Opinião

Pirâmides financeiras de criptoativos devem ser investigadas perante a PF

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  • é advogado no escritório Beno Brandão Advogados Associados mestre em Direito pela Universidade Curitiba especialista em Direito Penal Econômico e Empresarial e autor do livro "Bitcoin e Lavagem de Dinheiro".

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19 de abril de 2025, 6h02

O aumento das ofertas de investimentos envolvendo criptoativos tem provocado desafios relevantes para a persecução penal, sobretudo no que diz respeito à definição da competência investigativa e jurisdicional. Em diversas situações, essas ofertas se estruturam sob a forma de esquemas de pirâmide financeira, com ou sem efetiva aplicação dos recursos captados no mercado de criptoativos.

Nesses casos, a dificuldade reside em distinguir se a conduta configura crime contra o sistema financeiro nacional – cuja competência é da Justiça Federal –, ou se trata de um estelionato/infração à economia popular – de competência da Justiça Estadual.

A divergência de opiniões quanto ao enquadramento legal dessas condutas permite certo nível de discricionariedade às autoridades que analisam a competência de investigação – sobretudo dos delegados de polícia ou membros do Ministério Público que recepcionam o pedido de instauração de inquérito policial. Na prática, tem-se visto que os esquemas que possuem maior notoriedade (sobretudo os que tiveram maior captação de valores, que, em alguns casos, ultraam bilhões de reais), possuem uma tendência de ser investigado perante a Justiça Federal.

Por outro lado, nos casos de menor expressividade (ou aqueles cuja investigação verifica na fase preliminar à instauração do inquérito que terá dificuldades na descoberta da autoria delitiva), opta-se por utilizar outra argumentação para afastar a competência de investigação: afirma-se que não existem indícios de a que oferta de investimento era verídica, de forma que poderia se tratar exclusivamente de um delito de estelionato (ou um crime contra a economia popular).

Essa instabilidade compromete a eficácia das investigações. Isso porque frequentemente atrasa o seu início em meses. Nesse período, os autores de delito já podem ter logrado êxito na ocultação do patrimônio subtraído.

Diante disso, este texto busca responder à seguinte questão: em que medida a captação de recursos por uma pirâmide financeira que oferece investimento em criptoativos pode ser considerada um contrato de investimento coletivo (isto é, um valor mobiliário)?

Spacca

O efeito prático é a definição se os es dessas “empresas” podem ser responsabilizados por delitos contra o Sistema Financeiro Nacional, sobretudo (1) operar instituição financeira sem autorização legal (artigo 16 da Lei nº 7.492/86), gestão fraudulenta de instituição financeira (artigo 4º, caput, da Lei nº 7.492/86), apropriação de valores por instituição financeira (artigo 5º, da Lei nº 7.492/86) e a emissão desautorizada de valores mobiliários (artigo 7º da Lei nº 7.492/86).

A conduta típica de oferta de investimentos em criptoativos

A análise da tipicidade da conduta de “oferecer publicamente investimentos em criptoativos” exige a compreensão do conceito de instituição financeira para fins penais. Nos termos do artigo 1º da Lei nº 7.492/86, são equiparadas às instituições financeiras as pessoas jurídicas que, de forma principal ou ória, captem, intermedeiem ou apliquem recursos de terceiros, inclusive em moeda estrangeira, ou operem com valores mobiliários.

O elemento central da discussão é a caracterização do criptoativo como “moeda” ou “valor mobiliário”. Ainda que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tenha inicialmente afastado essa possibilidade, no HC 530.563/RS [1] houve uma reinterpretação do artigo 2º, IX, da Lei nº 6.385/76, reconhecendo que determinadas ofertas públicas de investimentos em criptoativos podem configurar Contrato de Investimento Coletivo (CIC), quando presentes os requisitos fixados pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

A CVM, por sua vez, aplica o chamado “teste de Howey”, que afirma seis requisitos para a configuração de um valor mobiliário: (1) existência de investimento; (2) formalização contratual; (3) natureza coletiva do investimento; (4) expectativa de retorno; (5) dependência do esforço de terceiros; e (6) oferta pública. Esses elementos foram fixados no Processo CVM RJ 2007/11.593[2] e são constantemente utilizados para definir se determinada operação se enquadra como valor mobiliário.

