Imparcialidade do juízo rescisório: críticas ao regimento interno do TJ-GO
17 de abril de 2025, 20h42
A imparcialidade do julgador sempre foi uma questão central para o Direito Processual Civil.

Pode-se dizer que, desde o advento do Estado Liberal e das revoluções burguesas do século 18, a imparcialidade se tornou um elemento essencial para a legitimidade da jurisdição, notadamente a partir da compreensão de um estado fundado na independência entre os poderes constituídos.
Como bem enfatizado pelo sempre lembrado Barbosa Moreira [1], essa independência é essencial, pois “[…] ao juiz não deve importar quem vença o litígio, que saia vitorioso o indivíduo x ou o indivíduo y considerados nas suas características de indivíduos. Mas deve importar, sem sombra de dúvida, que saia vitorioso quem tem razão. Ao juiz, como órgão do Estado, interessa que vença aquele que efetivamente tenha razão.”
Embora a ideia de imparcialidade seja antiga, a sua tutela e fiscalização persiste sendo uma questão candente, especialmente na contemporaneidade, sendo constantemente uma pauta tanto no Poder Legislativo quanto no Poder Judiciário.
E, nesse contexto, merece atenção a estratégia adotada pelo Tribunal de Justiça de Goiás (TJ-GO) para tutelar a imparcialidade no julgamento das ações rescisórias, especialmente com relação àquelas ajuizadas em face de acórdãos e decisões monocráticas proferidas por seus membros.
Basicamente, a partir da Emenda nº 02/2023, que alterou a redação do §1º, do artigo 16 [2], do Regimento Interno do tribunal, foi estabelecida uma espécie de “impedimento automático” e de “competência por prevenção” aplicáveis, exclusivamente, para as ações rescisórias.
Diz-se por “prevenção”, pois o modelo foi aparentemente idealizado de forma a tornar impossível que os julgadores que integraram o colegiado responsável pelo julgamento da causa rescindenda possam participar do julgamento da ação rescisória.
Sendo mais específico: no TJ-GO há 11 Câmaras Cíveis, que são compostas por cinco julgadores e divididas em 3 Seções Cíveis integradas por 20 julgadores cada. A 1ª Seção congrega os membros da 1ª, 2ª, 3ª e 7ª Câmaras; a 2ª Seção envolve as 4ª, 5ª, 6ª e 8ª Câmaras, e a 3ª Seção é composta pelas demais.
A partir dessa organização, a norma regimental estabelece que as Seções são incompetentes para julgar demandas rescisórias apresentadas contra decisões de Câmaras que a componham. Além disso, exclui a possibilidade de distribuição para definir, desde logo, o que cada Seção poderá julgar: a 1ª Seção julga as ações apresentadas contra acórdãos dos colegiados que compõe a 3ª; a 2ª Seção analisa os acórdãos dos colegiados que integram a 1ª, e a 3ª Seção processa as ações ajuizadas contra os acórdãos das Câmaras da 2ª Seção.
Interessante destacar que, na jurisdição criminal, o TJ-GO não adotou essa metodologia para o julgamento da revisão criminal – irmã gêmea da ação rescisória –, que permanece submetida à distribuição por sorteio entre as Seções Criminais e podendo ser julgada por membros do colegiado que proferiram o provimento penal condenatório (artigo 17, §2º [3], do RITJGO).
À vista desse contexto, a sistemática adotada pelo TJ-GO desperta profundas inquietações, especialmente em virtude da centralidade do juiz imparcial na construção histórica do processo civil democrático.
A primeira reflexão a ser considerada é a distinção quanto à natureza do juízo de mérito que é exercido no âmbito dos recursos em contraponto com aquele que é exercido pelos tribunais no julgamento das ações rescisórias.
De modo geral, na pretensão recursal, a parte atua motivada por aquilo que é mais natural no ser humano: o inconformismo. O ponto de partida é um ato judicial recorrível que, bem ou mal proferido, causou desagrado, sendo o recurso o instrumento adequado para manifestação do descontentamento e reanálise do caso.
Na pretensão rescisória, por outro lado, o jurisdicionado se volta contra a coisa julgada, que é norma de sobredireito (artigo 6º [4] da Lindb) protegida por preceito constitucional (artigo 5º, XXXVI [5], da CF), cujo aperfeiçoamento só ocorre após a preclusão definitiva. Por relativizar a proteção conferida pela própria lei fundamental, o legislador foi criterioso na sua regulamentação, tornando explícito que o seu cabimento só será possível diante da ofensa clara a preceitos superiores, razões de ordem pública, prova nova e para assegurar que, em situações excepcionais, a falibilidade humana não fique isenta de correção mesmo após a preclusão.
A emenda regimental aprovada pelo TJ-GO, no entanto, parece ignorar essas distinções, pois, ao pré-determinar qual será o órgão revisor, o regimento garante ao jurisdicionado que a ação rescisória será julgada por um órgão totalmente distinto daquele que proferiu o ato judicial questionado.

Cria-se, nesse cenário, uma espécie de instância recursal indireta e com um efeito colateral relevante: o regimento abre margem para que a parte, insatisfeita com o resultado do processo, manipule a composição da corte e exerça a pretensão rescisória conforme à conveniência do seu inconformismo, comprometendo, em absoluto, a estabilidade da coisa julgada.
Também, afigura-se ponto de atenção a forma de distribuição das ações rescisórias entre os colegiados.
O apego à garantia de imparcialidade pode até respaldar a premissa de que uma seção não julgará as ações rescisórias contra atos judiciais proferidos pelos colegiados que a integram. Porém, não justifica a razão pela qual todas as causas terão o juízo rescisório previamente e obrigatoriamente pré-estabelecido.
