Juristocracia não é democracia
7 de abril de 2025, 11h17
Todo mundo sabe que democracia é o governo “do povo, pelo povo, para o povo”, na fórmula célebre de Abraham Lincoln. A fórmula é tão clara que nem precisa de explicações. Ela importa, portanto, que a governança seja feita pelo povo, ou seja, pelos representantes do povo, eleitos por esse povo e somente a estes.

Nossa Constituição sabe disso. Nela está: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos, ou diretamente, nos termos desta Constituição” (artigo 1º, parágrafo único). Assim, salvo a hipótese de decisão direta pelos cidadãos (o que já se fez, por exemplo, no Brasil em 1993), quem exerce a governança são apenas os eleitos, que são o presidente da República, os senadores e o deputados.
Acrescentam-se forçosamente, ao sistema democrático que a nossa Constituição adota, dois complementos necessários, que são os direitos fundamentais e a separação dos poderes. São dois elementos liberais que estão consagrados lapidarmente na Declaração sa de 1789: “Toda sociedade na qual não estão garantidos os direitos fundamentais, nem estabelecida a separação dos poderes, não tem Constituição” (artigo 16).
Esses elementos, portanto, se integram num terceiro, a Constituição, lei suprema que regula a democracia representativa.
E dela emana um desdobramento imprescindível, que é o Estado de Direito. Por este se inscrevem os princípios que regem a ação do Estado, circunscrevendo a liberdade do ser humano e resguardando sua igual natureza.
Estão ambos expressos na nossa Constituição, exatamente ao tratar “Dos direitos e garantias fundamentais”: “Ninguém será obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (artigo 5º, II) e “Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição” (artigo 5º, I). E nesse mesmo artigo se enunciam os direitos fundamentais, entre os quais está a liberdade de pensamento e sua expressão (artigo 5, IV), como se proíbe a existência de “juízo ou tribunal de exceção” (artigo 5º, XXXVII).
E não se esqueça que, obviamente, na separação de poderes, cabe ao Legislativo, de forma exclusiva, obviamente fazer leis, com a colaboração também exclusiva do Executivo. A este cabe essencialmente istrar, respeitando as leis, para assegurar o bem-estar e a segurança do povo. São ambos Poderes políticos, exercido por eleitos do povo.
O terceiro Poder é o Judiciário, que não é um Poder político, pois não é eleito. A ele cabe punir os delitos, segundo o princípio clássico: “Não há crime sem lei prévia que o defina” (Beccaria). E deve fazê-lo imparcialmente, como é inerente a um juiz digno do nome. Cabe-lhe também verificar se a governança se exerce de acordo com a Constituição, sem substituir-se aos eleitos, mas apenas anulando os atos que contrariam a Constituição.
Esse é o sistema, que, por exemplo, a Constituição de 1988 adotou para democracia brasileira [1]. Nela, a separação dos poderes e a garantia dos direitos fundamentais são consideradas “cláusulas pétreas” (artigo 60, § 4º, incisos III e IV).
Entretanto, a prática concreta de qualquer sistema pode aperfeiçoar o sistema ou deformá-lo por muitas condicionantes, como assinala a Ciência Política [2]. Esse sistema deformado é o que tecnicamente se chamaria de regime. Ou seja, o modo como de fato, num país, o modelo funciona.
Isso já viu Aristóteles há muitos séculos, quando demonstrou que formas políticas que visam ao interesse geral – monarquia, o governo de um só; aristocracia, governo dos melhores ou mais capazes; democracia, o governo pelo povo – podem degenerar e servir a interesses particulares. São essas degenerações a tirania, hoje se diria a ditadura, o governo arbitrário de um só, no seu interesse e dos seus (como o governo de Vargas, no Estado Novo, 1937/1945); a oligarquia, o governo de alguns no interesse de uma minoria; a demagogia, o governo do povo que não visa o interesse do povo, mas o de uma seção dele (e nome de demagogia significa o exercício do poder por demagogos que conquistam o poder por meio de promessas e benesses que serão desvantajosas para o povo em geral, como ocorre no hoje chamado populismo que reflete a democracia iliberal).
Na verdade, essas práticas, ou regimes, são deformações que afetam o modelo em razão de circunstâncias – como uma guerra –, de falhas no equacionamento concreto do sistema – como o excessivo número de partidos –, ou da cultura do povo que tolera jeitinhos ou vantagens a grupos – de sua experiência com bons ou maus governos, da influência de ideologias, como o marxismo, ou o fascismo. Tudo isso apontam os cientistas políticos, como Duverger bem analisa [3]. E paradoxalmente também resultam de boas intenções, comprovando o ditado de que delas “o inferno está pavimentado”.
