Direitos fundamentais do segurado-contribuinte versus equilíbrio atuarial da Previdência
22 de abril de 2025, 15h18
A Constituição de 1988 superou a discussão acerca da natureza jurídica das contribuições previdenciárias estabelecendo sua natureza tributária (artigo 149, caput e §1º, c/c artigo 195), sujeita às limitações constitucionais ao poder de tributar, direitos fundamentais do contribuinte, imunes a emendas constitucionais tendentes a aboli-los, nos termos do artigo 60, §4º, IV. Dentre tais limitações ao poder de tributar, destaco os princípios da capacidade contributiva (artigo 145, §1º), da vedação ao confisco (artigo 150, IV) e da isonomia (artigo 150,II).
Diversos dispositivos da Constituição originária – separação entre os orçamentos fiscal e da seguridade social (artigo 165, §5º, III); proibição de criação de despesas previdenciárias sem a correspondente fonte de custeio (artigo 195, §5º) – apontam para a atribuição de princípio implícito àquilo que se explicitou na Emenda Constitucional (EC) 20/98: o princípio do equilíbrio financeiro e atuarial da Previdência (artigo 201, caput, na redação da EC 20/98), reforçado na EC103/19 por diversos dispositivos (como os §§1º a 1º-C do artigo 149, a parte final do artigo 194, parágrafo único, VI).
É na coabitação entre tais princípios que se impõe dar interpretação conforme à CR/88 ao artigo 29 da EC103/19 e §14 do artigo 195 da CR/88, normas de eficácia limitada cuja regulamentação está positivada no artigo 28,§3º, da Lei 8.213/91, com o artigo 26, caput, da EC 103/19, quanto ao artigo 60, §4º da CR/88.
As ‘espécies’ de contribuições às quais se aplicam os fundamentos aqui tratados
Característica basilar de todo tributo é a obrigatoriedade: nos termos do artigo 3º, CTN, “Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito… (omissis)”.
Para o contribuinte facultativo, sua contribuição tem natureza estritamente previdenciária: não sendo prestação obrigatória, não é tributo, não se aplicam as limitações constitucionais ao poder de tributar.
No caso do contribuinte individual, suas contribuições previdenciárias são obrigatórias, decorrentes da atividade econômica exercida, tributos conforme artigo 3º, CTN. Mas, dada a opção pela Lei 8.212/91 de formas padronizadas de pagamento, tomando como base de cálculo o salário mínimo mensal sujeito às alíquotas diferenciadas de 11% ou 5%, presume-se que o contribuinte optante por essas formas diferenciadas as considera menos gravosas e condizentes com sua condição econômica, logo, presume-se que a opção se enquadra nos limites de sua capacidade contributiva.
Logo, os argumentos abaixo se voltam às formas “ordinárias” de contribuição: a do empregado/trabalhador avulso do artigo 20 da Lei 8.212/91 (com as alterações do artigo 28, EC 103/19) e a do contribuinte individual dos artigos 21 e 22, III, da Lei 8.212/91, todas sujeitas à base de cálculo definida no artigo 28 da Lei 8.212/91.
Do tempo de contribuição — artigo 29 da EC 103/19 e 195, §14, CR/88 – normas constitucionais de eficácia limitada — o “limite mínimo mensal do salário de contribuição” — interpretação desses dispositivos, do artigo 28, §3º, da Lei 8.213/91, e artigo 5º, da Lei 10.666/03, à luz dos princípios da capacidade contributiva, da isonomia e da vedação ao confisco
Nos termos do artigo 29, EC 103/19, o segurado que possuir competência com remuneração inferior ao “limite mínimo mensal do salário de contribuição” poderá complementar seu valor, utilizar o valor da contribuição que exceder o limite mínimo ou agrupar contribuições inferiores para aproveitamento em contribuições mínimas mensais. É norma complementar ao artigo 195, §14, incluído na CR/88 pela mesma emenda:
“§14. O segurado somente terá reconhecida como tempo de contribuição ao Regime Geral de Previdência Social a competência cuja contribuição seja igual ou superior à contribuição mínima mensal exigida para sua categoria, assegurado o agrupamento de contribuições. (Incluído pela EC 103/19)“
Porém, a EC 103/19 não estipulou um “limite mínimo do salário de contribuição” nem a CR/88 o fez. Trata-se de norma de eficácia limitada, pois dependente da legislação infraconstitucional.
