Como uma súmula que nasce no cível acaba com a liberdade de milhares?
10 de abril de 2025, 8h00
Abstract: há uma nítida diferença entre cível e crime. Neste, uma prova ilícita por si só pode acarretar a alteração da decisão. Tem autonomia. Explico: no cível, se há dois argumentos (A e B), e o recurso é sobre B, o relator pode dizer que isso não importa, uma vez que mesmo que você tenha razão por B, o argumento A mantém a decisão. Por isso a raiz da Súmula 182 é cível. Esse é seu DNA. Já no crime uma ilicitude da prova pode ser o ponto central do recurso. Assim como uma violação de lei federal. Argumentos autônomos. Portanto, condenado por A, B e C, eu recorro por C e mesmo que A e B se mantenham, C sozinho resolve o imbróglio. Logo, qual é o sentido da Súmula 182 no crime? Para limpar pautas e negar direitos?
1. As súmulas, sua validade e seu DNA
Vamos dialogar?
O que é uma súmula? Para começar, não é um precedente. Um conjunto de precedentes pode ser transformado em súmula. Esse é conceito de súmula vinculante. Que está na lei.
Vinculante, mesmo, só a do STF. A praxe, porém, já antes da EC 45, itia que súmulas tinham um caráter vinculante. Com valor superior às leis. Isso é velho.
Súmula, então, sempre deve(ria) ter um DNA. Afinal, é produto de vários precedentes. Então: de onde veio? Do que se alimentou? Por que se exige o DNA? Ora, se ela é resultado de julgamentos reiterados, então existem casos que conformam sua raiz. Logo, nenhuma súmula poderia ser aplicada a casos que não possuem o mesmo DNA. Não está claro isso? Súmula do cível deve ser aplicada no cível. Para começar.
Nas práticas cotidianas, qualquer súmula a a ser uma super lei. Mesmo a que não é vinculante nos termos da CF. Demonstrarei isso.
Vamos a um exemplo, talvez o primeiro ou o segundo mais doloroso para o direito de defesa na área criminal – a das liberdades: falo da Súmula 182 do STJ, invocada milhares de vezes todos os dias, fulminando direitos de todas as áreas, jogando, inclusive, milhares de pessoas nas prisões por não terem seus recursos (AREsp) examinados no STJ ou no STF. Seria interessante um levantamento – eis uma sugestão para TCC e dissertações/teses – para saber quantos pessoas perderam casa, comida, pensão, liberdade, emprego por causa da invocação da Súmula 182. Sem falar da Súmula 7 do STJ.
2. Uma súmula bastarda: veio do cível para fulminar recursos de liberdade – quantas pessoas já perderam a liberdade por causa da Súmula 182? Dezenas de milhares? Centenas de milhares?
O teor da Súmula 182 é o seguinte:
“É inviável o agravo do art. 545 do C que deixa de atacar especificamente os fundamentos da decisão agravada.”
Fazendo um exame de DNA da Súmula 182, descobrimos que nasceu de genitores civis (não criminais). Foi aprovada em 5/2/1997, DJ 17/02/1997. A menção feita ao artigo 545 diz respeito ao C/1973. Só isso já mostra que deveria ser reexaminada à luz do C de 2015. Um dos precedentes que foi utilizado na aprovação da súmula foi AgRg no Ag 46.262-SP (6ª T, 13/6/1995 – DJ 30/10/1995).
Assim:
No AgRg no Ag 86.073-GO (3ª T, 28/11/1995 – DJ 5/2/1996), que tratou de processo de execução e que também serviu à edição da súmula, fica claro o objetivo de se colocar a necessidade de o agravo regimental se insurgir contra o despacho que negou provimento ao agravo. O agravante deve mostrar o erro em suas razões, e não somente repetir a fundamentação do recurso especial, sem oferecer qualquer argumento capaz de elidir a argumentação da decisão impugnada. Até aí, tudo tranquilo.
Porém, não está dito na súmula que o recorrente deve impugnar TODOS os argumentos. Ou seja, a própria súmula está sendo superinterpretada [1]. Ora, se nem o juiz está obrigado a responder a TODOS os argumentos das partes, por qual razão o recorrente não poderia escolher um dos pontos da derrota de seu REsp? Há coisas lógicas que parecem não entrar no imaginário jurídico.
