Fórum de processualistas aprova enunciados sobre litigância abusiva
8 de abril de 2025, 20h44
A edição 2025 do Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC) — possivelmente o mais democrático evento do Processo Civil brasileiro, por permitir a todos os interessados no assunto a participação de modo amplo, horizontal, não hierarquizado — trouxe, entre outras iniciativas inovadoras, a criação de um grupo para discutir a gestão de litigiosidade.

Em um sistema de justiça marcado pela chamada “explosão de litigiosidade”, pela sobreutilização dos serviços judiciários (para usar expressão da Análise Econômica do Direito), é inegável a necessidade de que as instituições, entidades, órgãos e atores do sistema de justiça conjuguem seus esforços, colaborativamente, para fim de promoção da litigância responsável, da racionalização do o aos serviços judiciários e da eficiência judiciária.
A capacidade de prestação de serviços pelo Judiciário é limitada pelos recursos postos à sua disposição, os quais são custeados pelos impostos. Mesmo nos casos em que há adiantamento de custas processuais, seu valor não é suficiente para cobrir a maior parte do custo da tramitação processual.
É de interesse de toda a sociedade, tanto sob a perspectiva da economicidade e da eficiência, quanto na da efetivação do o ao Judiciário, o investimento em estratégias adequadas de soluções de conflitos e de litígios, e em especial para que as (limitadas) capacidades de prestação de serviços do Judiciário sejam preservadas a fim de se poder atender àqueles que deles realmente precisam e que exercem legitimamente o direito de ação, de modo racional e com economicidade.
Ao apreciar o Recurso Extraordinário nº 1.355.208/SC, representativo da controvérsia identificada como Tema 1.184 da Repercussão Geral, o STF, muito além de tratar da racionalização das execuções fiscais municipais, firmou precedente do qual se extraem relevantes parâmetros para a gestão adequada de litigiosidade pelo Poder Judiciário (Vieira, 2024).
O tribunal ressaltou que: o direito de ação é muito condicionado, especialmente pelo interesse de agir, cujo aspecto relacionado à necessidade de o ao Judiciário está diretamente vinculado ao princípio da eficiência; aplicou expressamente o princípio da eficiência também à gestão das capacidades judiciárias de prestação de serviços jurisdicionais; conjugou a necessidade de racionalização das demandas, da estrutura e do desgaste humano no Judiciário com a de promover a gestão responsável, racional e eficiente das verbas públicas, a fim de se preservar o funcionamento e a manutenção do sistema de justiça; evidenciou a relevância de se avaliar a proporcionalidade entre o custo de tramitação de cada demanda, o benefício por meio dela perseguido e os meios extrajudiciais à disposição da parte (eventualmente tão ou mais eficientes do que o processo judicial) para buscar a satisfação de sua pretensão de direito material.
A ratio decidendi (cerne do precedente) desse julgado representa, portanto, o reconhecimento, pela mais alta Corte brasileira, de um poder-dever do Judiciário não apenas de agir com eficiência, mas também de promover racionalidade, eficiência e economicidade no o aos seus serviços. Ao atuar desse modo, o Poder Judiciário pratica o que se tem chamado gestão de litigiosidade ou tratamento adequado de litigiosidade.
Os Centros de Inteligência — cuja expansão para todos os tribunais, após a criação na Justiça Federal, foi prevista na Resolução CNJ nº 359/2020 — são “estruturas” privilegiadas para essa atuação, especialmente em razão de sua vocação para a atuação em rede, para a abordagem sistêmica de problemas (Ferraz, 2023), a otimização, circulação e implementação da inteligência judicial e de seus princípios (Clementino, 2021), o tratamento adequado da litigiosidade repetitiva (Moraes, 2018), quer legítima, quer anômala.
Ainda que o Judiciário seja a instituição mais impactada pelo eventual o irracional, ilegítimo ou abusivo aos seus serviços, é evidente que não cabe apenas a ele contribuir para o tratamento adequado da litigiosidade. Todas as demais instituições, órgãos e agentes do sistema de justiça — em especial o Ministério Público, a Defensoria Pública, a OAB, os advogados públicos e privados, em virtude das funções constitucionais que lhes foram atribuídas — devem colaborar para a promoção do o responsável aos serviços judiciários, para a funcionalidade do sistema de justiça, para a efetivação do direito de o a tal sistema.
