Opinião

O raciocínio judicial na absolvição de Daniel Alves na Espanha

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6 de abril de 2025, 9h20

Após a publicação da sentença de apelação que absolveu o ex-jogador Daniel Alves do crime de agressão sexual, desencadeou-se uma grande controvérsia na Espanha. Diversas organizações e até mesmo alguns juristas manifestaram-se de forma incisiva, sustentando que, em casos de delitos sexuais, deve haver uma confiança maior na vítima, recorrendo ao conhecido lema “Eu acredito em ti”. No entanto, o mais preocupante é perceber que figuras com cargos políticos relevantes priorizam essa credibilidade em detrimento da presunção de inocência, princípio que protege todo indivíduo submetido a um processo penal. Ademais, tudo isso ocorre sem haver uma leitura atenta da sentença criticada.

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Antes de redigir este artigo, li a sentença em questão por três vezes, dando ênfase especial ao raciocínio probatório realizado, que é o cerne do caso. Fica evidente que esse raciocínio e o próprio julgamento perderiam sentido caso nossa sociedade tomasse a decisão política de, em situações de agressão sexual, considerar suficiente para a condenação criminal a mera denúncia da suposta vítima bastaria. Essa seria a consequência extrema do “Eu acredito em ti”. No entanto, no âmbito do direito penal, não se pode condenar uma pessoa unicamente com base em uma denúncia, ainda que esta seja coerente e plausível. São necessárias provas que corroborem, em um grau justificado de suficiência (embora nunca uma certeza absoluta), que os fatos ocorreram conforme relatado pela denunciante.

Apesar de haver, majoritariamente, em nossa cultura jurídica posição contrária, o fato de algo ser considerado provado em um processo judicial, não depende do convencimento subjetivo dos juízes sobre a veracidade do depoimento de uma parte ou outra. Sustentar o contrário equivale a adotar uma concepção subjetivista ou persuasiva da prova, o que seria incompatível com o devido processo legal. O que realmente importa é se as provas aportadas no processo corroboram suficientemente a hipótese de ocorrência de delito (coincidente, neste caso, com o relato da denunciante). Para tanto, é essencial avaliar a confiabilidade de cada prova, determinar o grau de corroboração da hipótese e, finalmente, justificar se tal grau é suficiente, conforme o standard probatório aplicável, exigível para afastar a presunção de inocência. Esses os são devidamente detalhados na sentença de apelação, especialmente contido no fundamento jurídico 6.10.1.

Algumas das críticas direcionadas à sentença basearam-se na visão subjetivista da prova, argumentando que o tribunal de apelação não presenciou diretamente a realização das provas e, portanto, deveria ser deferente à avaliação feita pelos juízes de primeira instância, que tiveram o direto às provas testemunhais, periciais, entre outras. Todavia, qual a razão epistêmica para essa suposta primazia epistêmica do julgador de primeira instância?

A explicação dada, geralmente, é a de que o contato direto com as provas testemunhais e periciais favorece aspectos relevantes da valoração judicial, como a comunicação não verbal das pessoas ouvidas, o que é importante para a credibilidade do testemunho. Sem embargos, as melhores evidências científicas demonstram que não há elementos concretos identificadores de verdade ou falsidade a partir dessa comunicação não verbal.

A sentença de Daniel Alves afirma corretamente que o relevante não é se o julgador crê ou não no que disse a testemunha, senão a fiabilidade do que essa pessoa afirma.  O primeiro é, de novo, subjetivo; o segundo depende da coerência do relato, da sua compatibilidade para com os conhecimentos afiançáveis a respeito e, a sua relação com as demais provas do processo. Todos esses critérios podem, a sua vez, serem controlados em segunda instância, especialmente, graças ao o judicial das gravações de vídeo apresentadas em juízo e da avaliação das provas documentais e periciais havidas.

Apoio probatório suficiente

Com tudo isso, deve arguir-se se a hipótese acusatória tem um grau de confirmação probatória tal que permita superar as exigências do standard de prova exigível para a condenação. Esse standard foi formulado com bastante precisão pelo Tribunal Supremo, nas sentenças 136/2022, de 16 de fevereiro, e 23/2023, de 20 de janeiro.

De acordo com essa jurisprudência, — que desafortunadamente não é estável no próprio Tribunal — uma hipótese acusatória não está em condições de derrotar a presunção de inocência se:

Se não é capaz de explicar os dados disponíveis sobre os fatos aportados no processo por provas que foram consideradas fiáveis, integrando-as de forma coerente;
Se os fatos considerados provados por meio de provas reputadas fiáveis são compatíveis, não só com a hipótese acusatória, ademais com outras plausíveis, que são mais favoráveis ao acusado;
Se os fatos considerados provados são compatíveis com a hipótese formulada pela defesa, que goza igualmente de provas exculpatórias em seu favor.

