O robô, a invenção de precedentes e o viés de perspectiva
22 de abril de 2025, 11h17
Robôs que inventam até artigo de código; jurisprudência “criada” ou “adaptada”; sentença prolatada por IA: são os novos tempos. É o Zeitgeist — o espírito do “novo” tempo.

Se o robô inventa jurisprudência, sempre o faz na direção de quem o consultou. Por exemplo, o procurador do Estado (é um caso concreto) pede para a IA fazer uma contestação a uma ação anulatória proposta por um (ex)servidor. Obviamente que a IA buscará a “melhor resposta” a favor do consulente. A isso se chama viés.
Já denunciei esse problema no caso dos protocolos do CNJ. Duas questões: primeiro, a busca sempre selecionará precedentes e posições a favor da prévia tese exposta; segundo, qualquer “criação” de precedentes sempre será a favor da tese prévia. IA (de)generativa funciona assim. E lembremos o exemplo do cachorro que jogava crianças no rio para ganhar suculentos bifes (ver aqui).
Veja-se o caso dos “precedentes” citados em um Habeas Corpus em Santa Catarina recentemente. Foram inventados pelo causídico (ou por sua IA) para a concessão. Assim como o caso do dispositivo do Código Civil inventado em um acordão do TJ-MT. De todo modo, faça você mesmo o teste. Veja com seus próprios algoritmos…
Há, ademais, um agravante que confirma o viés de confirmação ou de perspectiva — o que acaba dando no mesmo. No caso de ações contra o Estado, temos que levar em conta que estão em jogo honorários advocatícios para o procurador (estadual ou federal). Isso faz com que o contribuinte (ou cidadão que busca direitos contra o Estado) seja visto como um inimigo do Estado. Parece que a IA entende bem isso.
Nesse sentido, temos visto um acirramento nas teses defensivas em matérias tributárias principalmente, em que estão em jogo maiores valores pecuniários. Quem é das práticas judiciárias sabe do que estou falando. Prescrições e decadências ignoradas pela defesa do Estado — eis um bom exemplo. Ora, o defensor do Estado deveria agir como agente imparcial — afinal tem garantias constitucionais que o cidadão comum e seu causídico não possuem. Isso também se vê na atuação do Ministério Público, que deveria se conduzir nos termos do Estatuto de Roma, incorporado desde 2002 (artigo 54): buscar provas também a favor da defesa — afinal, o MP tem o poder de investigação.
Se achar uma prova a favor da defesa, não deveria também a colocar na mesa, tal qual determina, por exemplo, a famosa Doutrina Brady, seguida pelo P alemão e pela jurisprudência da Itália, para citar apenas esses países?
Digo isso para apontar o sintoma. Os causídicos devem tomar cuidado com contestações feitas pelo Estado via robôs (também ter cuidado nos demais casos, é óbvio, porque o uso de IA se espalha como uma pandemia). Sabe-se que a IA é largamente utilizada pelos órgãos estatais (os advogados também usam, é claro). A IA acaba, por vezes, inventando precedentes ou fazendo adaptações estranhas, tudo para atender o viés de perspectiva estatal.
Nesse sentido, há um caso interessante, deste ano, em que o Rio Grande do Sul contesta ação com base em um precedente bem antigo e que foi totalmente “adaptado” (creio que pelo robô). Examinando a “jurisprudência coletada”, fica até difícil de entender o busílis da questão. O “precedente” — que não é nem precedente (afinal, o que é um precedente neste país sem precedentes) — vem do longínquo ano de 2003 (Apelação Cível nº 70004176871).
Não me interessa o mérito da questão. Pode o Estado até ter razão. Mas é lamentável que o Estado se valha desse tipo de estratégia (o Procurador dirá que essa “jurisprudência” é apenas um dos argumentos e que a culpa é do estagiário … – OK, argumento pré-anotado). Estagiário é também para isso.
Importa registrar é que o “precedente”, além de ter sido “adaptado” (sendo generoso), não possui nem pistas de como dele tirar uma holding, aplicável ao caso em julgamento. E nem possui similitude fática. Vejam vocês mesmos (o original e o adaptado).
Resumindo: no caso, o que há de verdadeiro é tão somente esta parte da ementa:
“APELAÇÃO CÍVEL. CONSTITUCIONAL. ISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. SERVIDOR PÚBLICO ESTADUAL. POLICIAL CIVIL. PROCESSO ISTRATIVO DISCIPLINAR. PENA DE DEMISSÃO.”
O resto é “criação livre”.
Ainda não satisfeita, a PGE entendeu por requerer ao juízo que indefira qualquer pedido de produção de provas da parte autora, violando o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório. Verbis:
“b) requer, ainda, seja indeferido qualquer pedido de produção de provas com o objetivo de refazer a prova já produzida na órbita istrativa acerca dos fatos apurados no procedimento istrativo que culminou na licença à bem da disciplina do autor.”
Portanto, causídicos de todo o Brasil: fiquem atentos às contestações e petições produzidas por IA (ou por estagiários, essa valorosa classe que leva as culpas quando algo dá errado). Elas alegações podem dizer o contrário do que está em discussão.
A propósito: o cidadão não é (ou não deveria ser) inimigo do Estado. Os honorários em jogo não podem transformar uma ação contra o Estado (ou a favor dele) em uma “carnificina epistêmica” (sim, sei que talvez esse caso acima seja com AJG). Isso serve também para o MP: o réu ou investigado não é inimigo. Se a ação está prescrita, se há provas a favor do cidadão, o Estado (via MP ou PGE ou AGU) tem o dever constitucional de as apontar.
Se o réu ou o contribuinte têm razão, por qual razão não itir? O Estado não pode e não deve agir estrategicamente. Ele é mais forte que o cidadão (tem até prazo em dobro; no caso da Defensoria, tem o poder de requisição, por exemplo). Coisa que já sabemos — ou deveríamos saber — desde Ésquilo e a sua Oresteia (peça Eumênidas).
Não está fácil exercer a profissão de advogado.
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