumidas aos afazeres domésticos e, por isso, privadas de qualquer oportunidade de evolução patrimonial – faz gerar duas questões elementares: (1) uma necessidade premente de sustento do cônjuge “domesticado”, que, a partir do divórcio, deixará de apresentar condições de atender de modo autônomo às suas precisões; (2) uma disparidade econômica sensível entre os cônjuges, já que, apesar de ter contribuído bastante à manutenção da família por meio do emprego dos cuidados à casa e à prole, o cônjuge que não teve oportunidade de trabalho não terá acumulado patrimônio e, ainda, será afastado de qualquer comunicabilidade patrimonial por imposição do regime de separação total de bens. E para cada uma destas situações há um remédio jurídico próprio: para o primeiro, a pensão alimentícia; para o segundo, os alimentos compensatórios.
Ainda que ambos os institutos tenham uma nomenclatura atrelada aos alimentos, é certo que cada uma das figuras apresenta sentido e propósito distintos. A prestação compensatória não se confunde com pensão alimentícia: esta serve para atender necessidades imediatas de sustento e manutenção; aquela se volta a equacionar padrões socioeconômicos dispares. Inclusive, por conta de suas particularidades diversas, é possível, por exemplo, que se cumulem pedidos de pensionamento e de compensação, quando ambos os cenários (de hipossuficiência alimentícia e de disparidade patrimonial) estiverem concretizados – tal qual ocorrido na situação concreta narrada no início deste estudo. Dito em outros termos, como arremate sobre os alimentos compensatórios, tem-se que “o propósito da pensão compensatória é indenizar por algum tempo ou não o desequilíbrio econômico causado pela repentina redução do padrão socioeconômico do cônjuge desprovido de bens e meação, sem pretender a igualdade econômica do casal que desfez sua relação, mas que procura reduzir os efeitos deletérios surgidos da súbita indigência social, causada pela ausência de recursos pessoais, quando todos os ingressos eram mantidos pelo parceiro” [1].
A análise aqui proposta repousará exclusivamente sobre os alimentos compensatórios. Mais que isso, sobre a proposta de reforma do Código Civil (idealizada pelo Projeto de Lei nº 04/2025, atualmente em trâmite no Congresso Nacional), que, dentre as incontáveis modificações trazidas, a a prever de forma expressa a figura da compensação pelo trabalho realizado em favor da família e pelo cuidado dedicado à prole. Trata-se da nova potencial redação do par. 2º, do artigo 1.688 do CC/02: a partir desta previsão, em caso de casamento sob regime de separação de bens, “o trabalho realizado na residência da família e os cuidados com a prole, quando houver, darão direito a obter uma compensação que o juiz fixará, na falta de acordo, ao tempo da extinção da entidade familiar”.
Atualmente, o tema é renegado ao âmbito dos tribunais, que têm de dar conta da questão por meio jurisprudencial. E, de certa forma, fazem-no de forma bastante lúcida, definindo, por exemplo, que o grande mote é o de corrigir “abrupta alteração do padrão de vida do cônjuge desprovido de bens e de meação”, ou seja, “restaurar o equilíbrio econômico e financeiro rompido com a dissolução do casamento” [2].

De todo modo, ainda que já haja uma repercussão judicial dos alimentos compensatórios, a modificação legislativa – se aprovada – será de extrema valia, na medida em que atribuirá ainda mais relevância ao trabalho doméstico e ao tempo de dedicação aos filhos. Tem-se a falsa impressão de se tratar de um serviço meramente apêndice, sem maior importância, quando, na verdade, está-se diante de uma atuação de extremo valor à própria manutenção do ambiente familiar.
O quatum do serviço doméstico
A revolução intentada pela reforma do Código Civil, neste particular, então – para além de positivar a compensação pelo desequilíbrio patrimonial derivado do fim de um casamento celebrado sob o regime da separação de bens –, é o de jogar luzes sobre a relevância do cuidado, em especial do cuidado feminino.
Estatisticamente, as mulheres dedicam, em média, quatro vezes e meia mais horas em trabalhos domésticos que os homens [3], o que, de modo direto, impacta nas condições de composição de uma renda autônoma extradomiciliar ao público feminino. É certo reconhecer, portanto, que “a dedicação das mulheres aos afazeres domésticos é muito mais sensível às determinações de classe do que a dos homens, cuja identidade de gênero é fortemente construída pela distância que se mantém da esfera doméstica”[4]. Precisamente por isso, a previsão legal de estabelecer, no regime de separação total de bens, uma compensação “[a]o trabalho realizado na residência da família e os cuidados com a prole, quando houver” é salutar e digna de relevo: em uma única tacada, busca-se escancarar a disparidade da responsabilização pelos atos domiciliares de cuidado – eminentemente femininos –, sem descurar da necessidade de se equacionar desequilíbrios patrimoniais causados precisamente por esta hiper-responsabilização das mulheres no âmbito intradomiciliar (que as alija da prosperidade extradomiciliar).
Os desafios futuros do tema serão da ordem da quantificação do pagamento compensatório – que imporá uma análise detida de todas as peculiaridades dos casos repercutidos. Como visto, apesar de o PL 4/2025 propor esta sensível mudança ainda deixa aberto o debate sobre o quatum do serviço doméstico; adicionalmente, mantém inconclusivas as balizas sobre os parâmetros de equilibro patrimonial pós-divórcio (ainda mais quando o entendimento jurisprudencial se finca no sentido de que, em que pese a proposta dos alimentos compensatórios seja a de superar discrepâncias, a fixação dos valores deve se dar “sem, no entanto, a pretensão de igualar economicamente os ex-cônjuges” [5]).
De qualquer modo, a proposta de modificação do Código Civil, neste particular, já demonstra um avanço sensível no tema. A conscientização sobre o assunto – com a adoção formal, pelo texto legal, da proposta de compensação do cônjuge que, em virtude de sua dedicação aos cuidados da família, é penalizado patrimonialmente – demonstra que os ventos estão soprando alvissareiros novos tempos. Tempos em que a dignidade humana é protagonista; tempo em que os cuidadores também são cuidados.
Bibliografia
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Https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/166998
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STJ – REsp: 1290313 AL 2011/0236970-2, Relator.: Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, Data de Julgamento: 12/11/2013, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 07/11/2014.
[1] MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 952.
[2] STJ – REsp: 1290313 AL 2011/0236970-2, Relator.: Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, Data de Julgamento: 12/11/2013, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 07/11/2014.
[3] SORJ, Bila; FONTES, Adriana. O care como um regime estratificado: implicações de gênero e classe social. In: Cuidado e Cuidadoras: As várias faces do trabalho do care, 2013. Org.: Helena Sumiko Hirata; Nadya Araujo Guimarães. São Paulo: Atlas, 2012, p. 114.
[4] SORJ, Bila; FONTES, Adriana. O care como um regime estratificado: implicações de gênero e classe social. In: Cuidado e Cuidadoras: As várias faces do trabalho do care, 2013. Org.: Helena Sumiko Hirata; Nadya Araujo Guimarães. São Paulo: Atlas, 2012, p. 113.
[5] STJ – REsp: 1290313 AL 2011/0236970-2, Relator.: Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, Data de Julgamento: 12/11/2013, T4 – QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 07/11/2014.
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