Uma formulação substancialmente equivalente, todavia com elementos adicionais, foi apresentada no meu livro “Prueba Sin Convicción. Estándares de prueba y debido proceso” (Marcial Pons, 2021, publicado no Brasil como “Prova sem convicção. Standards de prova e devido processo”, Iuspodivm).

Sem embargos, a sentença de apelação realiza uma análise cuidadosa da fundamentação realizada na primeira instância, assim como a fiabilidade das diversas provas que foram aportadas no processo, em especial, a compatibilidade do relato da vítima com as provas disponíveis, a fim de determinar se houve corroboração.

É relevante destacar que nesse caso o acervo probatório foi significativamente mais rico, se compararmos outros casos de agressão sexual. Sabemos que Daniel Alves estava em um lugar reservado da discoteca em que ocorreram os fatos narrados, acompanhado de um amigo, e que convidaram algumas mulheres (a denunciante e duas amigas) que lá estavam. A denunciante e as amigas, em seus testemunhos, relataram que estiveram no espaço reservado à convite do ex-jogador e que havia um desconforto e incomodo, em razão da atitude “pegajosa” dos dois homens, até o ponto em que, devido à insistência deles, a denunciante temeu que pudesse ser perseguida, caso decidissem ir embora.

A denunciante decidiu entrar em um banheiro com o ex-jogador para pedir-lhe que cessassem as investidas e que lhes deixassem ir embora. Essas declarações devem ser confrontadas com outras disponíveis, em particular, as gravações das câmeras de segurança da discoteca, em que era possível verificar todo o ocorrido, até a entrada no banheiro. Pois bem, foram esses os argumentos lançados na sentença e confirmados na apelação:

“(…) No se aprecia en las cámaras que la denunciante y sus amigas se encuentren incómodas o que la denunciante no se encuentre a gusto, no acepte o no tenga voluntad de seguir la fiesta con las personas que acababa de conocer. Se la ve participar en el baile con el acusado de la misma manera que lo harían cualesquiera otras personas dispuestas a pasárselo bien. E incluso puede apreciarse que existe cierta complicidad.
De ahí que no parezca razonable la versión de la denunciante conforme a que acudió a hablar con el acusado a la zona del baño por miedo a que después de la discoteca estos chicos pudieran seguirles y hacerles algo a ella y sus amigas.” [1]

As mesmas câmeras registraram que Daniel Alves entrou no banheiro e que dois minutos mais tarde, depois de falar com suas amigas e deixar seu copo de bebida, entrou a denunciante. No banheiro, em que obviamente não havia câmeras, ocorreram os fatos denunciados como agressão sexual, consistentes em penetração vaginal não consentida. A denunciante sofreu, ademais, uma ferida (ralado) no joelho, que havia ocorrido em razão do ato sexual forçado e violento.

Destacam com razão as sentenças de primeira instancia e o acórdão de apelação que nada obsta reconhecer uma agressão, se não houver por parte dos envolvidos um consentimento expresso e continuado para a relação sexual, por mais que antes, aparentemente, pudesse haver entre eles um ambiente de descontração, inclusive, não obstante, poderia ter havido a entrada no banheiro intencionalmente, com prévia manifestação de vontade em favor da realização sexual.

Por isso, é necessário averiguar a hipótese afirmativa de ocorrência de agressão no banheiro de acordo com as provas disponíveis. Todavia, a hipótese acusatória, novamente, se apresentou insuficiente, pois em alguns aspectos se revelou contrária às provas disponíveis e, em outros, se mostrou compatível com o acervo probatório, de igual modo foram as provas defensivas, em favor da existência de consentimento.

A sentença de apelação assevera, ainda, que a sentença condenatória foi contraditória a respeito da ocorrência de sexo oral, ou não. Declarou, por um lado, não estar provado a sua ocorrência, por outro, declara provado que a ferida no joelho da denunciante foi produzida pelo acusado, ao forçar a vítima a ficar de joelhos para a prática de sexo oral. Ademais, as perícias médicas apontaram que a ferida abrasiva (ralado) no joelho era compatível com causas diversas, não sendo possível concluir que se produziu em razão de uma relação forçada.

Por outra parte, em sua declaração, a denunciante negou que realizou sexo oral no acusado, todavia, as provas de DNA realizadas com mostras de substâncias coletadas na cavidade oral, colhidas três horas depois da ocorrência dos fatos, detectaram a presença de esmegma do acusado, na boca da denunciante, o que indica, muito provavelmente, a realização de sexo oral.

