Medidas atípicas e processo do trabalho: olhar a partir da decisão do STF na ADI 5.946 (parte 1)
8 de abril de 2025, 16h15
1. Dever jurisdicional, princípio da patrimonialidade e adoção das medidas atípicas no processo de execução

A responsabilidade patrimonial ou princípio da patrimonialidade é uma conquista histórica; revolvendo o ado, sabe-se que, por séculos, prevaleceu a regra da execução pessoal, segundo a qual o devedor inadimplente respondia com sua vida ou liberdade; [1] ela está consagrada no artigo 789 do Código de Processo Civil (C): “o devedor responde, para o cumprimento de suas obrigações, com todos os seus bens presentes e futuros, salvo as restrições estabelecidas em lei”.
Cândido Rangel Dinamarco [2] leciona que a responsabilidade patrimonial ou responsabilidade executiva é a suscetibilidade de um bem ou de todo um patrimônio a ar os efeitos da sanção executiva.
Nessa linha, o conceito de patrimônio [3], com vistas à responsabilidade a que está submetido o devedor, é a soma das coisas que têm valor pecuniário e direitos do devedor, e compreende bens móveis e imóveis, créditos e outros direitos, também expectativas. O devedor, portanto, responde com seu enlaçamento de bens sujeitos à penhorabilidade. O devedor obriga-se (vínculo pessoal); seu patrimônio responde [4] (vínculo patrimonial).
À vista do artigo 769 da CLT, Mauro Schiavi [5] aponta os requisitos para a aplicação do C ao processo do trabalho: (1) omissão da CLT (lacunas normativas, ontológica e axiológicas); compatibilidade das norma do Processo Civil com os princípios do Direito Processual do Trabalho; (2) ainda que não omissa a CLT, quando as normas do Processo Civil forem mais efetivas que a da CLT e compatíveis com os princípios do Processo do Trabalho; e, (3) ao aplicar o Código de Processo Civil ao processo do trabalho, deve o juiz avaliar a justiça e a efetividade que a regra civilista propiciará ao processo trabalhista, bem como adaptá-lo às contingências do processo.
De acordo com o citado artigo 139, incumbe ao juiz determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação de pecuniária. A “novidade” consiste na aplicação de medidas coercitivas atípicas em execuções de obrigação de pagar quantia, de que são alguns exemplos (polêmicos) colhidos da jurisprudência: apreensão de aporte, suspensão da carteira nacional de habilitação, cancelamento de cartões de crédito e proibição de participação em concursos públicos e licitações.
O aspecto social que norteia a satisfação do crédito trabalhista, o dever jurisdicional de fazer cumprir seus comandos condenatórios e a eficiência inerente ao processo do trabalho, encorajam o princípio da atipicidade dos meios executivos, possibilitando ao juiz condutor da execução certa maleabilidade do procedimento e a adoção de posturas processuais fora do catálogo legal [6] .
Contudo, ao aplicar o princípio da atipicidade dos meios executivos, o magistrado deve sopesar: (1) a efetividade da medida escolhida; (2) o comportamento das partes durante a fase executiva; (3) a dificuldade de se materializar a execução; (4) os direitos fundamentais do devedor; e, (5) os princípios da dignidade da pessoa humana, a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.
A aplicação dos meios atípicos, na fase de execução trabalhista, demanda necessária cautela e reflexão sob a óptica de temas sensíveis, alocados à margem de uma linha tênue à violação de direitos fundamentais do devedor.

Oportuno invocar o princípio da não prejudicialidade do devedor, ou “menor onerosidade”, previsto no artigo 805 do C, o qual dispõe que na hipótese de existir diversos meios para promover a execução, caberá ao Juiz percorrer por meios menos gravosos ao devedor; é imprescindível que a aplicação do meio atípico na execução trabalhista não enseje restrição onerosa e excessiva ao devedor, capaz de impedir, por exemplo, o exercício regular de sua profissão.
O princípio da cooperação, previsto no artigo 6º do C, orienta a efetividade da tutela jurisdicional sob o manto da solidariedade constitucional, em tempo razoável, de forma justa, humana e segura.