O desafio interpretativo reside na verificação da existência do primeiro requisito, sobretudo nos casos em que a oferta de investimento se mostra fraudulenta desde a origem – isto é, sem qualquer aplicação real dos valores captados. Em tais situações, haveria apenas a simulação de uma estrutura de investimento, o que ensejaria o debate sobre se a conduta poderia ser subsumida ao crime de estelionato ou de pirâmide financeira.

O entendimento do Superior Tribunal de Justiça

A jurisprudência do STJ tem reconhecido, de forma ainda incipiente, que a captação de recursos mediante esquemas de pirâmide pode configurar contrato de investimento coletivo desde que presentes certos requisitos objetivos.

Um dos julgados mais importantes do STJ sobre o tema é o Conflito de Competência n.º 208.808/PR, relatado pelo Ministro Sebastião Reis Júnior. O caso envolveu pessoas que, por meio de plataformas digitais, atraíam vítimas para realizar pagamentos via Pix, com promessas de retorno financeiro por meio de tarefas simples – como curtir vídeos em redes sociais – além de bônus por indicar novos participantes. O sistema só se mantinha com a entrada constante de novos integrantes, o que caracteriza um típico esquema de pirâmide.

Inicialmente, o juízo estadual havia entendido que a conduta configurava crime contra o Sistema Financeiro Nacional, uma vez que havia indícios de um contrato de investimento coletivo.

Ao analisar a questão, o STJ reforçou a importância de seguir os critérios definidos pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), autoridade responsável por regular o mercado de capitais. Neste caso em específico, entendeu-se que não se trataria de um contrato de investimento coletivo, visto que havia a necessidade do esforço da vítima (e não exclusivamente de terceiros), o que afastou a adequação a um valor mobiliário.

Entretanto, a decisão apresentou contornos importantes para decidir sobre o tema. Foi citado expressamente o conteúdo do Processo istrativo Sancionador nº 19957.001124/2021-74, que tratou da empresa InDeal – investigada por atuar sob a lógica de pirâmide financeira com promessa de ganhos em criptoativos.

Na decisão, o STJ ratificou dois pontos afirmados pela CVM: 1) quais seriam os critérios para definir quando uma oferta configura um contrato de investimento coletivo; e 2) a possibilidade de que esquemas de pirâmide também sejam enquadrados como operações com valores mobiliários, caso preencham certos requisitos.

Apesar disso, o entendimento deixou de considerar três (dos seis) requisitos do “teste de Howey”. A corte mencionou ser necessário: 1) a existência de oferta pública; 2) a formalização por contrato ou título; e 3) a promessa de retorno financeiro atrelado ao esforço de terceiros. O requisito mais importante – a efetiva realização de investimento com os valores captados – ficou de fora da análise.

Além disso, é importante notar que o caso mencionado pela CVM envolvia uma empresa (a InDeal) que alegava, como tese defensiva, ser apenas uma pirâmide financeira. Objetivo foi afastar a competência da CVM no Processo istrativo Sancionador. Porém, a autarquia identificou provas de que os recursos captados foram, de fato, aplicados na compra de criptoativos.

Significa dizer que o julgamento não resolveu a integralmente a problemática – apesar de ter servido como um guia inicial. Isso porque foi baseada em um caso concreto cujo investimento ocorreu. Por isso, o julgamento não resolve, de maneira autônoma, a indagação proposta – isto é, definir os es de “empresas” que captam recursos sem intenção de investir no mercado de criptoativos praticam delitos contra o sistema financeiro nacional.

