Existe guarda compartilhada de animais?
22 de abril de 2025, 18h16
Já sabemos que os tribunais vêm itindo a disputa judicial de guarda e regulamentação de convivência dos animais de estimação, nominando essa nova relação jurídica entre seus membros de família multiespécie. Sobre a temática, destacamos o enunciado 11 do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam) autorizando a judicialização acerca da custódia compartilhada do animal [1].

Da mesma forma, já se somam decisões itindo que o animal de estimação integre polo ativo de demanda judicial na defesa de “seus interesses”, advindo dessa seara construção doutrinária e jurisprudencial já bastante exploradas.
Há ainda projetos de lei que visam regulamentar o reconhecimento da família multiespécie. Citamos o Projeto de Lei 179/2023, atualmente tramitando na Câmara dos Deputados [2]. A proposta elenca diversos deveres aos tutores dos animais de estimação, e conta no momento com vinte e um artigos, incluindo tipos penais, reconhecendo que a família multiespécie já é “verdadeiro fenômeno sociológico conhecido, debatido nas Varas de Família e até mesmo nos Tribunais Superiores”.
O projeto também confere ao animal direitos da personalidade, atribuindo-lhe a condição de absolutamente incapaz [3], indicando a necessidade da sua representação legal para o exercício de direitos próprios dos sujeitos de direitos (vida, dignidade, patrimônio, afetividade, entre outros). Indica que nas disputas judiciais envolvendo guarda e visitação, haverá veterinário especializado em psicologia animal que deverá ser previamente ouvido [4].
Há muito a ser pontuado. Já é de praxe o nosso ordenamento legal andar um o atrás da construção jurisprudencial. Em regra, as leis são modificadas/editadas consagrando um entendimento que já vem sendo adotado em larga escala pelos tribunais. Nos parece que, ao contrário do legislador, o Judiciário sabe que não irá absorver demandas de disputas de guarda ou convivência de animais domésticos mediante necessária perícia de médico veterinário especialista em psicologia animal.
Breve histórico
Junto ao Superior Tribunal de Justiça é encontrada decisão afastando guarda compartilhada de animais por ser instituto construído com base nos deveres inerentes ao poder familiar (REsp: 1.713.167 SP 2017/0239804-9, relator ministro Luis Felipe Salomão, j. 19/06/2018, 4ª Turma, DJe 09/10/2018). Por seu lado, o projeto expressamente importa o conceito de poder familiar para a tutela dos animais de estimação em seus artigos 8º ao 14, sob a rubrica “do poder familiar sobre os animais de estimação”.

A questão é extremamente delicada, mas o paralelo jurídico entre humanos e animais não é novo, e já foi utilizada pela via inversa nos emblemáticos casos Mary Ellen Wilson, nos Estados Unidos, no século 19 e Harry Berger, prisioneiro no Brasil. Em ambos os casos a legislação protetiva pelos animais foi utilizada como parâmetro para proteção do próprio ser humano, à guisa de norma similar em favor da criança ou do adolescente, no caso americano, e contra tortura do preso durante o período da ditadura do Estado Novo, no caso brasileiro [5].
Em suma, é óbvio que existe afeto profundo entre humanos e seus animais de estimação, o que demanda que recebam tratamento legal e proteção judicial adequadas às suas singularidades.
O que diz o Código Civil
Atualmente nossa lei civil atribui natureza jurídica de coisa aos animais domésticos, com o que não se pode mais pactuar.
Neste ponto, o projeto de reforma do Código Civil, em seu artigo 91-A, dispõe que os animais são seres vivos sencientes e íveis de proteção jurídica própria, em virtude da sua natureza especial, remetendo sua tutela para lei especial, permanecendo, no entanto, a aplicabilidade das disposições relativas aos bens, desde que compatíveis com sua sensibilidade, até que aquela sobrevenha no ordenamento.
O artigo 19 reconhece que a afetividade humana também se manifesta por expressões de cuidado e proteção aos animais que compõe o entorno sociofamiliar.
Adiante, o §3º do artigo 1.566 dispõe sobre o compartilhamento das despesas para manutenção dos animais de estimação no fim do casamento ou união estável.
No entanto, não há poder familiar para tutela dos interesses dos animais. A questão que se coloca é que a aplicação pura e simples da nossa legislação relativa ao exercício dos deveres parentais levaria a decisões completamente despidas de qualquer razoabilidade ou senso lógico, assim como a aplicação pura e simples do direito das coisas.
