Opinião

Colaboração premiada e ação de improbidade sobre mesmo fato: para além do senso comum teórico

Autor

  • é advogado associado do escritório Gonçalves Santos Advogados mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba especialista em Direito Público membro do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP e pesquisador do Núcleo de Pesquisa de Interpretação e Decisão Judicial (Nupid).

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9 de abril de 2025, 15h13

Recentemente, a 1º Turma do STJ entendeu, corretamente, que a realização do acordo de colaboração premiada impede o ajuizamento da ação de improbidade sobre mesmo fato.[1] Assim, para a 1° Turma do Superior Tribunal de Justiça, não é cabível o ajuizamento de ação de improbidade istrativa contra colaborador premiado para buscar o reconhecimento judicial do ato ilícito, mesmo que o processo não pretenda a aplicação de outras sanções além daquelas já definidas no acordo de colaboração.

Conforme noticiado, afirmou o relator do recurso, ministro Gurgel de Faria, que “permitir a judicialização de questões já abrangidas pelo acordo homologado acarretaria movimentação desnecessária da máquina judiciária, com custos elevados e afronta à economia processual, além de gerar incertezas sobre a extensão dos efeitos do ajuste”.

Ainda, segundo o ministro Gurgel de Faria, o MP-RJ, ao aderir ao acordo originalmente firmado com o Ministério Público Federal, comprometeu-se a respeitar as disposições e as limitações do pacto, inclusive em relação a novas sanções ou procedimentos. Nesse contexto, permitir que uma ação de improbidade fosse ajuizada e itida apenas para declarar a prática do ato ilícito, mesmo sem a imposição de novas sanções, poderia enfraquecer os objetivos da colaboração premiada.

Para o ministro, a essência do instituto da colaboração premiada está na segurança e na previsibilidade que oferece tanto ao colaborador quanto ao Estado, como forma de incentivar o desvendamento de esquemas ilícitos complexos. itir a judicialização de questões já abarcadas pelo acordo resultaria em falta de confiança no sistema, comprometendo a adesão a esse mecanismo consensual e o seu papel na eficiência das investigações.

Princípio da boa-fé e da confiança

Pois bem. Muito embora concordemos com o ministro relator, gostaríamos de contribuir com a sofisticação de sua ratio, acrescentando novos argumentos que, lidos em conjunto, contribuem para demonstrar o acerto da mencionada decisão, para além do senso comum teórico dos juristas.[2]

No caso concreto, de fato, entender de maneira diversa seria ir de encontro aos princípios da confiança e boa-fé. Conforme já afirmado corretamente pelo ministro André Mendonça, a base da negociação destes acordos é a boa-fé.[3] Ir de encontro a este entendimento seria, novamente e de forma equivocada, repristinar equívoco comum acontecido durante a Operação Lava Jato.[4][5]

O Ministério Público precisa observar o princípio da boa-fé e da confiança.[6] O princípio da proteção da confiança leva em conta a boa-fé do cidadão que acredita e espera que os atos praticados pelo poder público sejam lícitos e, nessa qualidade, serão mantidos e respeitados pela própria istração e por terceiros.

Spacca

Num sistema acusatório, cada cidadão espera que as instituições respeitem os atos e funções que lhe cabem dentro do espectro social. Ao agirem de forma lógica, se animados por bons valores morais, os homens tendem a proceder com boa-fé, pois obrariam com lealdade e probidade. Tudo isso impõe-se na criação de uma segurança jurídica capaz de sustentar o convívio, fomentando a confiança no sistema. Neste sentido, acerta o Superior Tribunal de Justiça.

Coerência e integridade

Contudo, não obstante o acerto nesta argumentação, podemos ir além. Em artigos anteriores no ConJur, já havíamos sustentado a necessidade de haver uma interpretação destas questões à luz da integridade e coerência do direito sancionador.[7][8]

Conforme Streck, coerência e integridade são conceitos, por sua vez, respectivamente ligados à consistência lógica que cada decisão deve manter com casos semelhantes e à exigência de que os juízes construam seus argumentos de modo integrado ao direito como um todo, numa perspectiva ajuste de substância.[9]

Didier, neste sentido, salienta que deve se “compreender o direito como um sistema de normas, e não um amontoado de normas. O dever de integridade é nesse sentido uma concretização do postulado da unidade do ordenamento jurídico”.[10]

Ora, na prática, quem atua e milita nesta área sabe que é quase regra que um agente público seja processado, pelo mesmo fato, na esfera penal e cível, muitas vezes, com as mesmas testemunhas de acusação e defesa, seguindo a mesma holding de argumentação, sendo comum, inclusive, haver compartilhamento de provas e, em outros casos, até a realização de uma única audiência para o julgamento destas duas esferas “distintas”, tamanha à semelhança entre os processos, acusação, defesa, etc.

Desta forma, é impossível rejeitar que há, no mínimo, um elo principiológico que une estas duas esferas, por questão de coerência e integridade sistêmica, tendo tal fato se tornado mais nítido com as alterações promovidas pela Lei 14.230/21. Trata-se, em nosso entendimento, de uma questão de lógica, coerência e integridade do sistema sancionador, sendo claro, portanto, que deve haver um diálogo entre estas espécies, de modo a garantir a integridade e coerência do seu gênero, qual seja, o direito sancionador lato sensu.

