Para o TST, não basta ter a última palavra; é preciso ter a primeira
3 de abril de 2025, 8h00
1. O TST e seu papel de Tribunal de Precedentes
Recentemente, o Tribunal Superior do Trabalho aprovou 21 novas teses vinculantes em uma única sessão [1]. Após um aperfeiçoamento de redação, tais “teses” incluem textos como:
“Não configura cerceio de defesa o ato de indeferir o adiamento da audiência una ou de instrução quando a parte, intimada previamente, não apresenta o rol de testemunhas, tampouco, diante da previsão de comparecimento espontâneo (artigo 825, caput, da CLT), justifica a ausência.”
“A ausência ou irregularidade no recolhimento dos depósitos de FGTS caracteriza descumprimento de obrigação contratual, nos termos do artigo 483, ‘d’, da CLT, suficiente para configurar a rescisão indireta do contrato de trabalho, sendo desnecessário o requisito da imediatidade.”
As falas do presidente do TST revelam muito sobre a postura do Poder Judiciário atualmente e merecem o devido destaque:
“Foi uma sessão histórica, no sentido de qualificar a jurisprudência, de modo que o tribunal seja uma corte de precedentes, e não de rejulgamento das instâncias anteriores. É necessário que o TST uniformize sua jurisprudência, indicando as teses que solucionam os conflitos de interesse.
(…)
O TST deve sinalizar a interpretação da lei, de modo que haja o cumprimento pelas instâncias de primeiro grau e dos Tribunais Regionais do Trabalho. Deve haver precedentes que impeçam a multiplicidade de recursos“ [2].
É evidente o alinhamento do ministro à teoria precedentalista, pela qual os tribunais superiores são “Cortes de Precedentes”. Sinto informar, mas não há essa previsão na Constituição. O que fazem os tribunais, sem autorização sistêmico-constitucional? Simplesmente fazem teses que vão além dos casos decididos. Portanto, o que fazem — e vamos dar às coisas os nomes que elas têm, em um país em que olhamos as coisas de soslaio — são verdadeiras leis gerais e abstratas. A doutrina sabe disso e fica silente. Ou finge que não sabe. Poucos doutrinadores se insurgem. Nunca se escreveu tantos livros sobre precedentes como no Brasil — sem que se diga ou se saiba o que é precedente. Nem no common law há tantos livros sobre precedentes.
Se o Parlamento não estivesse preocupado permanentemente em elaborar emendas impositivas e/ou secretas, prestaria atenção a uma função sua de antigamente: a de legislar. Como o parlamento descuida de sua função, o Judiciário assume o lugar. Não há espaços vazios de poder, já se disse.
E o presidente do TST, em entrevista, disse que pretende aprovar mais teses até o final da sua gestão, promovendo um “estoque de precedentes”. Não, a frase não é minha. O jurista Daniel Mitidiero foi quem disse que a função dos Tribunais de Precedentes é elaborar “estoque de normas” (ler aqui).
Ou seja, elaborar mais teses quer dizer “elaborar mais novas leis”. Na verdade, super leis, porque as leis ainda podem ser interpretadas. Já as teses, ditas precedentes, não. Explico essa afirmativa usando Mitidiero, que cito no meu Precedentes Judiciais e Hermenêutica: o Sentido da Vinculação no C/2015 [3]. Refiro-me ao seguinte texto:
“(…) tendo a interpretação da Corte Suprema valor em si mesma, sendo o móvel que legitima sua existência e outorga sua função, eventual dissenso na sua observância pelos seus próprios membros ou por outros órgãos jurisdicionais é encarado como um fato grave, como um desrespeito e um ato de rebeldia diante da sua autoridade, que deve ser evitado e, sendo o caso, prontamente eliminado pelo sistema jurídico e pela sua própria atuação” [4].
Compreender que o entendimento do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça (e, por extensão, do Tribunal Superior do Trabalho) tem um valor em si mesmo e classificar interpretações divergentes como atos de rebeldia (portanto, os juízes e tribunais de piso) revela as inegáveis raízes realistas (direito é o que os tribunais dizem que é) da tese de Mitidiero. Mas é uma forma peculiar de realismo: direito é apenas o que os tribunais superiores dizem que é. Os demais magistrados do sistema não podem desobedecer. Aliás, não têm nem o direito de interpretar, o que fica claro na afirmação de Mitidiero, Marinoni e Arenhard:
“os juízes e tribunais interpretam para decidir, mas não existem para interpretar; a função de atribuição de sentido ao direto ou de interpretação é reservada às Cortes Supremas”.