Nessa perspectiva, é notável que o FPPC tenha buscado prestar relevante contribuição para as reflexões e construções que pouco a pouco levam ao aprimoramento do tratamento adequado da litigiosidade no sistema de justiça brasileiro. Durante os dois dias de realização do evento (28 e 29 de março, em Brasília), no grupo “Litigiosidade: gestão e tratamento adequado”, estudantes de Direito, advogados, procuradores públicos, membros do Ministério Público, magistrados, professores, entre outros profissionais e interessados, discutiram intensa e colaborativamente possibilidades concretas de aprimoramento do sistema de justiça. Selecionadas, entre dezenas de propostas de enunciados, as quatro que, em observância das regras do evento, seriam levadas à plenária final, duas foram aprovadas:
“761. (arts. 5º, 6º, 7º, 77 e 78, C; art. 187 do Código Civil) A litigância abusiva pode envolver qualquer sujeito do processo e ocorrer em qualquer fase, incidente ou ato processual, não se restringindo à postulação inicial.”
“762. (arts. 5º e 928, C; art. 187 do Código Civil) A litigância repetitiva, por si só, não configura litigância abusiva.”
Impulso
O fato de ambos os enunciados aprovados estarem vinculados à chamada “litigância abusiva” – expressão cunhada pela Recomendação CNJ nº 159/2024, por meio de referência ao instituto do abuso de direito (artigo 187 do Código Civil) e adotada pelo STJ ao enunciar a tese firmada no Tema Repetitivo 1.198 – certamente se relaciona ao fato de esse aguardo julgamento haver sido concluído recentemente, em 13 de março deste ano.
O abuso no exercício do direito de demandar — seja praticado pelo ocupante do polo ivo da relação processual, seja por aquele que figura no polo ivo — resulta, como evidenciado na Nota Técnica 1/2022 do Centro de Inteligência da Justiça de Minas Gerais, em apropriação indevida de parte relevante da capacidade de prestação de serviços do Judiciário, com graves prejuízos para os cidadãos em geral e elevação do tempo médio de tramitação processual.
A profícua discussão de assuntos relacionados à gestão adequada de litigiosidade e a aprovação de dois enunciados relativos à temática, no recente encontro do Fórum Permanente de Processualistas Civis, representam importante contribuição para a compreensão de fenômenos relacionados à litigiosidade e suas manifestações, na realidade brasileira, e a conjugação de esforços, em perspectiva cooperativa, para a promoção da responsabilidade no exercício do direito de demandar. Que esse exemplo sirva como impulso para a intensificação de iniciativas semelhantes!
Referências
CLEMENTINO, Marco Bruno Miranda. O sistema multiportas e a inteligência judicial. In: DANTAS, Marcelo Navarro Ribeiro (Org.). Inovações no sistema de justiça: meios alternativos de resolução de conflitos, justiça multiportas e iniciativas para a redução de litigiosidade. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 727-743.
FERRAZ, Taís Schilling. A litigiosidade como fenômeno complexo: quanto mais se empurra, mais o sistema empurra de volta. Revista jurídica da Presidência, v. 25, n. 135, jan.-abr. 2023, p. 163-191.
MORAES, Vânila Cardoso André de. Centro Nacional (e Locais) de Inteligência da Justiça Federal: um sistema organizacional para a construção de uma instituição eficaz e inclusiva em todos os níveis. In: Conselho da Justiça Federal / Centro Nacional da Justiça Federal. Estratégias de prevenção de conflitos, monitoramento e gestão de demandas e precedentes. Brasília: Centro de Estudos Judiciários, 2018, v. 1, p. 13-21.
VIEIRA, Mônica Silveira. Enfrentamento da Litigância Predatória e ODS 16: uma discussão necessária. In: Encontro de istração da Justiça (ENAJUS), 2024, Natal/RN. Anais. Disponível em: aqui. o em: 2 mar. 2025.
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