Diálogos Constitucionais

Aperfeiçoamento da arbitragem brasileira entre precedente Achmea e REsp 2.163.463/SP

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8 de abril de 2025, 8h00

Em recente artigo na coluna Diálogos Constitucionais, discuti, ao lado de João Gabriel Rodrigues, a abordagem do Tribunal Constitucional Alemão (BVG) sobre o paradigmático caso Slovak Republic v. Achmea B.V. [1], que impactou o cenário global da arbitragem de investimento.

Spacca

Em Achmea, o BVG sacramentou a decisão previamente proferida pela Corte de Justiça da União Europeia (CJEU), ao decidir que não havia incompatibilidade com a Basic Law da decisão que entendeu pela não conciliação da cláusula de arbitragem do BIT entre os dois países da União Europeia com a legislação europeia, especificamente quanto aos artigos 18, 267 e 344 do Treaty on the Functioning of the European Union (TFEU).

E poucos dias depois da publicação do artigo, o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva proferiu emblemático voto no julgamento do Recurso Especial nº 2.163.463/SP [2], de modo a constituir precedente essencial para o aperfeiçoamento do debate acerca da judicialização das decisões arbitrais.

Em seu voto, julgou procedente ação anulatória arbitral reconhecendo ter havido violação do artigo 1º da Lei nº 9.307/1996 (Lei de Arbitragem) pela Corte local ao itir a competência do juízo arbitral para decidir acerca da compensação de crédito sujeito à recuperação judicial. Nesse aspecto, o Ministro reconheceu a inarbitrabilidade da matéria.

A correlação entre o caso brasileiro e europeu é evidente, permitindo um sadio diálogo entre o precedente nacional e internacional. Ambas as decisões regulamentaram os limites da arbitragem a partir das normas estruturantes do ordenamento jurídico vigente no país (ou no conjunto de países, no caso de Achmea).

Mais precisamente, ambos os precedentes partem do sistema jurídico para corrigir desvios da arbitragem rechaçando uma visão arbitralista isolacionista.

O precedente brasileiro teve origem em uma ação declaratória de nulidade parcial de sentença arbitral, proposta por uma empresa em recuperação judicial, com o objetivo de anular o capítulo da sentença arbitral que reconheceu a possibilidade de compensação de créditos entre as partes. A recorrente alegou que a compensação de créditos, por envolver obrigações sujeitas ao concurso de credores, não poderia ser decidida em arbitragem, dada a ausência de arbitrabilidade objetiva.

A sentença arbitral foi mantida pelo TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo), que julgou ser arbitrável, mesmo diante da recuperação judicial. Contudo, o STJ reformou essa decisão, declarando a nulidade parcial da sentença arbitral no ponto que tratou da compensação de créditos, reconhecendo que tal matéria deve ser decidida pelo juízo da recuperação judicial.

O voto do ministro Cueva iniciou tratando dos limites impostos pela legislação nacional à arbitragem. Assim, por meio de uma leitura sistêmica do ordenamento, destacou que o uso da arbitragem está aos chamados direitos patrimoniais disponíveis.

A arbitrabilidade objetiva refere-se à natureza do direito em disputa, podendo ser submetidos à arbitragem tão somente direitos que possam ser livremente negociados, renunciados ou transacionados pelas partes (disponíveis), bem como que sejam íveis de valoração pecuniária (patrimoniais).

Como já pontuado, o caso objeto de análise pelo STJ versava sobre a possibilidade de compensação de créditos envolvendo companhia em recuperação judicial.

A compensação, em regra, é uma forma de extinção de obrigações prevista no Código Civil, que ocorre quando duas pessoas são, ao mesmo tempo, credoras e devedoras uma da outra. Todavia, quando se está diante de créditos sujeitos à recuperação judicial, a compensação adquire contornos específicos, pois afeta diretamente o concurso de credores e a coletividade envolvida no processo recuperacional.