E mais:
“No momento em que os juízes e tribunais interpretam para resolver os casos, colaboram para o acúmulo e a discussão de razões em torno do significado do texto legal, mas, depois da decisão interpretativa elaborada para atribuir sentido ao direito, estão obrigados perante o precedente“ [5] (grifos meus).
Para registro, o precedentalismo baseia suas posições no fato de que o direito seria indeterminado e, assim, quem deve determinar o seu conteúdo é o Judiciário, por meio das Cortes de Vértice (ou Cortes de Precedentes). Os tribunais assumiram – e assimilaram – muito bem essa tese. Minhas críticas a essa tese cética estão postas em vários textos (ver desde textos mais antigos como a trilogia do cego de Paris – I, II e parte final – para tratar de falácias da dogmática jurídica como a verdade real, até textos mais recentes e específicos sobre o tema dos precedentes). Não as repetirei. Apenas registro que críticos do direito como Alexandre Morais da Rosa e Aury Lopes Jr trabalham (bem) a temática dos precedentes, mas não se insurgem contra o realismo jurídico e seus efeitos colaterais deletérios. Trabalham os precedentes inclusive com IA (veja-se a coluna). Nada dizem com relação às teses precedentalistas, que transferem aos tribunais o papel de legislador. Minha pergunta: é democrático que tribunais façam teses gerais e abstratas, a exemplo daquilo que ocorria com os assentos portugueses, em além-mar declarados inconstitucionais após o advento da Constituição de 1976?
2. Concordo com a busca por segurança jurídica; porém, esse poder dos tribunais superiores é autônomo e ilimitado?
A busca por segurança jurídica é plenamente justificada. Aliás, foi nesse sentido que lutei para incluir no C-2015 o artigo 926, que trata da coerência, integridade e estabilidade das decisões. Porém, se o sentido das leis é estipulado, por ato de vontade, pelos tribunais superiores, não há coerência e integridade. Não se impõem sentidos de cima para baixo. O precedente jamais pode ser um valor em si, como propõem os precedentalistas.
Sigo, ainda usando as palavras dos autores: cabe às cortes supremas/de vértice definir o sentido do direito, com a “última palavra” sobre a interpretação possível, num “(…) ato que produz algo autônomo em relação à lei, agregando substância à ordem jurídica (…)”. Não discordo que os tribunais superiores têm a última palavra. Mas não qualquer palavra. Jamais autônoma em relação às leis.
Observe-se o detalhe: “produz algo autônomo”, com o que se pode entendê-lo como um “ato de vontade”, pelo qual o Tribunal pode, inclusive, ir além da lei (afinal, o ato do Tribunal é autônomo em relação à própria lei). E segue Marinoni: sob esta ótica: “os juízes colaboram para a atribuição de sentido ao direito até o momento em que a Corte Suprema dá a ‘última palavra’”.
Despois disso: “[…] não lhes cabe [aos juízes] atribuir sentido ao direito, mas apenas resolver os casos conflitivos de acordo com o direito, inclusive com o direito pronunciado pelas Cortes Supremas” [6].

Ou seja, juízes ficam proibidos de interpretar, porque têm de aplicar mecanicamente o precedente (observe-se que foi essa mecanicidade que implodiu o positivismo do século 19 nas suas três vertentes: o pandectismo, o exegetismo e a jurisprudência analítica). Juízes são, assim, a boca dos precedentes originários das Cortes de Precedentes. Tudo isso que afirmo é nos exatos termos escritos pelos autores aqui referidos. Com muito cuidado, cada palavra foi citada sem tirar do contexto. É ipsis litteris.
As posições de Marinoni e Mitidiero criticadas aqui e em outros textos meus evidenciam dois elementos:
(i) primeiro, a contradição de querer importar a stare decisis sem se referir a casos anteriores, mas por meio de enunciados normativos voltados para o futuro (até mesmo os juízes, depois de fixado o sentido, ficam proibidos de interpretar);
(ii) segundo, o amparo na tese cética da indeterminabilidade (equivocidade) ao definir o direito como aquilo que os tribunais dizem que é. Fundamental aqui trazer a lição de García Figueroa, quando diz que, na atualidade, parece haver uma espécie de realismo jurídico inconsciente na “motivação” dos juízes nos processos judiciais (no caso aqui referido, o realismo jurídico é explícito). Mas, o mais grave: a crítica de Figueroa é ao realismo “em geral”, do tipo criticado por autores que se colocam contra os juízes criarem direito. Na verdade, no Brasil o realismo é de segundo nível: ele é praticado e é privilégio dos tribunais superiores. Está, assim, para além das críticas de Figueroa, Rüthers e outros.
