A leviana oposição entre a garantia dos direitos de vítimas e de autores de delitos
10 de abril de 2025, 6h30
A percepção de uma suposta oposição entre a garantia dos direitos de vítimas e de autores (ou suspeitos da autoria) de delitos não é rara no Brasil. Um exemplo recente foi percebido quando, diante do anúncio do plano Pena Justa [1], enquanto estratégia para lidar com as violações sistemáticas de direitos humanos nas prisões, reconhecidas pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 347,[2] uma parcela da população expressou seu descontentamento com afirmativas no sentido de que, no Brasil, “o Judiciário só se preocupa com bandidos”, ou que “ninguém está preocupado com os direitos humanos das vítimas”. Esse tipo de reação revela uma equivocada percepção sobre o papel do sistema de justiça em um Estado Democrático de Direito e sobre a relação de direitos envolvidos.
Vítimas, segundo a Declaração dos Princípios Básicos de Justiça Relativos às Vítimas de Crime e de Abuso de Poder, da Organização das Nações Unidas, são pessoas que tenham sofrido dano físico ou mental, sofrimento emocional, prejuízo econômico ou atentado aos seus direitos fundamentais, que tenham sido resultado de ações ou omissões violadoras das leis penais [3].
Seus direitos, por óbvio, devem ser resguardados, incluindo o direito ao o à justiça e a garantia de sua dignidade durante a participação de todos os atos, evitando sua revitimização. Além disso, a reparação dos danos sofridos pelas vítimas é um elemento que tem recebido, cada vez mais, relevância em nosso ordenamento jurídico, viabilizando que suas necessidades sejam reconhecidas pelo Estado e pela sociedade e impedindo que a vítima fique desamparada. Afinal, a punição do ofensor não é a solução para todos os males enfrentados por quem é vitimizado.
Nenhum desses direitos, porém, é assegurado através da supressão de direitos e garantias fundamentais do acusado, de condenações injustas ou duvidosas pautadas em baixo standard probatório, da aplicação de penas desproporcionais ou abusivas, ou da submissão do ofensor a condições cruéis e degradantes.
Não obstante, são recorrentes os casos em que a figura da vítima é utilizada como justificativa para propostas que visam agravar a situação daqueles eventualmente considerados infratores, incluindo medidas que flexibilizam ou violam garantias constitucionais. Apesar da retórica, muitas dessas propostas não atendem à expectativa de proteção das vítimas e não beneficiam diretamente quem foi vitimizado, além de colocarem em risco importantes conquistas do Estado Democrático de Direito [4][5][6][7].
Cumpre acrescentar que o enfoque exclusivo em agravar a situação de suspeitos, acusados e apenados é, na realidade, um dos fatores que contribuem para o tão criticado papel periférico ocupado pelas vítimas no processo penal brasileiro, que foca quase exclusivamente na identificação e condenação de quem violou a lei, reduzindo a vítima a um mero instrumento probatório [8]. A garantia dos direitos e interesses das vítimas de crimes, por outro lado, é resultado da adoção de políticas e medidas focadas na própria vítima e na melhoria das condições de seu acolhimento e participação no sistema de justiça criminal, e não fruto de propostas focadas em piorar as condições de quem praticou o crime [9].

Os direitos dos acusados, como o devido processo legal, a ampla defesa e a presunção de inocência, são essenciais para evitar erros judiciários, abusos de poder e condenações indevidas de qualquer cidadão. Da mesma forma, os institutos da execução penal que asseguram a dignidade e os direitos humanos dos apenados, têm o objetivo de garantir, conforme determina a Constituição Federal, que a pena não seja cruel e seu cumprimento assegure o respeito à integridade física e moral. Essa garantia não implica “impunidade”, nem a exclusão dos direitos das vítimas. Ao contrário, representa a busca por um julgamento justo e legítimo, assim como o respeito à Constituição e aos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário [10][11].
Retórica populista
Ao contrário do que pode parecer, a proteção de direitos no processo penal não é um jogo de soma zero, em que a segurança dos direitos de um implica na supressão de garantias de outro. Na realidade, um sistema justo e equilibrado é aquele que assegura tanto os direitos dos acusados quanto os das vítimas, promovendo respeito à dignidade humana e às instituições democráticas.
A oposição entre esses dois conjuntos de direitos é fruto de uma construção retórica populista e midiática que frequentemente explora o sofrimento da vítima e o clamor popular por justiça imediata, traduzidos em demandas por punições severas e indiscriminadas [12][13]. A prestação jurisdicional em casos criminais, contudo, não deve ser resumida à mera retribuição vingativa e ional pelo mal praticado [14].
