Divórcio liminar?
9 de abril de 2025, 17h13
A 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial nº 2.189.143/SP, decidiu que o divórcio pode ser decretado em caráter liminar, ou seja, antes da citação da parte requerida e independentemente do exercício do contraditório.
As razões que fundamentam o acórdão do STJ podem ser sintetizadas da seguinte forma: a) o divórcio seria um direito potestativo, exigindo apenas a manifestação unilateral de vontade de qualquer dos cônjuges; b) a decretação do divórcio poderia ocorrer liminarmente por meio do “julgamento antecipado parcial de mérito, diante da desnecessidade de dilação probatória ou contraditório”.
É importante ressaltar que a caracterização do divórcio como um direito potestativo não é objeto de sólida controvérsia há tempos. Como mencionado no voto da ministra Nancy Andrighi, desde a Emenda Constitucional nº 66/2010, foram eliminados os requisitos de prévia separação judicial por mais de um ano ou de separação de fato por mais de dois anos para a decretação do divórcio. Tampouco há relevância, para o fim de decretar-se o divórcio, quanto à existência de culpa ou responsabilidade pelo término do casamento, o que representa uma das mais significativas conquistas civilizatórias da sociedade moderna.
Assim, a definição do direito ao divórcio como um direito potestativo significa que a extinção do vínculo conjugal decorre da simples manifestação unilateral de vontade de qualquer dos cônjuges, colocando o outro em posição de sujeição [1].
Contudo, afirmar que o divórcio é um direito potestativo — tema que não parece suscitar maior controvérsia — não implica, automaticamente, concluir que ele possa ser decretado de forma liminar, nem autoriza afirmar que o contraditório seria sempre desnecessário, como entendeu a 3ª Turma.
A controvérsia na jurisprudência dos tribunais não reside propriamente na definição do direito ao divórcio como um direito potestativo, mas sim no momento processual adequado para sua decretação. As decisões dividem-se, em grandes linhas, entre: a) as que item o divórcio liminar, antes da citação da parte requerida, agora adotada pela 3ª Turma do STJ; e, b) as que que entendem que, embora o divórcio seja um direito potestativo, ele só pode ser decretado após a citação da parte requerida. Ou seja, mesmo que não se exija a resolução de todas as controvérsias e pedidos cumulados para a extinção da relação conjugal, exige-se ao menos a citação da parte contrária.
Nessa segunda hipótese, o divórcio pode ser decretado, com a anuência da parte requerida, na primeira audiência de conciliação, conforme o procedimento de família que impõe a realização de audiência de conciliação obrigatória antes da contestação (C, artigos 694 e 695). Alternativamente, o divórcio pode ser decretado após a contestação, mediante julgamento parcial do mérito (C, artigo 356).
Pontos de discordância
Portanto, o ponto central é a possibilidade de decretação do divórcio antes da citação, por meio de julgamento parcial de mérito liminar. E, nesse contexto, é preciso esclarecer dois aspectos que nos fazem discordar da decisão do STJ.
Primeiro: é, no mínimo, inexato o acarretamento lógico tentado no acórdão pela 3ª Turma entre (1) ser potestativo o direito ao divórcio e (2) ser desnecessário o contraditório na ação de divórcio.

Isso porque o suposto dessa cadeia de argumentação é o de que a parte requerida teria um papel meramente binário no processo (ou reconhecer a procedência, ou pedir a improcedência, nada mais), o que é antiquado, tendo em conta o atual momento do processo civil brasileiro. Trata-se do ultraado “processo civil do autor” e de igualmente ultraada visão limitada do contraditório [2].
Somente para ilustrar exemplos possíveis no caso do processo de divórcio, a parte requerida, uma vez citada, pode a) argumentar que não é casada com a parte autora e suscitar incidente de falsidade da certidão de casamento; b) argumentar que o casamento é, na verdade, anulável, e pedir a sua anulação, em razão da ocorrência de algum vício de vontade (por coação ou por incapacidade ao tempo da celebração, por exemplo); c) argumentar que há incapacidade, ainda que relativa, da parte para manifestar a vontade de se divorciar [3]; ou, ainda, d) alegar a existência de vício na procuração outorgada ao advogado, comprometendo a regularidade da representação processual.