A regulamentação legal está prevista no artigo 28, §3º, da Lei 8.212/91, que tem a seguinte redação:
“§3º O limite mínimo do salário-de-contribuição corresponde ao piso salarial, legal ou normativo, da categoria ou, inexistindo este, ao salário mínimo, tomado no seu valor mensal, diário ou horário, conforme o ajustado e o tempo de trabalho efetivo durante o mês. (Redação dada pela Lei nº 9.528/97)”
O limite mínimo do salário de contribuição fixado na Lei 8.212/91 não é sempre o salário mínimo mensal: depende do ajuste entre as partes, do tempo de trabalho efetivo no mês, que pode gerar remuneração efetiva e salário de contribuição abaixo do salário mínimo mensal, a depender do contrato entre empregado e seu empregador ou do contribuinte individual e o tomador de serviços.

A regulamentação do “limite mínimo do salário de contribuição” somente pode ser feita por lei, já que o salário de contribuição é a base de cálculo de um tributo – a contribuição previdenciária – sujeita ao princípio da legalidade e deve ser seguida por normas infralegais como aquelas do INSS/RFB.
Porém, a interpretação que se firmou em âmbito istrativo e judicial após a EC 103/19 foi a de que esse “limite mínimo do salário de contribuição” seria igual ao “salário mínimo mensal”, o que contraria a definição infraconstitucional do artigo 28,§3º, da Lei 8.212/91.
A própria EC 103/19 e a Lei 8.212/91 problematizaram esse “limite mínimo do salário de contribuição” em dispositivos específicos.
Para o contribuinte empregado, a Lei 8.212/91, artigo 20, e a EC 103/19, artigos 11 e 28, quando tratam das contribuições, estabelecem uma progressividade das alíquotas e a menor alíquota se aplica a remunerações que vão de zero a certo limite, mas não há uma remuneração mínima — ou base de cálculo mínima — estabelecida em nenhuma dessas normas.
Na EC 103/19, artigo 28, a alíquota mínima de 7,5% aplica se a salários de contribuição que vão de zero até um salário mínimo. Na Lei 8.212/91, a alíquota mínima de 8% aplicava-se a valores de zero até três salários mínimos da data de sua publicação, limite reajustado posteriormente, revogado pelo artigo 28, EC103/19.
Ao contrário do salário de contribuição, a renda mensal do benefício — isto é, o valor que será pago ao segurado quando receber algum benefício — tem limite mínimo fixado na Constituição desde sua promulgação: o salário mínimo mensal (artigo 201,§5º, da CR/88 original, e §2º do mesmo artigo após a EC 20/98).
Justifica-se a assimetria: se a CR/88, a EC 103/19 ou a Lei 8.212/91 fixassem salário de contribuição mínimo igual ao salário mínimo mensal, isso implicaria contribuição previdenciária mínima (a menor alíquota multiplicada pelo salário mínimo mensal) e os empregados poderiam ser desproporcionalmente atingidos, pois aqueles com remunerações inferiores ao salário mínimo (como o trabalho intermitente) pagariam alíquotas efetivas (valor da contribuição dividido pela remuneração) superiores às daqueles com maiores remunerações.