Não por outros argumentos é que apenas se ite a aplicação das medidas executivas atípicas quando rigorosamente fundamentada pelo magistrado que lhe autoriza, sobretudo em razão de sua inevitável agressão à esfera privada do devedor, ao revés das medidas típicas, que resguardam a liberdade individual, em linha com o princípio da legalidade, nos moldes do artigo 5º, II, da Constituição.
2. O entendimento doutrinário e jurisprudencial a respeito da utilização de medidas atípicas no processo de execução
Em que pese o dever de prestação jurisdicional, sobretudo em razão da natureza alimentar do crédito, aliado ao dever de buscar efetividade e razoável duração do processo, a flexibilização da tipicidade dos meios executivos não pode atingir dimensões existenciais e fundamentais relevantes, a ponto de ferir a dignidade da pessoa humana.
Ao devedor contumaz devem pesar restrições eficientes e pedagógicas, desde que respeitada a liturgia processual inerente ao devido processo legal, princípio que norteia a ação estatal em todas as suas esferas, em sintonia aos ideais de justiça e equidade.
Imputar a aplicação de medida atípica, sem a necessária fundamentação para tanto, é forçar uma solução jurídica mediante o uso de expedientes com cariz punitivo e não ressarcitório, bem como do constrangimento social e coletivo, o que viola frontalmente preceitos constitucionais que sustentam o ordenamento pátrio.
No tocante ao entendimento dos tribunais superiores, cumpre citar dois julgados proferidos pelo Superior Tribunal de Justiça:
“RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. MEDIDAS COERCITIVAS ATÍPICAS. C/2015. INTERPRETAÇÃO CONSENTÂNEA COM O ORDENAMENTO CONSTITUCIONAL. SUBSIDIARIEDADE, NECESSIDADE, ADEQUAÇÃO E PROPORCIONALIDADE. RETENÇÃO DE APORTE. COAÇÃO ILEGAL. CONCESSÃO DA ORDEM. SUSPENSÃO DA CNH. NÃO CONHECIMENTO. 1. O habeas corpus é instrumento de previsão constitucional vocacionado à tutela da liberdade de locomoção, de utilização excepcional, orientado para o enfrentamento das hipóteses em que se vislumbra manifesta ilegalidade ou abuso nas decisões judiciais. 2. Nos termos da jurisprudência do STJ, o acautelamento de aporte é medida que limita a liberdade de locomoção, que pode, no caso concreto, significar constrangimento ilegal e arbitrário, sendo o habeas corpus via processual adequada para essa análise. 3. O C de 2015, em homenagem ao princípio do resultado na execução, inovou o ordenamento jurídico com a previsão, em seu art. 139, IV, de medidas executivas atípicas, tendentes à satisfação da obrigação exequenda, inclusive as de pagar quantia certa. 4. As modernas regras de processo, no entanto, ainda respaldadas pela busca da efetividade jurisdicional, em nenhuma circunstância, poderão se distanciar dos ditames constitucionais, apenas sendo possível a implementação de comandos não discricionários ou que restrinjam direitos individuais de forma razoável. 5. Assim, no caso concreto, após esgotados todos os meios típicos de satisfação da dívida, para assegurar o cumprimento de ordem judicial, deve o magistrado eleger medida que seja necessária, lógica e proporcional. Não sendo adequada e necessária, ainda que sob o escudo da busca pela efetivação das decisões judiciais, será contrária à ordem jurídica. 6. Nesse sentido, para que o julgador se utilize de meios executivos atípicos, a decisão deve ser fundamentada e sujeita ao contraditório, demonstrando-se a excepcionalidade da medida adotada em razão da ineficácia dos meios executivos típicos, sob pena de configurar-se como sanção processual. 7. A adoção de medidas de incursão na esfera de direitos do executado, notadamente direitos fundamentais, carecerá de legitimidade e configurar-se-á coação reprovável, sempre que vazia de respaldo constitucional ou previsão legal e à medida em que não se justificar em defesa de outro direito fundamental. 8. A liberdade de locomoção é a primeira de todas as liberdades, sendo condição de quase todas as demais. Consiste em poder o indivíduo deslocar-se de um lugar para outro, ou permanecer cá ou lá, segundo lhe convenha ou bem lhe pareça, compreendendo todas as possíveis manifestações da liberdade de ir e vir. 9. Revela-se ilegal e arbitrária a medida coercitiva de suspensão do aporte proferida no bojo de execução por título extrajudicial (duplicata de prestação de serviço), por restringir direito fundamental de ir e vir de forma desproporcional e não razoável. Não tendo sido demonstrado o esgotamento dos meios tradicionais de satisfação, a medida não se comprova necessária. 