É evidente que todas essas questões (de possível suscitação) são naturalmente anteriores à decretação do divórcio e, suscitadas, devem ser sindicadas previamente pelo órgão julgador, porque o suposto do divórcio é um casamento válido.
Nesses casos, sem que se infirme a premissa de que o direito ao divórcio é um direito potestativo (não é essa a questão), acusa-se o erro de se dizer que o contraditório na ação de divórcio seria sempre desnecessário. O divórcio decorre da existência de um casamento válido somada à manifestação válida de vontade de um dos cônjuges (ou de ambos). Isso não elimina, como dito, a possibilidade de que a parte requerida apresente alegações e provas que inviabilizem a decretação do divórcio.
Logo, não existe esse acarretamento lógico entre (1) ser potestativo o direito afirmado pela parte autora (no caso, o direito formativo extintivo ao divórcio) e (2) ser desnecessário o contraditório no processo. Esse salto é impossível.
Segundo: a 3ª Turma do STJ acabou criando uma hipótese de “procedência liminar do pedido”, do qual não cogita o C e que, de mais a mais, se cogitasse, exibiria um tom característico de inconstitucionalidade material.
O argumento do acórdão foi, em resumo, o de que, “reconhecendo-se o caráter potestativo do divórcio, a sua decretação pode se dar em julgamento antecipado parcial de mérito, diante da desnecessidade de dilação probatória ou contraditório”.
Para além de o raciocínio ser logicamente criticável, também é sinuoso o caminho assumido para lastrear o cabimento da “procedência liminar do pedido” em caso de divórcio. Isso porque o C até cogita de tutelas provisórias sem o contraditório prévio (artigo 9º, p. ú.), mas não cogita de decisão de procedência liminar, ainda que parcial.
Nesse sentido, o voto equivocou-se ao invocar o artigo 356 do C para justificar a possibilidade de que o juiz decrete o divórcio antes da citação. Esse dispositivo autoriza o julgamento parcial quando o pedido se mostrar incontroverso (inciso I), ou quando não houver necessidade de produção de outras provas (inciso II). Justamente por isso, essa é uma técnica de julgamento que só tem lugar após a citação do réu, quando este anuir com o pedido (tornando-o incontroverso), ou quando adotar postura que torne desnecessária a produção de prova. Ambas as hipóteses estão diretamente vinculadas a posturas adotadas pelo réu após a citação, evidenciando o erro de afirmar que a desnecessidade de produção de prova poderia ser aferida antes da citação a fim de julgar liminarmente procedente o pedido.
Também por isso ficou descontextualizada no voto do STJ a citação às Instituições de Dinamarco, como se ela pudesse sustentar a conclusão pela possibilidade de julgamento de procedência liminar para decretação do divórcio. Na mesma obra citada, o referido autor expressamente entende pela inconstitucionalidade do julgamento liminar do mérito em favor do autor (procedência liminar da demanda), por violação ao contraditório [4], não havendo nenhum espaço para supor que haveria qualquer exceção em relação à procedência liminar do divórcio.
É, portanto, inconstitucional cogitar de uma decisão de mérito, ível de formação de coisa julgada, sem a oportunidade do contraditório prévio (CF/88, artigo 5º, LIV e LV), (seria despiciendo dizer, mas) independentemente da natureza do direito alegado pela parte autora na demanda, ou seja, ainda que se trate de direito potestativo.
Exatamente por essa razão o código ite apenas a improcedência liminar do pedido (C, artigo 322), já que nesse caso o julgamento é favorável a quem não está na relação processual. Em contrapartida, a imposição do estado de sujeição pela procedência do direito potestativo exige, naturalmente, contraditório prévio.
Ideias insubsistentes
Aliás, nesse ponto, o pedido autoral deduzido no caso que chegou ao STJ parece até menos heterodoxo do que aquele que acabou sendo engendrado pela 3ª Turma, porque, sabendo ser descabida uma decisão de mérito desabastecida da oportunidade do contraditório, a parte autora havia solicitado, naquele processo, o divórcio como tutela de evidência.