A Lei nº 11.101/2005 (Lei de Recuperação de Empresas e Falências) estabelece um regime jurídico especial para os créditos sujeitos à recuperação judicial, com o objetivo de garantir o tratamento isonômico dos credores e a viabilidade da recuperação da empresa. A ratio por trás da especificidade do regime reside na lógica de que todo o processo recuperacional se baseia em um esforço conjunto por parte dos credores, em benefício do soerguimento da empresa e da quitação das obrigações por ela contratadas.

E se há um esforço conjunto em benefício do atingimento do objetivo final de recuperação da empresa, não pode um credor, sujeito ao concurso do processo recuperacional, “receber” prioritariamente aos demais o seu crédito mediante compensação de dívida que possuía face ao devedor em recuperação judicial.

E é por isso, como muito bem destacado na decisão, que a compensação de créditos não pode ser considerada um direito patrimonial disponível, já que está subordinada às regras do plano de recuperação judicial e à supervisão do juízo recuperacional.

Merece destaque a detida análise do ministro, ao rever um dos argumentos utilizados pela Corte de origem para justificar a competência do juízo arbitral.

Destacou o TJ-SP que por força do artigo 6º, § 9º, da Lei nº 11.101/2005, que prevê que o processamento da recuperação judicial ou a decretação da falência não impede ou suspende a instauração de procedimento arbitral, “o fato de a autora estar em processo de recuperação judicial durante o procedimento arbitral não significa que o litígio entre as partes não poderia ter sido analisado e decidido pelo Tribunal Arbitral; além disso, essa circunstância não invalida a jurisdição arbitral com base na alegação de que o direito em disputa, embora patrimonial, teria se tornado indisponível e, consequentemente, insuscetível de ser arbitrado

Todavia, o ministro Cueva esclareceu que a norma da Lei n° 11.101/2005 trata apenas da arbitrabilidade subjetiva, ou seja, da possibilidade de uma empresa em recuperação judicial ser parte ou não de um procedimento arbitral.

Portanto, o dispositivo não trata da supramencionada arbitrabilidade objetiva, qual seja, a matéria relacionada à arbitragem (compensação de créditos sujeitos à recuperação judicial), razão pela qual o artigo 6º, § 9º, da Lei nº 11.101/2005, não se aplicaria ao caso concreto.

Sendo assim, entendeu o ministro que permitir ao juízo arbitral decidir sobre a compensação de créditos sujeitos à recuperação judicial comprometeria a par conditio creditorum e poderia violar toda a ratio subjacente à consecução da Lei nº 11.101/2005, qual seja a conciliação de recebimento por parte dos credores com o soerguimento da empresa insolvente.

Desse modo, tal como se decidiu em Achmea, há uma lógica bastante clara na decisão do STJ: não pode a arbitragem servir como um subterfúgio para se derrogar os princípios estabelecidos na Lei nº 11.101/2005, que busca centralizar no juízo da recuperação judicial todas as questões relacionadas à crise da empresa, garantindo o tratamento conjunto e coordenado dos interesses dos credores.

No precedente europeu, não obstante houvesse cláusula arbitral em tratado bilateral pactuado entre os entes soberanos (BIT), o Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFEU), especificamente nos artigos 18, 267 e 344, de acordo com a interpretação da CJEU, não permitia a retirada de disputas envolvendo interpretação e aplicação da legislação europeia do mecanismo de revisão previsto no TFEU.

Arbitragem no ordenamento jurídico

A arbitragem, como previamente afirmado, é sim método adequado para resolução de conflitos. Assim, é imperativo destacar-se, desde logo, que a decisão do ministro Cueva de forma alguma configura “ataque à arbitragem”, ou mesmo busca “minar” ou “esvaziar” o instituto.

O que se defende é que a arbitragem deve estar inserida no ordenamento jurídico da sede pactuada entre as partes litigantes. Em outras palavras, não pode a arbitragem caminhar de forma paralela e isolada do regramento jurídico do país ao qual se está submetida, sob pena de se fomentar um sistema judiciário absolutamente apartado, em que alguns players que a ela se submetem são regidos por normas diversas daquelas do restante da sociedade.