10. O reconhecimento da ilegalidade da medida consistente na apreensão do aporte do paciente, na hipótese em apreço, não tem qualquer pretensão em afirmar a impossibilidade dessa providência coercitiva em outros casos e de maneira genérica. A medida poderá eventualmente ser utilizada, desde que obedecido o contraditório e fundamentada e adequada a decisão, verificada também a proporcionalidade da providência. 11. A jurisprudência desta Corte Superior é no sentido de que a suspensão da Carteira Nacional de Habilitação não configura ameaça ao direito de ir e vir do titular, sendo, assim, inadequada a utilização do habeas corpus, impedindo seu conhecimento. É fato que a retenção desse documento tem potencial para causar embaraços consideráveis a qualquer pessoa e, a alguns determinados grupos, ainda de forma mais drástica, caso de profissionais, que tem na condução de veículos, a fonte de sustento. É fato também que, se detectada esta condição particular, no entanto, a possibilidade de impugnação da decisão é certa, todavia por via diversa do habeas corpus, porque sua razão não será a coação ilegal ou arbitrária ao direito de locomoção, mas inadequação de outra natureza. 12. Recurso ordinário parcialmente conhecido.” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça, RHC 97.876/SP, 4ª Turma, rel. ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 5/6/2018, DJe 9/8/2018).
“PROCESSUAL CIVIL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. MEDIDAS EXECUTIVAS ATÍPICAS. CABIMENTO. RESTRIÇÃO DO DIREITO DE DIRIGIR. SUSPENSÃO DA CNH. LIBERDADE DE LOCOMOÇÃO. VIOLAÇÃO DIRETA. INOCORRÊNCIA. PRINCÍPIOS DA RESOLUÇÃO INTEGRAL DO LITÍGIO, DA BOA-FÉ PROCESSUAL E DA COOPERAÇÃO. ARTS. 4º, 5º E 6º DO C/15. INOVAÇÃO DO NOVO C. MEDIDAS EXECUTIVAS ATÍPICAS. ART. 139, IV, DO C/15. COERÇÃO INDIRETA AO PAGAMENTO. POSSIBILIDADE. SANÇÃO. PRINCÍPIO DA PATRIMONIALIDADE. DISTINÇÃO. CONTRADITÓRIO PRÉVIO. ART. 9º DO C/15. DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO. ART. 489, § 1º, DO C/15. COOPERAÇÃO CONCRETA. DEVER. VIOLAÇÃO. PRINCÍPIO DA MENOR ONEROSIDADE. ART. 805, PARÁGRAFO ÚNICO, DO C/15. ORDEM. DENEGAÇÃO. 1. Cuida-se de habeas corpus por meio do qual se impugna ato supostamente coator praticado pelo juízo do primeiro grau de jurisdição que suspendeu a carteira nacional de habilitação e condicionou o direito do paciente de deixar o país ao oferecimento de garantia, como meios de coerção indireta ao pagamento de dívida executada nos autos de cumprimento de sentença. 2. O propósito recursal consiste em determinar se: a) o habeas corpus é o meio processual adequado para se questionar a suspensão da carteira nacional de habilitação e o condicionamento do direito de deixar o país ao oferecimento de garantia da dívida exequenda; b) é possível ao juiz adotar medidas executivas atípicas e sob quais circunstâncias; e c) se ocorre flagrante ilegalidade ou abuso de poder aptos a serem corrigidos nessa via mandamental. 3. Com a previsão expressa e subsidiária do remédio constitucional do mandado de segurança, o habeas corpus se destina à tutela jurisdicional da imediata liberdade de locomoção física das pessoas, não se revelando, pois, cabível quando inexistente situação de dano efetivo ou de risco potencial ao ‘jus manendi, ambulandi, eundi ultro citroque’ do paciente. 4. A suspensão da Carteira Nacional de Habilitação não configura dano ou risco potencial direto e imediato à liberdade de locomoção do paciente, devendo a questão ser, pois, enfrentada pelas vias recursais próprias. Precedentes. 5. A medida de restrição de saída do país sem prévia garantia da execução tem o condão, por outro lado, – ainda que de forma potencial – de ameaçar de forma direta e imediata o direito de ir e vir do paciente, pois lhe impede, durante o tempo em que vigente, de se locomover para onde bem entender. 