Doutrina do direito sancionador

Neste sentido, conforme menciona Xavier, a doutrina da unidade do direito sancionador é argumento em favor da racionalização de um sistema de princípios, conciliados os fundamentos e limites para aplicações de sanções istrativas e penais, especialmente, à luz dos fenômenos da istrativização do direito penal e/ou aumento do poder istrativo sancionador.[11]

A lógica, portanto, é que se deve pensar um regime jurídico de núcleo comum à potestade sancionatória da istração pública e à potestade penal do Poder Judiciário, entendendo assim pela integridade do direito sancionador, à luz dos princípios gerais que fundamentem o ramo do direito punitivo único.

Nesse sentido, não há como se desconsiderar um acordo de colaboração realizado na seara criminal que transaciona sobre determinado ato ilícito e, em ato contínuo, de forma sub-reptícia e no mesmo contexto fático e sistêmico, ajuizar uma ação de improbidade sobre mesmo fato, ainda que sob a justificativa de que não se pretende aplicar outras sanções além daquelas já definidas no acordo de colaboração, até porque não haveria como transacionar neste sentido no bojo da Lei 8.429/92, salvo no contexto de um acordo de não persecução civil. Ainda, fica uma questão no ar: se não se pretende aplicar outras sanções além daquelas já definidas no acordo de colaboração, por que ajuizar uma ação de improbidade? O que se pretende com a procedência desta ação?

A comunicação neste caso é, pois, inevitável, justamente por uma racionalização de um sistema de princípios, conciliando os fundamentos e limites para aplicações de sanções istrativas e penais, buscando manter a coerência e integridade do sistema, para além dos princípios da boa-fé e confiança legítima no sistema.

Poder punitivo estatal

Assim, não há como negar a existência de realidades normativas que se apresentam em uma perspectiva unitária, ou seja, normas que veiculam um conteúdo mínimo que deve ser observado em qualquer forma de exercício do poder punitivo estatal, seja na esfera penal, seja na esfera istrativa, e especialmente, quando versem sobre os mesmos fatos e mesmas partes, dentro de um contexto unitário.

Entender de maneira diversa seria permitir, portanto, que um sujeito que transaciona na esfera penal seja, depois, pelos mesmos fatos, surpreendido pelo Ministério Público que participou do acordo com o ajuizamento de uma ação por improbidade istrativa que, muito embora não apresente a pena de privação de liberdade, trabalha com sanções econômicas e políticas extremamente graves, como suspensão dos direitos políticos, perda da função pública, a indisponibilidade de bens e o ressarcimento ao erário.

Ademais, note-se que a discussão não é sobre possível vinculação da esfera civil à esfera penal, com suposta ofensa à independência de esferas, como alguns podem querer equivocadamente argumentar; mas sim, sobre coerência, integridade e lógica do sistema sancionador, à luz ainda dos princípios da boa-fé e confiança. Este é o ponto.

Por fim, diz-se que o inteligente é aquele que aprende com os próprios erros. O sábio, porém, aprende com os erros dos outros. Precisamos aprender com os erros da operação lava-jato.[12] Não se pode autorizar, com todas as vênias, um agir dissimulado, clandestino do Estado, contrário aos princípios do direito, pautado unicamente numa busca desmedida de punição à corrupção. Já vimos este filme antes e sabemos como ele acaba. Não podendo ser sábios, que possamos ao menos ser inteligentes. É o que se espera.

 


[1] /2025-mar-25/colaboracao-premiada-impede-acao-de-improbidade-sobre-mesmo-fato-decide-stj/

[2] /2024-fev-10/o-senso-comum-teorico-dos-juristas-e-a-arte-de-reduzir-cabecas/#_ftn3

[3] /2019-jan-09/boa-fe-base-negociacao-acordo-leniencia-agu/

[4] /2015-out-15/acordos-delacao-lava-jato-violam-constituicao-leis-penais/

[5] /2024-fev-01/toffoli-suspende-pagamento-do-acordo-de-leniencia-da-odebrecht-com-a-lava-jato/

[6] C, art. 5º: Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé.

[7] /2023-mai-01/rodrigues-jr-araujo-integridade-direito-sancionador/

[8] /2023-mai-01/rodrigues-jr-araujo-integridade-direito-sancionador/#_ftn1

[9] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: quarenta temas fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito, 2017, p. 34.

[10] DIDIER JÚNIOR, Fredie. Sistema brasileiro de precedentes judiciais obrigatórios e os deveres institucionais dos tribunais: uniformidade, estabilidade, integridade e coerência da jurisprudência. Coleção grandes temas do novo C. v.3. Salvador: JusPodvm, 2015, p.395.

[11] XAVIER, Marília de Araújo Barros et al. Direito sancionador: estudos no direito tributário. 2018, p.44.

[12] /2024-jun-28/uma-nova-chance-aos-acordos-de-leniencia-da-operacao-lava-jato/

Autores

  • é advogado sócio do escritório Gonçalves Santos Advogados, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande, doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba, membro do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção (PUC-SP), sob liderança dos professores Pedro Estevam Alves Pinto Serrano e Luis Manuel Fonseca Pires (Faculdade de Direito da PUC-SP), membro do Grupo de Pesquisa Desafios do Controle da istração Pública Contemporânea, sob liderança do professor e desembargador Federal do TRF-5, Edilson Nobre Pereira Júnior.

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