Juristocracia
Importante dentre os regimes políticos não está apenas a chamada democracia iliberal – tão denunciada –, mas também a menos conhecida juristocracia. Esta é tão relevante que estudiosos estrangeiros e brasileiros a estudam em profundidade. Citem-se dois de reputação mundial, Ran Hirschl [4] e Martin Loughlin [5], à guisa de exemplo.
A juristocracia não é um sistema, mas um regime. E não se inclui na forma de governo democracia, e sim na forma aristotélica do governo de alguns, aristocracia ou oligarquia. É o governo de alguns em vista do interesse de alguns.
Ela não se forma na modernidade por aplicação de um sistema, mas como um regime. O modo mais frequente é desvio da democracia para um regime em que não é o povo quem decide em última instância sobre a política a ser executada, mas uma corte de juristas, daí o nome. Estes tornam, numa democracia moderna, estruturada por meio da separação de poderes, quando o supremo tribunal assume o poder também supremo.
A separação dos poderes atribui ao Judiciário e a seu supremo tribunal a função de assegurar o respeito à Constituição, não a de governar, que cabe, numa democracia, aos eleitos pelo povo.
Entretanto, pode ocorrer, e ocorre, que esse supremo poder é assumido pelo supremo tribunal, seja pela omissão, seja pela incapacidade de outros, ou até pela necessidade que sentem os seus membros de serem os guias que levarão o povo ao paraíso, e não os eleitos. Pretendem instituir um governo de sábios oniscientes — uma sofocracia, diria Platão. Eles querem evitar que os representantes do povo errem por último, mas que a sua governança não erre jamais. E essa pretensão ganha efetividade com o regime juristocrático de elite do saber (jurídico).
Esse quadro deriva de uma evolução (ou deformação) do controle de constitucionalidade — mesmo que bem delineada na Constituição. É apoiada numa doutrina – um neoconstitucionalismo — que vê nos juristas a elite suprema da nação, pois distinguem sempre sabiamente o justo do injusto, o conveniente e o inconveniente, fazem prevalecer princípios que podem ter mil legítimas interpretações — como a dignidade da pessoa humana — sobre regras adotadas por meio de seus representantes do povo. Inclusive constituintes eleitos, como se possuíssem poder constituinte permanente. Ou mesmo provocada por uma emergência como peste, o que foi a Covid, ou uma guerra.
Uma vez estabelecida, a juristocracia persiste indefinidamente, mesmo que a emergência não mais perdure. Afinal, como é lição de Montesquieu, quem tem poder sempre “vai até onde encontra limites”, pois “a própria virtude tem necessidade de limites” (Espírito das Leis, Livro XI, cap. IV). E o espírito corporativo sempre se instaura, como é da cultura humana, em qualquer instituição.
A corte constitucional, então, se erige em supremo Poder. Ela pode não só anular os atos dos demais Poderes, em face da Constituição como entende, até invocando princípios de larga abrangência. Pode fazer-lhes determinações de políticas públicas sem lhes considerar conveniência, oportunidade e meios, além de criar direitos e obrigações nas suas interpretações das leis ou da Constituição, ou suprimi-los quando assim entende. Pode até legislar, criando novos direitos e obrigações. E igualmente pode ditar o que se pode exprimir, ou não, no convívio social, o que lesa a face pública da liberdade de consciência. E instaura — diga-se o nome — censura, o que a Constituição proíbe claramente duas vezes.
Enfim, pode tudo, pois diz sempre a última palavra sobre as decisões de outros Poderes e toma decisões próprias para a qual não tem competência, segundo a Constituição. E pretendem fazê-lo, paradoxalmente, para o bem da democracia!
Com efeito, ela pode, por um simples despacho de seu presidente, pôr de parte a Constituição e apurar não só eventuais calúnias contra seus membros, mas atuar contra discursos de ódio, milícias digitais e o mais que se conceber — ou seja, plenos poderes não delimitados pela Constituição e pela lei, designando o seu Savonarola ou Torquemada que vê armas subversivas até em batons femininos. Este investiga, processa e julga quem bem quiser e especialmente quem já exerce ou exerceu mandato federal. Com efeito, ele próprio estica ou encolhe o foro privilegiado que é a sua competência constitucional. E o esticou recentemente, talvez ad hoc.