6. O processo civil moderno é informado pelo princípio da instrumentalidade das formas, sendo o processo considerado um meio para a realização de direitos que deve ser capaz de entregar às partes resultados idênticos aos que decorreriam do cumprimento natural e espontâneo das normas jurídicas. 7. O C/15 emprestou novas cores ao princípio da instrumentalidade, ao prever o direito das partes de obterem, em prazo razoável, a resolução integral do litígio, inclusive com a atividade satisfativa, o que foi instrumentalizado por meio dos princípios da boa-fé processual e da cooperação (arts. 4º, 5º e 6º do C), que também atuam na tutela executiva. 8. O princípio da boa-fé processual impõe aos envolvidos na relação jurídica processual deveres de conduta, relacionados à noção de ordem pública e à de função social de qualquer bem ou atividade jurídica. 9. O princípio da cooperação é desdobramento do princípio da boa-fé processual, que consagrou a superação do modelo adversarial vigente no modelo do anterior C, impondo aos litigantes e ao juiz a busca da solução integral, harmônica, pacífica e que melhor atenda aos interesses dos litigantes. 10. Uma das materializações expressas do dever de cooperação está no art. 805, parágrafo único, do C/15, a exigir do executado que alegue violação ao princípio da menor onerosidade a proposta de meio executivo menos gravoso e mais eficaz à satisfação do direito do exequente. 11. O juiz também tem atribuições ativas para a concretização da razoável duração do processo, a entrega do direito executado àquela parte cuja titularidade é reconhecida no título executivo e a garantia do devido processo legal para exequente e o executado, pois deve resolver de forma plena o conflito de interesses. 12. Pode o magistrado, assim, em vista do princípio da atipicidade dos meios executivos, adotar medidas coercitivas indiretas para induzir o executado a, de forma voluntária, ainda que não espontânea, cumprir com o direito que lhe é exigido. 13. Não se deve confundir a natureza jurídica das medidas de coerção psicológica, que são apenas medidas executivas indiretas, com sanções civis de natureza material, essas sim capazes de ofender a garantia da patrimonialidade da execução por configurarem punições ao não pagamento da dívida. 14. Como forma de resolução plena do conflito de interesses e do resguardo do devido processo legal, cabe ao juiz, antes de adotar medidas atípicas, oferecer a oportunidade de contraditório prévio ao executado, justificando, na sequência, se for o caso, a eleição da medida adotada de acordo com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. 15. Na hipótese em exame, embora ausente o contraditório prévio e a fundamentação para a adoção da medida impugnada, nem o impetrante nem o paciente cumpriram com o dever que lhes cabia de indicar meios executivos menos onerosos e mais eficazes para a satisfação do direito executado, atraindo, assim, a consequência prevista no art. 805, parágrafo único, do C/15, de manutenção da medida questionada, ressalvada alteração posterior. 16. Recurso em habeas corpus desprovido.” (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, RHC 99.606/SP, 3ª Turma, rel. ministra Nancy Andrighi, julgado em 13/11/2018, DJe 20/11/2018)
Continua na parte 2
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[1] TEIXEIRA FILHO, Manoel Antonio. Execução no processo do trabalho.9. ed. São Paulo: LTr, 2005. p. 52. [1] SCHIAVI, Mauro. Manual de Direito Processual do Trabalho. 17. ed.rev, atual e ampl. – Salvador: Editora JusPodivm, 2021. p. 167
[2] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. v. IV. São Paulo: Malheiros, 2004. p.321.
[3] TEIXEIRA FILHO, Manoel Antonio. Execução no processo do trabalho. 9. ed. São Paulo: LTr, 2005. p.247.
[4] BUZAID, Alfredo. Do concurso de credores no processo de execução. São Paulo: Saraiva, 1952, p. 116
[5] SCHIAVI, Mauro. Manual de Direito Processual do Trabalho. 17. ed.rev, atual e ampl. – Salvador: Editora JusPodivm, 2021.
[6] DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Diretrizes para a concretização das cláusulas gerais executivas dos arts. 139, IV, 297 e 536, § 1º, C. In: Revista de Processo, v. 267/2017, pp. 227 a 272
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