3. Efeitos colaterais da Súmula 182 em matéria criminal
Uma súmula do cível aplicada no crime: essa transposição é fundamentada no “princípio da dialeticidade”, segundo o qual incumbe ao relator não conhecer de recurso inissível, prejudicado ou que não tenha impugnado especificamente os fundamentos da decisão recorrida. O primeiro problema está exatamente no fato de que não há qualquer ligação do princípio em tela com a aludida súmula.

De todo modo, consta que a dialeticidade seria aplicável na seara criminal por força do artigo 3º do Código de Processo Penal, pelo qual a lei processual penal itirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito (REsp 1.439 .866/MG, julgado em 24/4/2014; Agravo regimental não conhecido). Também STJ – AgRg no AREsp: 2.100.406 MG 2022/0097663-3, 9/8/2022, T6 – 6ª Turma). De todo modo, ainda não está explicado o porquê de ser chamado de “princípio da dialeticidade”.
Deixando de lado a dialeticidade, temos que, na verdade, a Súmula 182 é uma construção de jurisprudência defensiva, invadindo a esfera das garantias do cidadão, como se uma discussão em execução de cédula rural (essa foi a origem) fosse a mesma de uma prova ilícita ou uma emendatio libeli ilegal que levou a condenação de uma pessoa ao regime fechado. Ou uma prova ilícita que o tribunal deixou de apreciar. É disso que se trata. O adágio forma dat esse rei, próprio do processo civil, invadiu a seara das liberdades. Há julgados do STJ em que se diz que, embora possa haver razões para reformar a condenação, o obstáculo formal da Súmula 182 impede.
Impressiona a conformidade da doutrina ou de parte dela com esse fenômeno. Há quantos anos essa súmula faz vítimas na área criminal (para falar apenas dela)?
Sobre o tema, Dierle Nunes e Aurélio Viana publicaram um interessante texto no Conjur, Ônus da dialeticidade: nova “jurisprudência defensiva” no STJ [2]? Colaciono alguns trechos que julguei pertinentes.
(i) Em primeiro lugar, o C-2015 criou mecanismos de combate à jurisprudência defensiva; curiosamente, isso foi ignorado pelos tribunais, mormente o STJ;
(ii) a existência do aludido ônus (de impugnação) para a parte não poderia gerar um modo simples, mecânico, de qualquer tribunal dizer que essa não teria impugnado adequadamente uma decisão sem justificar adequadamente tal descumprimento.
(iii) isso parece ocorrer de forma evidente com a nova tendência de negativa de conhecimento de recursos com base na alegada violação do ônus da dialeticidade.
(iv) após o início da vigência do C/2015 o STJ vem negando seguimento ou provimento aos recursos de agravo interno que não tenham impugnado especificamente os fundamentos da decisão do relator. O ônus da dialeticidade se transforma numa espécie de requisito de issibilidade do recurso de agravo.
(v) Por outro lado, de acordo com o artigo 1.021, § 1º, o recorrente impugnará especificadamente os fundamentos da decisão agravada. Fala-se, portanto, no dever de o agravante enfrentar os fundamentos da decisão, e não todos os argumentos, o que tem gerada a inissibilidade recursal por ofensa à dialeticidade. Veja-se: fundamentos da decisão e não todos os argumentos.
Corretos os argumentos de Dierle e Aurélio. Acrescento que
(i) a Súmula 182 é anterior ao C-2015. O advento do artigo 489, par 1º. e seus seis incisos revogou a súmula.
(ii) Ou, no mínimo, deu-lhe uma nova interpretação, principalmente para que o próprio tribunal não caia em uma contradição: ao mesmo tempo em que não exige que o juiz analise todos os argumentos (bastam aqueles que permitam a compreensão), o STJ (e o STF) exige que, no agravo, a parte enfrente todos os argumentos, mesmo aqueles despiciendos para a compreensão. Parece inusitado isso, pois não?
Exemplificadamente: se há três fundamentos pelos quais o REsp não foi conhecido, o agravo dessa decisão pode facilmente se restringir a um dos argumentos, mormente se for uma questão como prova ilícita ou violação de lei federal.
Outra coisa: se examinarmos os seis incisos do artigo 315 do P (espelhamento do C), veremos que sua observância detalhada afasta a incidência do modo como se aplica corriqueiramente a Súmula 182.
Veja-se o imbróglio. Há julgados do próprio STJ (afinal, não vivemos em um sistema de precedentes?) que não aplicam de forma ortodoxa a Súmula 182. Assim foi no AgInt nos EDcl nos EAREsp nº 1.580.983/DF, relator ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Corte Especial, julgado em 27/2/2024. A holding do precedente é:
A ausência de impugnação de fundamentos autônomos não acarreta o não conhecimento do recurso, mas, tão somente, a preclusão do tema, o que não se aplica em caso de decisão com fundamento único ou com capítulos que dependam um do outro. É um precedente da Corte Especial.