Outro ponto que normalmente sustenta essa oposição é a ideia de que agravar a situação do ofensor, reduziria a incidência de crimes e preveniria que outros se tornem vítimas em momento posterior. Tal ideia tem raízes nas funções de prevenção geral e especial comumente atribuídas à punição criminal, como forma de legitimar e racionalizar sua aplicação, porém, essa pretensa eficácia preventiva atribuída ao Direito Penal encontra dificuldades em ser demonstrada empiricamente. Se o objetivo é realmente preventivo, é necessário, pois, abandonar a falsa percepção do Direito Penal como solução para todos os problemas e pensar em propostas que não foquem apenas em uma retribuição cada vez mais severa do delito, mas em evitar que esse delito aconteça, por meio de medidas anteriores e fora da esfera punitiva [15][16].
É evidente a necessidade de refletir nosso sistema de persecução penal criticamente a partir da perspectiva da vítima, negligenciada por décadas diante do chamado “confisco do conflito” pelo Estado [17][18]. O Projeto de Lei 3.890/2020, que visa instituir o Estatuto da Vítima em nosso ordenamento jurídico, aparenta, ao menos por enquanto, trazer uma mudança de paradigma nesse sentido, ao apresentar propostas direcionadas ao reconhecimento e à garantia de direitos às vítimas, sem que isso seja tido como sinônimo de mais punição ou de restrição de direitos do ofensor [19]. Aguardemos, porém, a finalização dos trâmites legislativos para verificar, em caso de aprovação, o teor da legislação em seu produto final e as formas como será colocada em prática.
De todo modo, a referida proposta também já se tornou alvo de críticas por aqueles que enxergam, na punição do autor do delito, a solução de todos os problemas da vítima, e seu principal direito a ser assegurado. Isso indica a necessidade, justamente, de se debater, cada vez mais, as temáticas apontadas acima. Tratar os direitos de vítimas e de réus como um cabo de guerra distorce o papel do sistema de justiça criminal e mina a construção de políticas efetivas para ambos os lados.
[1] BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Plano Pena Justa. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario/plano-pena-justa/. o em 4 de abril de 2025.
[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 347. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4783560. o em: 4 de abril de 2025.
[3] ONU – Organização Das Nações Unidas. Declaração dos Princípios Básicos de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder, 1985.
[4] ZEHR, Howard. Trocando as lentes: justiça restaurativa para o nosso tempo. 5. ed. Edição de 25º aniversário. São Paulo: Palas Athenas, 2024.
[5] OLIVEIRA, Ana Sofia Schmidt de. A vítima e o direito penal, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
[6] BUENO DE AZEVEDO, Paulo. Justiça restaurativa e a busca do protagonismo esquecido da vítima. Revista Internacional de Vitimologia e Justiça Restaurativa, v. 1, n. 1, p. 41-66, 2023.
[7] KUWAHARA, Shigueo. A influência dos movimentos de vítimas na elaboração das leis penais. Revista de Estudos Jurídicos da UNESP, Franca, v. 19, n. 30, 2017.
[8] MORGADO, Helena Zani. Afasta de mim esse cálice: sobre a necessidade de conferir protagonismo ao ofendido no processo penal. Revista de Direito da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro nº 32, p. 338-353, 2022.
[9] BARROS, Flaviane de Magalhães. A vítima de crimes e seus direitos fundamentais: seu reconhecimento como sujeito de direito e sujeito do processo. Revista De Direitos E Garantias Fundamentais, n. 13, p. 309–334, 2014.
[10] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 20. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2023.
[11] TOURINHO, Luciano et al. Execução penal banal comentada: escritos dogmáticos e críticos sobre o sistema de justiça penal pátrio. – 1. Ed – São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2023.
[12] ZAFFARONI. Eugenio Raúl. A questão criminal. Tradução Sérgio Lamarão. 1. Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2013.
[13] CASARA, Rubens R. R. Processo Penal do Espetáculo: e outros ensaios – Florianópolis: Tirant lo Blanch Brasil; 2ª edição, 2018.
[14] TAVARES, Juarez. Crime: crença e realidade. Rio de Janeiro: Da Vinci Livros, 2021.
[15] KARAM, Maria Lúcia. De crimes, penas e fantasias. Niterói: Luam, 1991.
[16] KARAM, Maria Lúcia. A “esquerda punitiva”: vinte e cinco anos depois. – 1. ed – São Paulo: Tirant lo Blanch, 2021.
[17] CHRISTIE, Nils. Conflicts as property. The British Journal of Criminology, v. 17, n. 1, 1977.
[18] CARVALHO, Thiago Fabres de et al. Criminologia crítica e justiça restaurativa no capitalismo periférico. 2. ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2023.
[19] BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei nº 3890, de 2020. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/166908. o em 4 de abril de 2025.
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