Opinião

Ambulante senegalês foi morto pela PM-SP por ser quem era: negro e pobre

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  • é doutor em Engenharia Elétrica professor e chefe do Departamento de Engenharia Elétrica do Cefet-RJ fundador da ONG Wells of Changes e militante pelos direitos de imigrantes africanos no Brasil.

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17 de abril de 2025, 11h23

Permitam-me, com o coração aberto e em nome da dignidade humana, compartilhar estas palavras. Que sirvam de apelo e de alerta —para que cessemos, de forma urgente, a violência desproporcional e desumana que vem sendo dirigida contra imigrantes africanos em São Paulo.

Vídeo mostra o ambulante Ngagne Mbaye cercado antes de ser fuzilado pela PM

Estive recentemente no bairro do Brás (região central de São Paulo), ao lado de meus compatriotas senegaleses durante um ato de dor e resistência. A morte brutal de Ngagne Mbaye, vendedor ambulante senegalês, aos 34 anos, desencadeou uma onda de luto e indignação. Ele foi morto pela polícia paulista como se sua vida não valesse nada. No carrinho em que trabalhava, havia apenas os recursos para comprar os remédios da mãe doente e garantir o sustento de sua filha de quatro anos.

A engenharia de segurança pública aplicada naquele espaço é reveladora. Como engenheiro, reconheço a lógica de certos métodos. Mas “selecionar o alvo e posteriormente eliminá-lo” —abordagem que pode funcionar em equações matemáticas e algébricas— é inaceitável quando estamos lidando com vidas humanas. Porque aqui as variáveis são complexas, imprevisíveis, vulneráveis. Humanas.

Em pouco mais de um ano, dois cidadãos senegaleses perderam a vida pelas mãos da Polícia Militar de São Paulo. Isso é muito. Isso é inaceitável. Isso fere os princípios mais elementares do respeito à vida.

Seu único crime

A morte de Ngagne Mbaye remete à imagem selvagem da savana africana: uma búfala que acabou de dar à luz, cercada por leões famintos. Um predador avança sobre o filhote indefeso, mas a mãe se ergue com uma força ancestral para defendê-lo. Ngagne era essa búfala. Corajoso, digno, mas indefeso e desesperado diante da brutalidade.

O pensador senegalês Cheikh Anta Diop nos legou que o sistema opressor tentará acabar com você moralmente, depois intelectualmente, antes de acabar com você fisicamente. Ngagne não foi morto apenas por estar no lugar errado. Foi morto por ser quem era: um homem negro, africano, imigrante e pobre. Seu único crime foi tentar sobreviver.

Spacca

Somos um povo que resistiu à colonização — a maior tragédia da humanidade — e que sobreviveu à escravidão, à exploração, ao neocolonialismo e ao abandono. Mas também somos um povo que carrega uma força ancestral que o mundo ainda não conhece completamente. Não queremos guerra. Não buscamos confrontos. Queremos o mínimo: dignidade, respeito e justiça.

Sartre também nos lembrou: quando um povo não tem outro recurso senão escolher seu modo de morrer, quando tudo o que recebeu dos seus opressores foi o presente do desespero —o que lhe resta a perder? Essa pergunta ecoa em nossos corações.

O mestre Hampâté Bâ de Mali nos ensinou que a diversidade dos homens, das culturas e das civilizações é o que faz a beleza e a riqueza do mundo. A presença dos africanos no Brasil deveria ser celebrada como fonte de riqueza cultural. Em vez disso, tem sido transformada em alvo.

Ngagne Mbaye teve uma única arma: a desesperança. Ele teve um único recurso: escolher sua forma de morrer. Esperamos que pelo menos desta vez a sua morte não vire apenas mais um número nas estatísticas.

*artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo

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  • é doutor em Engenharia Elétrica, professor e chefe do Departamento de Engenharia Elétrica do Cefet-RJ, fundador da ONG Wells of Changes e militante pelos direitos de imigrantes africanos no Brasil.

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