Contribuição da CVM para a definição do tema

O julgamento de outro caso perante a CVM, o Processo Sancionador 19957.002835/2022-47, trouxe contribuição significativa. A autarquia, mesmo diante da ausência de provas da aplicação dos recursos em criptoativos, entendeu que a adesão dos investidores à oferta pública com expectativa de remuneração é suficiente para caracterizar contrato de investimento coletivo.

No caso analisado, a CVM teve o a relatórios de inteligência financeira que apontaram a captação de valores bilionários durante o período em que o esquema funcionou. No entanto, a decisão não trouxe menção à comprovação de investimentos efetivamente realizados com esses recursos. Isso sinaliza uma verticalização importante no entendimento: que a aplicação efetiva dos valores captados é dispensável para que a conduta seja considerada um contrato de investimento coletivo.

A conclusão da CVM foi clara: não é necessário comprovar que o dinheiro foi de fato investido em criptoativos. Para a autarquia, o próprio ato de captar recursos do público com promessa de lucro já é suficiente para caracterizar a oferta de valor mobiliário. Nesse caso, foi considerado que o requisito “investimento” teria sido preenchido pela existência de aportes feitos pelas vítimas, mesmo que não tenham sido aplicados conforme prometido.

Esse entendimento possui implicações relevantes no campo penal. Uma das principais dúvidas hoje é se a ausência de aplicação dos recursos afasta a competência da Justiça Federal – por descaracterizar crime contra o Sistema Financeiro Nacional.

O julgamento da CVM mencionado acima ajuda a responder essa dúvida. Isso porque também foi entendido nesse julgamento que deixar de investir os valores captados pode configurar um novo ilícito: operação fraudulenta no mercado de valores mobiliários (nos termos do artigo 2º, inciso III, da Resolução CVM nº 62/2022).

Esse ponto também é relevante no Direito Penal. Foi visto que a simples oferta pública de investimento em criptoativos, sem autorização da CVM, pode configurar o crime de “oferta irregular de valor mobiliário”. Além disso, caso os operadores do esquema não realizam os investimentos prometidos (mas remuneram os antigos investidores com o dinheiro dos novos), pode haver configuração de outro delito: gestão fraudulenta de instituição financeira.

Embora essa análise da adequação típica extrapole os limites deste artigo, ela aponta para a necessidade de aprofundar o debate jurídico sobre a tipificação penal desses esquemas e seus reflexos na definição da competência investigativa e jurisdicional.

Considerações finais

A persecução penal de fraudes estruturadas em ofertas de investimentos com criptoativos demanda a consolidação de um entendimento jurisprudencial que prestigie os critérios técnicos estabelecidos pela CVM, sobretudo no tocante à caracterização dos contratos de investimento coletivo.

A jurisprudência penal, ao se alinhar com a interpretação da autarquia reguladora, garante maior segurança jurídica, uniformidade na apuração dos delitos e efetividade na repressão de condutas. A definição clara da competência penal para esses casos é medida essencial para o aprimoramento da atuação estatal e para a proteção dos investidores.

Nesse contexto, a recomendação feita é para que os órgãos de persecução penal se atentem a essa aplicabilidade da norma, para garantir maior efetividade na condição de investigações.

 


[1] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus nº 530.563/RS. Relator: Ministro Sebastião Reis Júnior. Sexta Turma. Julgado em 05 mar. 2020. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 12 mar. 2020.

[2] BRASIL. Comissão de Valores Mobiliários. Processo istrativo CVM nº RJ 2007/11.593. Julgado em 2007.

Autores

  • é mestre em Direito pela UniCuritiba, especialista em Direito Penal Econômico e Empresarial pela Universidade Positivo, conselheiro do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico (IBDPE), conselheiro da Câmara de blockchain e criptoativos da Associação Comercial do Paraná (A), membro do Instituto Brasileiro de Direito Regulatório (IBDRE), coordenador do Grupo de Estudos Avançados sobre Direito Penal e Tecnologias do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), professor na FAE Business School, autor do livro Bitcoin e lavagem de dinheiro: quando uma transação configura crime e advogado criminalista sócio na Beno Brandão Advogados.

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