Os objetivos da posição precedentalista incluem impedir recursos, transformando o sistema jurídico em processos e direitos avaliados sob um prisma meramente quantitativo. É a partir da autoridade das cortes supremas no aperfeiçoamento do ordenamento jurídico e da imposição de obstáculos à interpretação pelos demais órgãos jurisdicionais que se visa a resolver os conflitos examinados pelo judiciário.
Retomando as falas do presidente do Tribunal Superior do Trabalho, seu alinhamento ao referido objetivo não poderia ficar mais claro, pois sustentou expressamente que: “Deve haver precedentes que impeçam a multiplicidade de recursos”. E a doutrina, que deveria doutrinar, não tem nada a dizer sobre isso?
Como fica o o à justiça, se o direito sequer pode ser interpretado pelos juízes e tribunais inferiores?
Nessa história, a qualidade da fundamentação das decisões judiciais fica em segundo plano quando se trata de gerenciar o ivo de processos. Minhas posições sobre isso estão registradas de há muito. A ConJur tem sido um local para fincar as bases de uma resistência.
Na sequência, mostro como minhas críticas podem auxiliar para demonstrar os problemas e prejuízos que os precedentalismo do TST trazem à prática da Justiça do Trabalho.
3. Começo por demonstrar como a lei era (é) ‘mais sábia’ que o ‘precedente’ aprovado pelo TST
No tema que trata da perda da prova testemunhal – quando a parte, intimada previamente, não apresenta o rol ou não leva as testemunhas espontaneamente à audiência, sem justificar o não comparecimento –, o TST fixou, de antemão, que não haverá cerceamento de defesa quando a decisão indeferir o adiamento da audiência (una ou de instrução). Afora o escopo eficientista da solução – que busca celeridade em detrimento da garantia da ampla defesa –, é inevitável que a multiplicidade de situações processuais escapem da pretensa completude do enunciado – v.g. quando algum imprevisto posteriormente comprovado justifica o não comparecimento da testemunha; ou, como sabem os que militam na Justiça do Trabalho, quando a testemunha diz que vai e não comparece, entre tantas outras hipóteses.
O enunciado ressalvou os casos de “justificativa” para o não comparecimento da testemunha – o que poderia motivar, contrario sensu, o adiamento da audiência, mas a tese não prevê (e nem poderia prever) exceções claras.
É preciso dizer que uma (genuína) cultura de precedentes não torna o leading case autônomo das premissas que lhe deram e. No common law, para compreender o princípio da decisão (holding), é preciso olhar as premissas fático-jurídicas do caso concreto.
Na hipótese que gestou o precedente no âmbito do TST, o acórdão do TRT-17 fez alusão ao artigo 825 e § único da CLT, cujo texto, por si só, resolvia o problema em sentido contrário à “tese”. Confira-se: “Art. 825. As testemunhas comparecerão a audiência independentemente de notificação ou intimação. Parágrafo único – As que não comparecerem serão intimadas, ex officio ou a requerimento da parte, ficando sujeitas a condução coercitiva, além das penalidades do art. 730, caso, sem motivo justificado, não atendam à intimação”.
Porém, havia uma peculiaridade no processo (e pela facticidade, sempre haverá particularidades no caso concreto): o juiz tinha determinado o comparecimento das testemunhas independentemente de intimação ou a apresentação do rol, sob pena de perda da prova. Por esse motivo, o TRT-17 rejeitou a anulação do processo, embora a parte tivesse juntado um convite à testemunha, depois da audiência.
O recurso foi itido por possível violação do artigo 825, caput e parágrafo único, da CLT, mas o TST rejeitou a revista e editou a “tese” já citada.
Como visto, a lei era (é) “mais sábia” que o precedente. Melhor seria não haver a “tese”, para que, à luz de cada caso concreto, o juiz fizesse aplicação adequada do artigo 825 da CLT. Por isso, a solução para um problema se torna um problema da solução, sem trazer segurança jurídica. As próprias teses agora aprovadas precisam ser objeto de interpretação(!).