No livro Arbitragem Constitucional, escrito em coautoria com Francisco de Assis e Silva e Antonio Gavazzoni, posicionamos a arbitragem como espaço normativo de autorregulação regulada orientado pelas diretrizes constitucionais do sistema jurídico. Ou seja, a autonomia da arbitragem nunca poderia ser equiparada a isolamento em relação ao que são as normas estruturantes de um sistema jurídico. Nesse aspecto, ainda que de forma excepcional, o sistema judicial deve assegurar a correção do sistema arbitral acerca da distinção linguística do binômio lícito/ilícito.

Pode-se dizer, num plano mais geral, que o STJ deu mais uma contribuição crucial ao estabelecimento de que a arbitragem é um meio autônomo, mas não independente em relação ao restante do ordenamento jurídico e suas pretensas “especificidades” não podem quebrar a unidade do direito. A arbitragem não existe isolada como uma ilha num mar de juridicidades; antes, pode contribuir com meios mais flexíveis e adaptáveis de solução de conflitos desde que estes não se contraponham ao regramento jurídico como reflexo da soberania nacional.

A recente decisão do ministro Cueva, ao plenamente validar o uso da arbitragem para a resolução de disputas envolvendo direitos patrimoniais disponíveis, mas ressalvando a importância de se adequar o instituto ao ordenamento jurídico vigente no país, é mais um exemplo de que a arbitragem está sendo devidamente protegida e aperfeiçoado pelos Tribunais Superiores brasileiros e de que as excentricidades propaladas por setores do “arbitralismo” brasileiro não são, felizmente, a regra.

Na realidade, a produção de precedentes do STJ ou STF acerca da arbitragem são condição fundamental para a legitimidade da arbitragem e seu fortalecimento. Precedentes, iguais ao ora examinado, permitem maior interação da arbitragem com o ordenamento jurídico brasileiro de modo a compatibilizar cada vez mais a arbitragem com a Constituição. Tanto assim é que o voto pela inarbitrabilidade assegurou a preservação da isonomia entre credores.

Nesse ponto precisamos destacar que tanto no precedente Achmea quanto o nacional, ainda que ambos tratem de direitos puramente patrimoniais, foi pronunciada a inarbitrabilidade de modo a ser assegurada a isonomia, mais especificamente a igualdade entre os credores.

Em uma sociedade global e multifacetada como a atual, não há espaço para posicionamentos diretamente contrários à arbitragem ou então favoráveis ao seu isolamento, seja ela comercial ou de investimento. O que efetivamente deve haver é um maior diálogo do instituto com o ordenamento jurídico nacional. A harmonia entre as decisões arbitrais e o sistema legal não pode acarretar outro resultado que não segurança jurídica e, por consequência a formação de sadio ambiente de negócios do país.

Arbitragem e ordenamento jurídico interno devem interagir em reforço mútuo, e não em exclusão recíproca. Caso contrário, enfraquecer-se-ia o instituto da arbitragem, que aria a ser visto como espaço de anomia, recurso daqueles a quem o direito positivo não ampara, e o enfraquecimento da própria unidade do ordenamento jurídico nacional, que se diluiria em ramificações de normas materiais e procedimentais reconduzíveis a interesses particulares egoístas, e não à soberania do Estado brasileiro.

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[1] ABBOUD, Georges; SILVA, Francisco de Assis; GAVAZZONI, Antonio. Arbitragem Constitucional, São Paulo: Revista dos Tribunais/Thomson Reuters, 2024, item I, p. 33-65.

[2] REsp nº 2163463 – SP (2024/0300443-0), Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva

Autores

  • é livre-docente, doutor e mestre em Direito pela PUC-SP, professor de Direito Processual Civil da PUC-SP e do programa de mestrado e doutorado em Direito Constitucional do Instituto Brasileiro de Ensino (IDP-DF), advogado, coordenador técnico do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos do conjur da Fiesp.

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