O uso abusivo da parcela balão em financiamentos imobiliários
22 de abril de 2025, 16h23
Segundo os usos e costumes do mercado imobiliário, denomina-se “parcela balão” a parcela intermediária, inserida em compromisso de venda e compra, relativa ao preço pago pelo adquirente de uma unidade futura de um empreendimento imobiliário em regime de incorporação, vulgarmente conhecida como compra e venda de imóvel na planta.

Trata-se de prática negocial que visa proporcionar ao adquirente o pagamento de parcelas mensais em valores menores, compensando-se tal diminuição pelo acréscimo de parcelas avulsas (“intermediárias”), de valores comumente mais altos.
Essas parcelas intermediárias podem ser trimestrais, semestrais, anuais, ou atender a qualquer outro critério de distanciamento temporal itido pelas partes como bom para o negócio.
A ferramenta adequa-se, por exemplo, a adquirentes que possuam rendas fixas e rendas variáveis, em situação na qual a remuneração fixa não seja apta a ar parcelas maiores, mas as remunerações variáveis possam compensar isso mediante pagamentos periódicos, adequando-se, assim, o formato de pagamento da unidade futura do empreendimento ao fluxo de remunerações do adquirente.
Até este ponto, não há nada de incomum ou ilegal.
No entanto, em determinado momento, as parcelas intermediárias (“balões”), aram a ser utilizadas por incorporadores para o fim de desviar-se, ilegalmente, das limitações financeiras que a lei impõe ao financiamento imobiliário.
Explica-se. Observa-se do regramento legal da correção monetária das obrigações em geral adimplidas de modo parcelado (produtos, veículos, aparelhos eletrônicos, etc.), que o artigo 2º, §1º, da Lei 10.192/2001, proíbe e prevê a nulidade de pleno direito da estipulação de correção das parcelas financiadas (pagamentos a prazo) em contratos cujo pagamento seja totalmente integralizado dentro do período de um ano:
“Art. 2º É itida estipulação de correção monetária ou de reajuste por índices de preços gerais, setoriais ou que reflitam a variação dos custos de produção ou dos insumos utilizados nos contratos de prazo de duração igual ou superior a um ano.
§1º É nula de pleno direito qualquer estipulação de reajuste ou correção monetária de periodicidade inferior a um ano.”
Por este motivo, por exemplo, concessionárias de veículos que permitem parcelamentos diretos, sem intermediação de instituições financeiras, são obrigadas a fornecer opções de parcelamento em até dez ou 11 vezes sem juros. Não se trata de qualquer promoção ou benevolência, mas de mera observância da lei.
No que se refere aos contratos de financiamento imobiliário, há lei especial. A Lei nº 10.931/2004, ao tratar de diversas questões jurídicas com impacto direto na economia nacional, em seu artigo 46, autoriza a correção mensal das parcelas somente para financiamentos pactuados em prazo superior a 36 meses, em benefício do mutuário ou tomador do crédito, com a pretensão de tornar mais ível o crédito e menos onerosa a aquisição imobiliária.
A mesma lei, no artigo 47, prevê a nulidade, de pleno direito, de qualquer expediente que, direta ou indiretamente, pretenda aplicar a correção monetária em prazo inferior a 36 meses:
“Art. 46. Nos contratos de comercialização de imóveis, de financiamento imobiliário em geral e nos de arrendamento mercantil de imóveis, bem como nos títulos e valores mobiliários por eles originados, com prazo mínimo de trinta e seis meses, é itida estipulação de cláusula de reajuste, com periodicidade mensal, por índices de preços setoriais ou gerais ou pelo índice de remuneração básica dos depósitos de poupança.
Art. 47. São nulos de pleno direito quaisquer expedientes que, de forma direta ou indireta, resultem em efeitos equivalentes à redução do prazo mínimo de que trata o caput do art. 46.”
Artificialidade
A fim de “burlar” a referida proibição, algumas incorporadoras, e também outros agentes envolvidos na cadeia de produção do produto imobiliário, aram a simular a existência de uma parcela intermediária (“parcela balão”) lançada para o final da negociação, notadamente depois do 36º mês do contrato, em valor irrisório, apenas para fazer parecer que o contrato firmado tem periodicidade superior a 36 meses, de modo a viabilizar a correção monetária mensal de todas as parcelas ajustadas.
Neste caso, ainda que os adquirentes possuam a quantia necessária para quitar aquela parcela intermediária remanescente, de valor irrisório, o incorporador e seus prepostos ou representantes valem-se dos mais variados argumentos para justificar aquela parcela lançada ao final, a exemplo de que é cláusula padrão, que atende a algum fim fiscal, ou até mesmo que aquela parcela nem será cobrada se houver a quitação de todas as parcelas antecedentes regularmente.