4. De como a complexidade dos casos não cabe no precedente. Sobre rescisão indireta do contrato de trabalho: de novo, a legislação é mais sábia
Sobre a rescisão indireta por irregularidade do FGTS: a “tese” exclui o pressuposto da “imediatidade” e torna pressuposta a falta grave do empregador. Portanto, bastariam alguns dias de atraso no recolhimento do FGTS para configurar a falta grave da empresa? Regularizados os depósitos, o motivo manteria os efeitos, já que a tese não exige atualidade?
É sabido que a rescisão indireta está condicionada à inexecução faltosa do empregador para ruptura do contrato. A denúncia cheia tem pressupostos doutrinários que se fixaram ao longo do tempo; camadas de sentido foram sendo adicionadas para chegar-se ao entendimento do que configura a “falta grave”. Pela natureza contínua e sucessiva do contrato de trabalho, há um certo consenso doutrinário de que a reação (seja do empregado, seja do empregador) seja imediata: fala-se, pois, na atualidade da falta; não é possível “guardar” a penalidade para suscitá-la quando aprouver a qualquer um dos contratantes, porque a tolerância tende a configurar o chamado perdão tácito [7].
Voltando à “tese”: a “irregularidade no recolhimento de FGTS” abrange simples atraso nos depósitos ou essa hipótese constitui mera infração venial (como sugere Wagner D. Giglio)? Quantos meses de não pagamento para configurar a falta grave? Basta o atraso de um único mês? E se tiver havido prescrição, conforme a Súmula 362 do TST, a “tese” se aplica?
5. Uma pirâmide de conceitos? E esses valem mais do que as leis?
Enfim, os problemas se multiplicam. A criação de “teses” repristina a velha jurisprudência dos conceitos do século 19 (Alemanha), porque a ideia do pandectismo era criar uma pirâmide de conceitos [8]. Enquanto a hermenêutica aposta na primazia da pergunta, as teses precedentalistas preferem as respostas, à espera de acoplamentos. Herança de um raciocínio binário (cabe na tese x não cabe na tese), desconsiderando que somente na applicatio, à luz da facticidade do caso concreto, a resposta correta pode construída e encontrada.
Numa palavra final: ao aderir às teses precedentalistas ou ao “commonlismo brasileiro”, a Justiça do Trabalho vai no caminho antissistêmico pelo qual é possível a seguinte leitura: não basta querer ter a última palavra; o Judiciário também quer ter a primeira. Mesmo que as leis e a tradição digam o contrário.
E, afinal, o que sobra(rá) para a doutrina?
[1] O prof. André Molina escreveu excelente texto sobre o tema aqui na ConJur. O problema é que Molina perdeu a oportunidade de fazer uma crítica ao realismo jurídico – omissão presente em muitos outros juristas brasileiros – e ao precedentalismo (além de deixar de fazer breve revisão bibliográfica sobre a matéria). Também ficou devendo uma crítica ao modo como são elaboradas para o futuro as teses (afinal, são precedentes?) no Brasil, na contramão do restante do mundo.
[2] /2025-fev-26/regra-do-tst-para-repetitivos-e-aposta-em-teses-devem-resultar-em-seguranca-juridica-e-celeridade/
[3] STRECK, Lenio Luiz. Precedentes judiciais e hermenêutica: o sentido da vinculação no C/2015. 3. ed. Salvador: JusPodivm, 2021.
[4] MITIDIERO, Daniel. Cortes Superiores e Cortes Supremas: do controle à interpretação, da jurisprudência ao precedente. 3. ed. revista atualizada e ampliada. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2017. p. 81.
[5] MARINONI, Luiz Guilherme. MITIDIERO, Daniel. ARENHART, Sérgio Cruz. O novo processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 105.
[6] MARINONI, Luiz Guilherme. A ética dos precedentes: justificativa do novo C. 3. ed. rev. atual. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018. p. 107-109.
[7] MARANHÃO, Délio. Instituições de Direito do Trabalho. 19ª ed., vol. 1 – São Paulo: LTr, 2000, p. 577-578. No mesmo sentido: GIGLIO, Wagner D. – Justa causa. 5ª ed. – São Paulo: LTr, 1994, p. 338.
[8] RAMIRES, Maurício – Crítica à aplicação dos precedentes no direito brasileiro – Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2010, p. 47.
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