Como a 3ª Turma reconheceu no acórdão, é insubsistente a ideia de uma alteração de estado civil decretada por meio de uma decisão precária (não é demasia lembrar que a tutela de evidência é espécie de tutela provisória e, portanto, sujeita a revisão ou revogação a qualquer momento — C, artigo 296). Não orna com a natureza desconstitutiva, nem com a irreversibilidade do divórcio.
Mas não são menos insubsistentes (1) a ideia de que a parte requerida, no processo de divórcio, só poderia concordar ou discordar do mérito do pedido e (2) a ideia de que seria possível uma decisão de procedência que dispensa o prévio contraditório.
Dito isso, é preciso finalizar lembrando que a decisão proferida pela 3ª Turma no REsp nº 2.189.143/SP não configura um precedente vinculante, nem é capaz de representar um entendimento consolidado do Superior Tribunal de Justiça a respeito da questão, que, inclusive, parece exigir — pelas razões acima — uma reflexão mais profunda e alentada.
Enquanto isso, nos parece mais adequada a solução amplamente utilizada em Varas de Família e ratificada em algumas decisões de tribunais: decretar o divórcio na primeira audiência do processo, com anuência do réu devidamente representado. Essa técnica é capaz de assegurar, concomitantemente: a) celeridade, já que o divórcio, mesmo após citação, poderá ser decretado logo no início do processo, sem estar condicionado à solução das demais questões e pedidos cumulados (alimentos, guarda de filhos menores, regulação da convivência ou partilha de bens); e b) o contraditório, possibilitando a anuência ou manifestação da parte requerida, que, como dito, nem sempre se reduz à resistência ao pedido de divórcio.
Trata-se de solução compatível com nosso sistema, (1) sem criar a rechaçada (e inconstitucional) figura da “procedência liminar”, (2) sem desvirtuar o regime da tutela de evidência e (3) sem fugir do procedimento especial das ações de família. Além disso, eventuais pedidos urgentes, como separação de corpos e adoção de medidas protetivas, continuam íveis de deferimento em sede de tutela provisória, sem se confundirem com o pedido de divórcio.
[1] Embora disputada doutrinariamente, a noção de direito potestativo aqui é tomada no sentido atribuído, entre outros autores, por Pontes de Miranda, para quem “há […] poderes que existem por si, que são direitos, independentemente de outros”; lembra-se que chegaram a ser chamados de “direitos de poder jurídico”; nesse ensejo, “se atendemos a que à pessoa é dado o poder, às vezes, de influir na esfera jurídica de outrem, adquirindo, modificando ou extinguindo direitos, pretensões, ações e exceções, ressalta a existência de direitos formativos, que são espécie de direitos potestativos” (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1955, p. 242, t. V, itálicos no original).
[2] Sobre os notórios problemas do “processo civil do autor” e da visão apequenada da posição da parte requerida no processo, por todos: SICA, Heitor Vitor Mendonça. O direito de defesa no processo civil brasileiro: um estudo sobre a posição do réu. São Paulo: Atlas, 2011, im.
[3] No Estado do Espírito Santo, o Tribunal de Justiça, ao julgar o Agravo de Instrumento n. 5005693-46.2021.8.08.0000 decidiu postergar a decretação do divórcio diante de fundada dúvida sobre a capacidade civil plena do cônjuge varão. O Tribunal considerou necessária a realização de diligências para verificar a efetiva vontade e o discernimento do cônjuge sobre o divórcio e suas consequências jurídicas. Caso itida a possibilidade de divórcio liminar, o divórcio seria decretado sem que essa alegação (incapacidade) fosse considerada.
[4] No item de julgamento liminar do mérito, o autor afirma que: “Quando um dispositivo similar a esse foi introduzido no Código de Processo Civil de 1973 (art. 285-A) chegou a ser suscitada uma dúvida quanto à sua compatibilidade constitucional em virtude de uma suposta transgressão à garantia do contraditório. Na realidade, porém, esse vício somente poderia ocorrer se a lei autorizasse o juiz a julgar liminarmente o mérito também a favor do autor (procedência da demanda), sem a presença do réu na relação processual – o que, na realidade, está muito longe daquilo que tal dispositivo autoriza” (DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 2019, n. 1.223, p. 481, v. III).
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