Isto é: a rigor, não comprometeria a imparcialidade se houvesse a possibilidade da 1ª Seção julgar ações rescisórias contra atos judiciais oriundos dos colegiados da 2ª e 3ª Seções Cíveis, ao invés de, necessariamente, só ser competente para julgar as causas da 3ª Seção.
Nesses termos, a previsão regimental incorre em claro vício de inconstitucionalidade, na medida em exclui a distribuição por sorteio – que é a regra geral do sistema (artigo 284 [6] do C) –, cria uma espécie de prevenção e inova o rol das hipóteses de impedimento (artigo 144 do C), tudo em contrariedade às regras previstas no Código de Processo Civil e em usurpação à competência da União para legislar sobre o direito processual (artigo 22, I, da CF).
Não fosse o bastante, a alteração regimental não é corroborada pelo C, ou mesmo pela jurisprudência, especialmente a do Supremo Tribunal Federal.
É bem verdade que o legislador teve uma preocupação particular com a imparcialidade do juízo rescisório. Nesse sentido, o artigo 971, parágrafo único, do C, estabelece: “A escolha de relator recairá, sempre que possível, em juiz que não haja participado do julgamento rescindendo”.
Dinâmica de julgamento desperta inquietações
É importante frisar, no entanto, que a cautela ficou adstrita à figura do relator e tão somente à título de recomendação. Por conseguinte, a norma processual não impõe a proibição categórica do relator da causa original o sê-lo também na avaliação da rescisória, tampouco atribui a pecha de nulidade caso isso ocorra.
Ademais, a recomendação legislativa dialoga, harmoniosamente, com a orientação da jurisprudência dos tribunais superiores. A súmula 252, do STF, por exemplo, consolida a tese de que “na ação rescisória, não estão impedidos juízes que participaram do julgamento rescindendo”.
Em sentido análogo, a Súmula 72, do STF, também adere a essa mesma premissa ao avaliar a questão da imparcialidade no julgamento de recursos oriundos da Justiça Eleitoral: “No julgamento de questão constitucional, vinculada a decisão do Tribunal Superior Eleitoral, não estão impedidos os Ministros do Supremo Tribunal Federal que ali tenham funcionado no mesmo processo, ou no processo originário”.
Mesmo que se tratem de súmulas editadas no período anterior à Constituição Republicana, as orientações compendiadas persistem válidas e sintonizadas com o espírito do juízo rescisório. Prova disso é que a jurisprudência do STJ, especialmente da 1ª e 2ª Seções, vem reiteradamente aplicando esses verbetes em seus julgados: AgInt na AR nº 7.448/DF, relator ministro Herman Benjamin, 1ª Seção, julgado em 27/6/2023, DJe de 30/6/2023; AR nº 6.024/SP, relatora ministra Maria Isabel Gallotti, 2ª Seção, julgado em 14/6/2023, DJe de 22/6/2023.
Dentro dessa perspectiva, e sem qualquer pretensão de esgotar o assunto, percebe-se que as disposições incluídas no Regimento Interno do TJ-GO, a partir da Emenda nº 02/2023, instituem uma dinâmica de julgamento das ações rescisórias que desperta relevantes inquietações a respeito da sua conformidade constitucional.
Embora seja evidente que a iniciativa buscou aprimorar a transparência nos julgamentos do tribunal, as modificações introduzidas ao regimento interno abrem margem a distorções e à fragilização de outros princípios igualmente caros ao devido processo legal – o que não se sustenta nem mesmo à luz do pretexto da imparcialidade.
É dizer: a imparcialidade se tutela dentro do sistema, não contra ele.
[1] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O juiz e a prova. Revista de Processo. 35, São Paulo: RT, 1984, p. 177- 184.
[2] Art. 16. A 1ª Seção Cível é composta pelos integrantes da 1ª, 2ª, 3ª e 7ª Câmaras Cíveis, a 2ª Seção Cível pelos integrantes da 4ª, 5ª, 6ª e 8ª Câmaras Cíveis e a 3ª Seção Cível pelos integrantes da 9ª, 10ª e 11ª Câmaras Cíveis, competindo-lhe processar e julgar: § 1º As ações rescisórias de acórdãos e decisões monocráticas serão processadas e julgadas pela 1ª Seção Cível, quando proferidos pelas Câmaras que integram a 3ª Seção Cível; pela 2ª Seção Cível, quando proferidos pelas Câmaras componentes da 1ª Seção Cível; e pela 3ª Seção Cível, quando proferidos pelas Câmaras integrantes da 2ª Seção Cível. Nos demais casos, ocorrerá normal distribuição entre as Seções Cíveis.
[3] Art. 17. A 1ª Seção Criminal é composta pelos integrantes da 1ª e 2ª Câmaras Criminais e a 2ª Seção Criminal é composta pelos integrantes da 3ª e 4ª Câmaras Criminais. Os dois colegiados somente podem decidir com a presença da maioria de seus membros, incluídos os respectivos Presidentes, eleitos, por votação secreta, para um mandato de dois anos, até a última sessão do biênio findante, competindo-lhe processar e julgar: […] § 2º A competência das Seções Criminais para o processamento e julgamento das ações revisionais será definida pela distribuição aleatória, evitando-se, sempre que possível, a distribuição para a relatoria de desembargador que participou do julgamento anterior.
[4] Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.
[5] Art. 5º, XXXVI da CF: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.
[6] Art. 284. Todos os processos estão sujeitos a registro, devendo ser distribuídos onde houver mais de um juiz.
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