Suponha que o salário mínimo seja de R$ 1 mil reais e o empregado 1 é contratado para trabalho intermitente no final de semana, perfazendo 16 dias no mês e uma remuneração de R$ 600; se fosse obrigado a pagar a contribuição sobre base de cálculo mínima de um salário mínimo, pagaria 7,5% sobre mil reais ou R$ 75, como a remuneração bruta seria R$ 600 reais, isso equivaleria a uma alíquota efetiva de 12,5% (75/600) muito superior à alíquota fixada constitucionalmente no artigo 28 da EC 103/91; já o empregado 2 contratado por um salário mínimo mensal, recolhendo os mesmos 75 reais mensais de contribuição, teria alíquota efetiva de 7,5% (75/1000) – a alíquota correta da EC 103/19, artigo 28.
Exemplo análogo levaria à mesma conclusão de que a contribuição mínima obrigatória para o contribuinte individual colocaria distintos contribuintes em situação não isonômica e alíquotas efetivas distintas, se um auferisse renda inferior a um salário mínimo e o outro auferisse renda igual ou superior ao salário mínimo.
É pra evitar esse tratamento não isonômico entre diferentes contribuintes que a EC 103/19 e a Lei 8.212/91 NÃO fixaram um limite mínimo mensal de contribuição para toda e qualquer hipótese e a alíquota mínima aplicar-se-á sobre qualquer valor recebido na faixa entre zero e o limite.
Logo, o princípio da isonomia, artigo 150, II, CR/88, é o primeiro direito fundamental do contribuinte que colide com a interpretação de que a contribuição mínima mensal deve ter como salário de contribuição o salário mínimo mensal.
Além dele, a exigência em qualquer hipótese da contribuição previdenciária mínima calculada sobre o salário mínimo mensal ofenderia os princípios da vedação ao confisco e da capacidade contributiva. Exemplifico.
Contribuinte empregado, remuneração igual ao salário mínimo ($ 1 mil), contratado e demitido após três dias, remuneração bruta de $ 100: se o patrão retiver contribuição mínima calculada sobre o salário mínimo, aplicando alíquota de 7,5% vigente, pagaria $ 75 de contribuição que, descontada de sua remuneração, resultaria em remuneração líquida de R$ 25 (alíquota efetiva de 75%!).
Contribuinte individual, suponha que ele obtenha em determinado mês somente $200,00 com suas atividades, contexto de crise econômica. Se for obrigado a contribuir com 20% sobre o salário mínimo ($ 1 mil), pagará $ 200 de contribuição, obterá remuneração líquida mensal nula: alíquota efetiva de 100% da remuneração!
Dos exemplos, óbvia a ofensa aos princípios da capacidade contributiva e da vedação ao confisco.
Logo, não é constitucionalmente cabível a instituição de um “limite mínimo do salário de contribuição” igual ao salário mínimo mensal, como muitos aram a entender após a EC 103/19 (artigo 195, §14 da CR/88 e artigo 29 da EC 103/19).
Também não é constitucionalmente cabível restringir a contagem do tempo de contribuição dos segurados apenas àquelas competências em que o salário de contribuição tenha sido pelo menos igual ao salário mínimo.
Dados os exemplos, caso se interprete tais dispositivos constitucionais para impedir a contagem de tempo de serviço do segurado-contribuinte que obteve renda inferior ao salário mínimo em determinada competência, estar-se-ia penalizando a extrema pobreza, pois o segurado-contribuinte que contribuiu por base de cálculo igual a sua renda efetiva abaixo do salário mínimo – como previsto no artigo 28,§3º, da Lei 8.212/91 – perderia essa competência na contagem para fins de benefícios: seria punido por ter ado por período de extrema pobreza.
Há necessidade de realizar uma interpretação conforme à Constituição desses dispositivos trazidos pela EC 103/19 de modo a coaduná-los com os direitos fundamentais do contribuinte acima explicitados.
O limite mínimo do salário de contribuição deve observar otrabalho efetivo em número de dias ou até horas multiplicado pelo salário mínimo diário ou horário, como está na parte final do artigo 28,§3º, da Lei 8.212/91, e é ônus do ente tributante (União) comprovar que ele trabalhou mais dias ou mais horas do que a base de cálculo sobre a qual contribuiu para que a contribuição tenha que ser complementada, como é previsto, por exemplo, no artigo 5º da Lei 10.666/03 para o caso do contribuinte individual que teve recolhimento feito por seu tomador de serviços, conforme artigo 22,III, da Lei 8.212/91.