Há regramento específico?
A título de exemplo, citamos o acórdão do agravo de instrumento do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro de número 0021039-48.2023.8.19.0000, de relatoria da desembargadora Leila Maria Rodrigues Pinto de Carvalho e Albuquerque.
No caso acima, o tutor da cadela Macarena havia sido preso, e o animal foi acolhido em lar provisório pelos agravantes. Macarena era explorada para a prática de crimes pelo seu antigo tutor. Ao fim da instrução criminal, o juízo determinou a devolução de Macarena ao seu antigo dono, no prazo de 15 dias, determinando inclusive sua busca e apreensão.
Neste caso, foi aplicado pelo juízo criminal o regime jurídico dos artigos 118 e 119 [6] do Código de Processo Penal.
A desembargadora relatora do recurso, no entanto, entendeu inaplicável o regime jurídico do direito das coisas no que se refere à custódia do animal, reconhecendo a “dimensão ecológica da dignidade da pessoa humana e atribuiu dignidade e direitos aos animais não humanos e à natureza”, mantendo Macarena com seu aguerrido tutor, que recorreu até a segunda instância para manter a qualidade de vida da cadela.
Esse caso ilustra como a legislação atual não tutela adequadamente a situação dos animais de estimação que, por outro lado, também não encontram guarida na aplicação literal da guarda compartilhada.
Isso porque a guarda compartilhada existe no ordenamento jurídico por questões várias que não se limitam aos direitos e deveres iguais de pai e mãe, trazidos pela Constituição Federal, mas sim na primazia do melhor interesse da criança, no seu desenvolvimento psicológico sadio, apontando a ciência neurológica a necessidade que o ser humano possui de crescer contando com duplo referencial, materno e paterno, tão necessária ao fenômeno da triangulação familiar que deverá nortear o desenvolvimento emocional e social do indivíduo.
Até que sejam divulgados estudos científicos da área da psicologia veterinária, forçoso pressupor, por ora, que o mesmo fenômeno não se enquadra aos animais de estimação, que urgem por um regramento específico, cabendo ao Judiciário, na omissão do legislador, apontar os nortes que deverão ser observados caso a caso.
Conclusão
Portanto, não é viável a importação literal do regramento da guarda compartilhada aos animais de estimação. Por mais que afetivamente exista a correspondência na consideração entre crianças e animais de estimação, biologicamente, psicologicamente, socialmente, antropologicamente, ainda existem diferenças consideráveis.
Por fim, se levarmos em conta que a diferença entre animais de estimação e os animais domésticos é a destinação dada ao mesmo pelo ser humano, servindo aquele como destinatário de afeição genuína, enquanto este se presta ao auxílio do trabalho, e mesmo como alimento, há de se reconhecer que as diferenças naturais entre crianças e animais são ainda bem vultuosas.
[1] Na ação destinada a dissolver o casamento ou a união estável, pode o juiz disciplinar a custódia compartilhada do animal de estimação do casal.
[2] Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2346910. o em 18/04/2025.
[3] Art. 3º Para os fins desta Lei, os animais de estimação são considerados absolutamente incapazes de exercer diretamente os atos da vida civil que forem compatíveis com a sua natureza, devendo ser representados na forma desta Lei.
[4] Art. 13. Em caso de separação, de divórcio ou de dissolução da união estável, judicial ou extrajudicial, deverá ser acordado ou decidido sobre a guarda, unilateral ou compartilhada, dos animais de estimação, além de eventual direito de visitas e de pensão alimentícia específica para a manutenção das necessidades do animal. § 3° Os juízos de família contarão com médico veterinário, preferencialmente especializado em etologia ou psicologia animal, ou em área similar, que será previamente ouvido nos casos sobre a destinação dos animais de estimação.
[5] LOURENÇO, Daniel Braga. Conexões históricas entre a proteção humana e a tutela jurídica dos animais: os casos de Mary Ellen Wilson e Harry Berger. Disponível em: chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/https://www.cidp.pt/revistas/rjlb/2018/6/2018_06_1659_1678.pdf. o em 18/04/2025.
[6] Art. 118. Antes de transitar em julgado a sentença final, as coisas apreendidas não poderão ser restituídas enquanto interessarem ao processo. Art. 119. As coisas a que se referem os arts. 74 e 100 do Código Penal não poderão ser restituídas, mesmo depois de transitar em julgado a sentença final, salvo se pertencerem ao lesado ou a terceiro de boa-fé.
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