No caso, a simples existência daquela parcela, de modo a viabilizar o reajuste mensal de todas as parcelas do contrato, desde o início, atende ao interesse do incorporador de aumentar artificialmente outras parcelas do contrato, razão pela qual não há, de fato, interesse no valor econômico daquela parcela específica lançada para o final do contrato.
Em termos ilustrativos, observe-se exemplo de parcelamento ilegal, tirado de um caso concreto:
Correspondência
no contrato |
Vencimento | Valor | Data do pagamento | Forma de pagamento |
Parcela “A” | 26/01/2024 | R$ 73.440,00 | 24/1/2026 | Recursos próprios |
Parcela “B” | 13/03/2024 | R$ 105.000,00 | 12/3/2024 | Recursos próprios |
Parcela “C” | 30/03/2024 | R$ 325.561,62 | 30/3/2024 | Aporte CEF (Ag. Financiador) |
Parcela “D” | 28/02/2027 | R$ 709,13 | 28/2/2027 | Recursos próprios – última parcela |
O valor nominal da unidade, neste caso concreto, conforme previsão contratual, foi de R$ 500.664,97.
Considerando que o financiamento, envolvendo os recursos próprios e aportados por agente financiador externo, foram quitados em três parcelas (parcelas “A”, “B” e “C”), no período de janeiro a março do ano de 2024, observa-se que não poderia haver qualquer reajustamento das parcelas nominais fixadas, em conformidade com os artigos 46 e 47 da Lei nº 10.931/2004.
Ao contrário disso, incluiu-se, neste caso, uma parcela simbólica e irrisória com vencimento para 28 de fevereiro de 2027, exatamente no trigésimo sétimo mês do contrato, fazendo com que se torne um financiamento imobiliário com prazo superior a 36 meses, e, assim, seja permitido o reajuste mensal das parcelas.
Com a adoção dessa prática, a unidade foi quitada pela quantia de R$ 504.001,62, em virtude do reajuste mensal das parcelas “B” e “C”, as quais, em regra, não poderiam sofrer atualização.
Caso a distância das parcelas intermediárias “B” e “C” acima ilustradas fossem mais longas, o aumento do valor seria exponencialmente maior.
A inserção de tal cláusula com fins simulatórios e com vistas a burlar a proibição legal, em prejuízo aos direitos do consumidor, já foi analisada inúmeras vezes pelos tribunais brasileiros, entendendo-se pela abusividade da “(…) 36ª prestação em valor ínfimo criada com o nítido propósito de estender artificialmente o parcelamento e aplicar o reajuste mensal. Exegese dos arts. 45 e 46 da Lei 10.931/04” [1]. No caso, apontou-se a abusividade da parcela balão utilizada pela Incorporadora Gafisa, condenando-a à restituição das quantias cobradas indevidamente do adquirente.
Em outro precedente, o Tribunal de Justiça de São Paulo entendeu que a proibição legal de reajustamento mensal em tais casos não se estende ao reajustamento anual [2].
Por fim, configurada a prática ilegal e a nulidade absoluta, de pleno direito, a consequência é a devolução em dobro das quantias artificialmente acrescidas ao preço da unidade, na forma do artigo 42, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor [3], consoante entendimento recente do TJ-SP [4].
[1] TJ-SP; Apelação Cível 1056138-29.2021.8.26.0100; Relator (a): Correia Lima; Órgão Julgador: 20ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível – 27ª Vara Cível; Data do Julgamento: 10/09/2022; Data de Registro: 10/09/2022
[2] TJ-SP, Apelação Cível nº 1003504-71.2015.8.26.0066, Rel. J. B. Paula Lima Barretos, DJe 21/08/2018
[3] Art. 42. Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça.
Parágrafo único. O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável.
[4] COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. Correção monetária com periodicidade mensal. Impossibilidade. Art. 46 da Lei 10.931/04. Parcela inserida no 36º (trigésimo sexto) mês a partir da do contrato, com o nítido propósito de evitar a aplicação da lei. Má-fé configurada, ensejando restituição em dobro. Art. 42, parágrafo único, do CDC. Autores que sucumbiram em parte mínima do pedido. Sentença parcialmente reformada, apenas para carrear o ônus sucumbencial integralmente à ré. RECURSO DOS AUTORES A QUE SE DÁ PARCIAL PROVIMENTO. RECURSO DA RÉ A QUE SE NEGA PROVIMENTO” (TJSP; Apelação Cível 1003145-73.2019.8.26.0554; Relator (a): Wilson Lisboa Ribeiro; Órgão Julgador: 10ª Câmara de Direito Privado; Foro de Santo André – 4ª Vara Cível; Data do Julgamento: 25/02/2022; Data de Registro: 25/02/2022)
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