Vou dizer o dito na holding do acórdão de outro modo: há uma nítida diferença entre cível e crime. No crime uma prova ilícita por si só pode acarretar a alteração da decisão. Tem autonomia. Explico: no cível, se há dois argumentos (A e B), e o recurso é sobre B, o relator diz que isso não importa, uma vez que mesmo que você tenha razão por B, o argumento A mantém a decisão. Por isso a raiz da sumula é cível. Esse é o DNA. Já no crime uma ilicitude da prova pode derrubar tudo. Ou a violação de lei federal pode ser prejudicial ao restante. Portanto, condenado por A, B e C, eu recorro por C e mesmo que A e B se mantenham, C sozinho derruba o caso. Como consta no precedente da Corte Especial acima, da relatoria do ministro Villas Bôas Cueva, um argumento (capítulo) não depende de outro. Logo, qual é o sentido da sumula 182 no crime? Para limpar pautas e negar direitos?
Do mesmo modo, há o AgRg no AREsp n. 1.117.326/PA, relator ministro Jorge Mussi, 5ª Turma, julgado em 20/2/2018:
“Súmula 182/STJ. Incidência afastada. Impugnação dos termos da decisão de inissibilidade do REsp. Primazia da resolução de mérito. 1. “A impugnação, ainda que de forma sucinta, de todos os fundamentos da decisão de inissão do recurso especial por meio do agravo, afasta a incidência da Súmula 182/STJ. Logo, preenchidos os requisitos de issibilidade do agravo, correta a decisão que determinou a reautuação dos autos em recurso especial” (AgRg no AgRg nos EDcl no AREsp 499.574/RS, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 19/08/2014).
E o acórdão traz uma questão de suma relevância:
“2. Ademais, não se pode perder de vista a finalidade instrumental do processo, que não deve ser concebido como um fim em si mesmo, mas como um instrumento para a concretização de um direito material. Este é o posicionamento adotado pelo Código de Processo Civil de 2015, que traz como diretriz a primazia da resolução de mérito, cuja aplicação ao processo penal é autorizada em razão da previsão contida no art. 3º do P”.
Veja-se que Campbell faz a releitura da súmula à luz do novo C. Correto. Primazia da resolução do mérito: eis o ponto de estofo.
Por fim, há mais um precedente da Corte Especial (EREsp nº 1.424.404/SP, relator ministro Luis Felipe Salomão, Corte Especial, julgado em 20/10/2021,) – penso que, sendo da Corte Especial, podemos considerar o precedente como vinculante (e é por força do art. 927, V, C – Art. 927, verbis: Os juízes e os tribunais observarão: V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados) – com a seguinte formatação:
“Embargos de Divergência em REsp. Processo Civil. Agravo Interno. Desnecessidade de Impugnação de todos os capítulos autônomos e/ou independentes da decisão monocrática agravada. Inaplicabilidade da súmula 182/STJ.”
Numa palavra e várias perguntas:
(i) Afinal, qual é o alcance e o limite da Súmula 182?
(ii) No que o advogado deve ser fiar?
(iii) A Súmula 182 é uma espécie de pedra filosofal da jurisprudência defensiva?
(iv) Com a Súmula 182 qualquer coisa vira ouro?
(vi) Ou vira rejeito?
(vii) Quem diz o sentido do que é “atacar especificamente os fundamentos da decisão agravada”?
(viii) E não há diferença entre cível e crime? E o que é autonomia do argumento?
Eis o conjunto de perguntas a serem feitas aos defensores do sistema de precedentes e da tese de que o direito é indeterminado. O direito é tão “indeterminado” (sic) que há milhares de presos no Brasil cujos recursos foram fulminados pela Súmula 182 (e pela Súmula 7). Afinal, os causídicos não atacaram os fundamentos… Quais? Todos? E se um deles era irrelevante? Eis o debate. Ou será a quadratura do círculo, metáfora do impossível desde As Aves, de Aristófanes?
[1] Nesse sentido, ver Streck, L.L. e Trindade, A.K. Superinterpretação. Tirant Lo Blanch, 2022. Obra classificada entre os cinco finalistas do Prêmio Jaburi.
[2] Disponível aqui /2017-mai-15/onus-dialeticidade-jurisprudencia-defensiva-stj/
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