É verdade que os representantes do povo têm responsabilidade nisso, itindo modulações na interpretação de normas claras e definidas, consentindo que a corte identifique preceitos fundamentais da Constituição segundo seu sábio critério, que prevalecem sobre regras e até estados de coisas inconstitucionais, o que os habilite a formular políticas públicas que reclamam legislação e istração, conveniência e oportunidade, bem como recursos financeiros.
Tem ela também o intento de governar a livre expressão do pensamento, proibindo o que lhe parece errado ou inconveniente, mesmo que não seja criminalizado pela lei. É o que no ado se fazia, com motivação religiosa, na Inquisição, e, no regime soviético, em nome da ideologia, segundo o chefe supremo a entendia. Ambos tão criticados pelos defensores atuais da democracia e pelos muitos adeptos do comunismo que ainda hoje existem.
Ademais, como ela própria fixa de fato a sua competência, pode mudar ao sabor dos ventos a sua jurisprudência, bem como encolhê-la ou estendê-la conforme o momento. Ela assim pode, num momento, dispor que a pessoa que perde o direito a foro privilegiado, por não ser mais membro do Executivo ou do Legislativo, não está sujeito a ser perante ela processado, em matéria criminal, podendo restaurar-lhe esse benefício quando quer conservá-lo como refém.
Disso resulta a corte tornar-se um tribunal de exceção — o que é proibido pela Constituição brasileira (artigo 5º, XXXVII) –, que julga quem lhe apraz, eis que a sua competência se tornou elástica. Pode mesmo ignorar o “devido processo legal”, como está na Constituição de 1988 (artigo 5º, LIV).
Generosamente, ela ite que qualquer um dos seus integrantes possa, em despacho monocrático, fazer tudo o que ela pode, ou seja, tudo. O pretexto é a urgência, embora a Constituição exija a maioria absoluta para o controle de constitucionalidade, o que exige a Constituição brasileira (artigo 97). E nesse caso (urgente), a decisão pode aguardar a confirmação do Plenário por prazo fixado em 90 dias. Tal prazo basta para demonstrar a falta de urgência, mas se faz de conta que há uma urgência permanente.
Acrescente-se que ela fixa para ela própria a sua parte no dinheiro público que não pode ser diminuído mesmo na emergência financeira, na inflação, na impossibilidade de manter os auxílios sociais e as armas para a segurança e a defesa nacional. A sua verba é finalidade superior e inafastável.
Pode criar o que o vulgo chama de “penduricalhos para seus servidores”. E, por sua vez, nesse mesmo plano, ite que os membros do Judiciário de esfera inferior à suprema podem fixar a própria remuneração, mesmo acima de limite constitucional, que no Brasil está definido no artigo 37, XI da Constituição. Podem aumentá-la a pretexto de “verba remuneratória”, mesmo que a Constituição exija, para tanto, lei, conforme reza, no direito pátrio, o artigo 37, § 11. E isto é vantajoso porque essas verbas são excluídas do imposto sobre a renda e mesmo do imposto sobre os muito ricos. E contam sempre com a tolerância do tribunal supremo numa juristocracia. Assim, o Judiciário tem o privilégio ímpar de fixar o que percebe por mês.
Enfim a Corte Suprema pode tudo, sem qualquer exceção, como ocorre num regime ditatorial
E tudo o que ocorre é do conhecimento de todos os cidadãos do país onde impera a juristocracia. Assim, todos sabem que vivem de fato não no sistema democrático da Constituição, mas sob um regime de governo de minoria, que no caso é um regime juristocrático.
Sabe-se quando começa um juristocracia, mas não é difícil saber como termina uma juristocracia.
Num artigo jurídico, um ilustre professor de Direito Constitucional da USP aponta o caminho [6].
[2] V. Robert Dahl, Poliarchy.
[3] Maurice Duverger, Les partis politiques. Sobre isto, escrevi no livro A reconstrução da democracia.
R Ran Hirschl, Rumo à Juristocracia – As origens e consequências do novo constitucionalismo.
M Martin Louglin, Against constitutionalism, cap. 9 – Toward a Juristocracy.
[6] Roger Stiefelmann Leal, O apoio legislativo aos inquéritos de ofício no STF, JOTA, 18 jul. 2023.
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