Também é ônus do INSS, para negar tempo de contribuição da competência em que o segurado contribuiu por salário inferior ao mínimo, comprovar que sua renda real naquela competência foi igual ou superior ao salário mínimo: não é possível presumir a má-fé do segurado.
Não comprovado que a remuneração mensal do contribuinte tenha sido igual ao salário mínimo, tendo em vista os fundamentos acima e a definição contida no artigo 28,§3º, da Lei 8.212/91, não há base constitucional para exigir sua complementação até o salário mínimo mensal para fins de reconhecimento como tempo de contribuição e gozo de benefícios previdenciários.
Reflexos na renda mensal inicial: princípio do equilíbrio financeiro e atuarial, artigo 201, caput, CR/88, e o artigo 26, caput, da EC 103/19
Feita a correta interpretação do “salário de contribuição mínimo mensal” sob o prisma dos direitos fundamentais do segurado à isonomia, à vedação do confisco e à capacidade contributiva, deve-se compatibilizar tal reflexão com o princípio constitucional do equilíbrio financeiro e atuarial.
Se não há possibilidade de estabelecer limite mínimo de salário de contribuição igual ao salário mínimo mensal, conforme acima, também são inconstitucionais as disposições legais ou regulamentares que estabelecem salários de contribuição iguais ou superiores ao salário mínimo mensal para cálculo da média que embasará a RMI (renda mensal inicial).
Pois tal interpretação resultaria em ofensa ao equilíbrio financeiro e atuarial da Previdência, uma vez que os recursos correspondentes às contribuições efetivas serviram de Receita da Previdência, de modo que a Despesa da Previdência deve observar rendas mensais proporcionais a esses recolhimentos, isto é, são os salários de contribuição que serviram de efetiva base de cálculo das contribuições que devem ser utilizados na média sobre a qual são calculadas as rendas mensais dos benefícios.
Também é a correta interpretação do artigo 26, caput, da EC 103: “Art.26. Até que lei discipline o cálculo dos benefícios do regime próprio de previdência social da União e do Regime Geral de Previdência Social, será utilizada a média aritmética simples dos salários de contribuição e das remunerações adotados como base para contribuições a regime próprio de previdência social e ao Regime Geral de Previdência Social, ou como base para contribuições decorrentes das atividades militares de que tratam os arts. 42 e 142 da Constituição Federal . . . (omissis)”
Isto é, a média aritmética do artigo 26 da EC103/19 deve ser feita utilizando os “salários de contribuição e remunerações efetivamente adotados como base para as contribuições”.
Dada a possibilidade de salários de contribuição inferiores ao salário mínimo mensal, quando isso ocorrer, a média deve computar o salário de contribuição que serviu de base efetiva ao recolhimento, inclusive deverá ser utilizado salário de contribuição nulose o tempo de serviço for acolhido sem recolhimento de contribuição — caso do empregado que demonstrou vínculo sem que o empregador tenha recolhido contribuição (vide julgados posteriores à EC 103/19 do TRF-1ª Região:Ap1011756-57.2024.4.01.9999 e Ap1002985-27.2023.4.01.9999,rel.des. Morais da Rocha, 1ªT.;Ap0019127-17.2009.4.01.3500,rel.des. João Luiz de Sousa, 2ª T.).
Assim se compatibilizam os direitos fundamentais do segurado-contribuinte com o princípio do equilíbrio financeiro e atuarial da Previdência, condizentes com a redação literal do artigo 26, caput, EC103/19, sem punir os que aram por períodos de extrema pobreza/rendas abaixo do salário mínimo com a exclusão dessas competências de seu tempo de contribuição.
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