Outro aspeto central que é discordante entre as hipóteses da acusação e da defesa é o local e a forma como a penetração vaginal teria ocorrido. Segundo a denunciante, o réu a sentou na pia do banheiro para realizar a penetração, mas não foram encontradas impressões digitais nesse local. Não é impossível que tenha ocorrido dessa maneira, naquele lugar sem deixar impressões digitais, mas a prova disponível não corroborou as alegações.

Contrariamente, o réu alegou que os fatos ocorreram em lugar e forma diferente: ele narrou que se sentou no vaso sanitário, a denunciante ajoelhou-se e praticou sexo oral primeiro. Depois, a denunciante havia sentado em cima dele. Essa versão foi respaldada pelo já referido teste de DNA e pelo exame datiloscópico realizado, que encontrou as impressões digitais da denunciante no vaso sanitário, havendo impressões palmares na descarga, compatíveis com uma posição alegada pelo réu (prova que foi ignorada pelo tribunal de primeira instância).

As declarações das amigas da vítima que a acompanhavam, por sua vez, não forneceram informações sobre o que ocorreu dentro do banheiro. Em muitos casos, responderam as perguntas formuladas durante o julgamento com um “não me lembro” e, em diversos aspectos relevantes de seus depoimentos sobre o ocorrido no espaço reservado (camarote), foram contraditadas pelas gravações das câmeras de segurança, cujas imagens não confirmaram as alegações. Por fim, a gravação da câmera corporal de um dos agentes policiais, que estiveram presentes para atender a ocorrência, comprova um estado de ansiedade da denunciante, o qual pode ter diversas causas e, por si só, não constitui prova dos fatos denunciados.

Em síntese, há doutrina reiterada do Tribunal Supremo espanhol, seguida de forma constante por toda a jurisprudência, que nos crimes sexuais o relato da denunciante, ainda que coerente e plausível, não é suficiente como prova para condenação. É necessário, além disso, que haja uma corroboração periférica, com base nas provas apresentadas no processo. No presente caso, contudo, as provas disponíveis não apenas não corroboram a hipótese acusatória, como também a colocam em dúvida em diversos aspectos e, em outros, há provas compatíveis com a versão do acusado.

O Tribunal de primeira instância optou por isolar a única parte dos fatos sobre a qual não há provas (a ausência de consentimento) para afirmar que, nesse ponto, o relato da denunciante seria crível. No entanto, essa foi uma inferência que não apresentou justificação racional e não se encontrou respaldada em nenhuma prova contextual sobre o ocorrido.

Nada disso implica, de forma alguma, afirmar que o relato da denunciante seja falso ou que a inocência de Daniel Alves tenha sido comprovada. O que se conclui, porém, é que o conjunto probatório disponível no processo claramente não atende ao standard de prova exigível para afastar a presunção de inocência.

Foram dirigidas algumas críticas ao acórdão de apelação, alegando que uma adequada perspectiva de gênero teria permitido interpretar de outra forma as imagens das câmeras de segurança da discoteca. De fato, é correto afirmar que as imagens de uma gravação são, muitas vezes, de difícil interpretação, assim como é verdade que não existe uma forma padronizada ou correta de reagir diante de uma agressão sexual ou quando uma mulher se sente assediada. É perfeitamente possível que ela se sinta paralisada e até mesmo “entre no jogo”, na esperança de que a situação termine o mais rápido possível. No entanto, não é fácil demonstrar tais circunstâncias em um processo judicial sem que isso se converta em uma hipótese ad hoc de impossível refutação, o que levaria à consequência de que a culpabilidade do acusado seria inferida unicamente com base no relato da vítima denunciante.

A reivindicação de que as mulheres sejam levadas a sério ao denunciar agressões sexuais é justa e deve resultar em investigações sérias e detalhadas, havendo a necessidade inafastável de se orientar mediante uma perspectiva de gênero. No entanto, para garantir um processo justo e respeitar os direitos fundamentais, é essencial que a prova dos fatos seja analisada com rigor e que o raciocínio probatório seja de alta qualidade. Em minha opinião, esse é o caso da sentença 109/2025 do Tribunal Superior de Justiça da Catalunha no caso Daniel Alves.

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[1] Tradução em português: As câmaras não deixam transparecer que a denunciante e as suas amigas estão desconfortáveis ou que está desconfortável, não quer ou não está disposta a continuar a festa com as pessoas que acabou de conhecer. Vê-se que ela participa na dança com réu da mesma forma que qualquer outra pessoa disposta a divertir-se. É possível verificar que existe certa cumplicidade.

Assim, não parece razoável a versão da denunciante de que foi falar com o réu no banheiro, com receio de que, depois, estes rapazes as seguiriam e fariam alguma coisa a ela e as suas amigas.

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