O Grande Inquisidor, de Fiódor Dostoiévski
6 de abril de 2025, 8h05
O Grande Inquisidor, de Fiódor Dostoiévski (1821-1881) pode ser lido em impressionante agem de Os Irmãos Karamázov. Também foi publicado como conto. É como lemos na Coletânea de Contos Russos da Editora 34, que reúne narrativas curtas de Puchkin, Gogol, Tourgueniev, Tolstói, Tchekhov, entre tantos outros. Desse livro, comento aqui O Grande Inquisidor, na tradução de Paulo Bezerra, tirada diretamente do russo. Já se foi o tempo em que (nós que não sabemos russo) líamos os russos na versão brasileira de tradutores ses. Eram outros tempos.
O Grande Inquisidor, emblemático fragmento da literatura russa, suscita reflexões teológicas, a propósito da volta de Cristo e de sua recepção pelo cristianismo oficial. É o tema da “parúsia”, ou do segundo advento. Provoca também reflexões sobre questões complexas de Ciência Política (os limites e o escopo do poder da Igreja no ambiente secular), de Teoria Literária (o narrador, Ivan Karamázov, discute com o irmão sobre a construção de um poema em forma de prosa), de História (o permanente dilema do presenteísmo e do anacronismo) e de Direito Constitucional (os limites da intolerância, por parte do poder constituído).
De acordo com o insuspeito Vladimir Nabokov, “Os Irmãos Karamázov é o exemplo mais perfeito da técnica de história policial constantemente empregada por Dostoiévski em seus outros romances”; nesse sentido, o Grande Inquisidor não deixa de ser um enigma espiritual e filosófico. As pistas não conduzem à resolução de um crime, mas à problematização das tensões entre fé autêntica e religiosidade institucionalizada, entre liberdade e obediência cega, entre o humano e o divino.
O Inquisidor age como um detetive invertido: investiga para condenar, já partindo da certeza de sua verdade. O leitor conhece essa prática judiciária e não vê muita novidade nisso. Cristo, por sua vez, no contexto dessa parábola (porque esse conto é também uma parábola), representa o mistério último, que não se deixa decifrar por palavras, mas que se impõe com o gesto silencioso do amor.
Ivan (o narrador) justifica para o irmão (Aliocha) que a presença de personagens religiosos (inclusive do Velho Testamento) é recorrente na tradição literária. No limite, e a constatação é um fato incontestável, a par de palavra revelada, os textos canônicos são de deslumbrante qualidade literária; confira o leitor, por exemplo, com Eclesiastes, 3, meu fragmento bíblico favorito.
O narrador centra seu poema (em forma de prosa) na Espanha, mais exatamente em Sevilha, no mais temível tempo da Inquisição. Para o narrador, “pela glória de Deus, as fogueiras ardiam diariamente no país”. Jesus Cristo queria visitar seus filhos, e queria encontrá-los, justamente onde estalavam as fogueiras dos hereges. Quando Cristo caminha incognitamente pela cidade, a multidão o reconhece. Ocorre uma sequência de milagres. Reproduz-se a cena neotestamentária na qual Jesus ressuscita a filha de Jairo. Uma menina é ressuscitada. Retoma-se a clássica agem: “Talita cume!”; “Levanta-te menina!”.
O cardeal inquisidor enfureceu-se quando percebeu que a multidão em júbilo comemorava a volta do Salvador. Com um ódio funesto ordenou que os soldados prendessem Jesus. A multidão ajoelhou-se perante o Inquisidor e aceitou a resolução. Era acostumada ao poder incontestável daquela autoridade máxima, o que parece contraditório: é que o chefe da Igreja tinha mais poder do que a própria Igreja, ainda que essa última fosse a verdadeira materialização da mensagem de esperança e salvação.
O Inquisidor visitou Jesus em sua cela. Cristo está preso! Ainda colérico o Inquisidor pergunta: “Por que vieste me atrapalhar?” Esbravejou. Disse que no dia seguinte julgaria Jesus (como herege e blasfemo) e que o queimaria na fogueira como o mais perverso dos hereges. O povo, que momentos antes saudava o Salvador, levaria a lenha da fogueira. O Inquisidor é quem comandava a multidão.
Segue um monólogo perturbador. O Inquisidor lembra que os crentes são rebeldes, mas que, como crianças, são rebeldes que aguentam a própria rebeldia. Lembrou que há tempos a religião não estava mais com ele, o Jesus que ali estava; a religião e a multidão estavam com um outro Jesus, que estava nas pregações e nas verdades da Igreja.
Jesus, calado, tudo ouvia. O Inquisidor se incomodou e perguntou: “Por que achaste de aparecer agora para nos atrapalhar? E por que me fitas calado com esse olhar dócil e penetrante?”. O Inquisidor insistiu que era mais poderoso do que Cristo e que no dia seguinte o queimaria.
Jesus nada disse. Simplesmente, levantou-se e beijou o Inquisidor. Este último, desconcertado, sentiu que aquele beijo lhe ardeu no coração. Ainda mais enfurecido, ordenou que Cristo se afastasse e que não volte nunca mais.
A força simbólica dessa narrativa repousa justamente no contraste entre a arrogância do poder constituído — aqui encarnado no Inquisidor, senhor absoluto da fé institucionalizada — e a serenidade inabalável de Jesus, que, sem proferir uma só palavra, impõe sua presença com um gesto de amor desconcertante.
A autoridade que deveria proteger a doutrina transforma-se em instrumento de opressão, distorcendo a fé para fins de controle. A dureza do Inquisidor não se sustenta diante da mansidão de Cristo, cujo silêncio denuncia, com mais potência do que a força de mil discursos, a falência moral de um poder que se afirma em nome d’Ele, mas que atua contra Ele.
Dostoiévski, ao que consta, era profundamente religioso. Penso que criticou a estrutura hierárquica da Igreja. Meditou sobre o livre-arbítrio, a verdade e a fé. O beijo de Cristo, gesto sereno e eterno, é a síntese dessa mensagem que atravessa os séculos: mesmo diante da tirania travestida de santidade, o amor resiste.
A beleza e a profundidade desse texto revelam mensagem perene — de enfrentamento ao autoritarismo e de fidelidade à compaixão — que continua a ecoar, viva, onde quer que ainda se acredite na liberdade do espírito humano. Uma das mais belas páginas da literatura russa.
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